Na floresta dos papagaios comedores de terra

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Cabanas de madeira circulares, distribuídas ao longo de um morro pouco elevado, entre palmeiras e flores, constituem o Napo Wild Life Center

O Parque Natural Yasuní, no Equador, é uma arca do tesouro amazónica pronta a ser descoberta. Mas não é fácil chegar lá. Quanto mais não seja, porque não há muito onde ficar. Um hotel na selva explorado por uma comunidade de índios quíchuas é uma excepção. Clara Barata (texto) e Enric Vives-Rubio (fotos)

São 12 andares, degrau a degrau construído na selva, uma plataforma de metal que se ergue a 36 metros de altura, para se poder ver acima de todas as árvores - para ver o mar de vegetação cerrada da Amazónia e, entre as suas ondas verdes, descobrir as explosões de cor das aves que são uma das suas riquezas. Ao nível do solo, mal se dá conta dos raios do sol, tão cerrada é a vegetação. A subida é uma ascensão, penosa, esforçada, até os últimos lampejos do dia na floresta. Lá em cima, os guias do Napo Wild Life Center, o único alojamento para turistas dentro do Parque Yasuní, no Equador, Reserva da Biosfera da UNESCO, têm já os telescópios prontos para avistar tucanos e pica-paus e oropendolas, pássaros com um estranho canto que parece uma sonora gota de água a cair.

À vista desarmada, não se descobrem aves, quando se ganha fôlego suficiente para focar o olhar. São necessários uns binóculos, pelo menos, e a experiência dos guias indígenas quíchua ou de guias da natureza como o biólogo Juan Carlos Narvaez. Os seus olhos lêem a floresta como nós lemos os sinais da cidade, sabem para onde apontar o telescópio ou os binóculos para descortinar as aves naquele emaranhado de verde. E têm muito por onde perder o olhar: foram identificadas 562 espécies de aves no Yasuní.

Há pica-paus a picar árvores ali perto, as oropendolas continuam a sua conversa por todo o lado. São aves grandes e negras, com caudas douradas, do género Psarocolius, a que no Brasil chamam japu. "Pavas hediondas", aves herbívoras que cheiram mal (daí o nome popular da espécie Opisthocomus hoazin, conhecido como jacu-cigano no Brasil), emitem os seus sonoros chamados. E os papagaios multicoloridos chamam pelos seus amigos para se despedirem deles antes de irem dormir no Yasuní, o mais biodiverso refúgio da Amazónia. Que é, provavelmente, também o local com mais diversidade biológica do planeta - faltam ainda estudos para se poder afirmar isto com toda a certeza. No entanto, este paraíso que é uma Reserva da Biosfera da UNESCO tem de conviver com a ameaça da exploração petrolífera no coração da selva.

Nos últimos anos, o ecoturismo tentou afirmar-se como uma alternativa ao petróleo. A ideia é que, ao contrário do que tem acontecido com a indústria petrolífera, o ecoturismo tem o potencial de trazer benefícios para as cerca de 100 mil pessoas que vivem na Amazónia equatoriana. O impacto das petroleras tem sido bastante negativo no Equador, em termos sociais, na saúde e até económicos - sobretudo das populações indígenas. As estatísticas e os estudos de desenvolvimento humano revelam-no sem dúvidas. O Napo Wildlife Center é um exemplo desses projectos de ecoturismo, e é dirigido pela comunidade Kichwa Añangu.

A casa da formiga-cortadora

Na língua kichwa (ou quéchua, na grafia espanhola, quíchua em português), añangu é formiga-cortadora: uns bichinhos que se vêem por todo o lado a marchar, cortando sem dó nem piedade folhas e até a roupa dos mais incautos, em pedacinhos suficientemente pequenos para que cada trabalhador possa carregar para o ninho, numa marcha sem tréguas. "As primeiras pessoas que vieram para aqui viver encontraram muitas formigas destas, e escolheram este nome", explica o guia da natureza Luís Garcia.

Hoje com cerca de 30 famílias, a comunidade Añangu desenvolveu o lodge ecológico na margem sul do rio Napo, o maior afluente do Amazonas. Com os lucros do hotel, fez uma escola para os mais novos, que atrai alunos de outras comunidades também, e assegura as necessidades dos mais velhos.

Americanos e europeus - mais britânicos e alemães - passam por lá para conhecer a riqueza biológica do coração do Amazonas. Tendo como ponto de partida a lagoa de Anangucocha, o visitante do Yasuní consegue avistar animais com uma intimidade que não é possível no turismo de massas em que transformaram as visitas às ilhas Galápagos, garante o guia Juan Carlos Narvaez, a quem tratam por Juanca. "Normalmente, os turistas vêm cá como parte de um pacote turístico: vêm às Galápagos e procuram mais alguma coisa para fazer, ou então visitam Machu Picchu (no Peru) e depois querem ir à Amazónia, mas a do Peru fica mais distante e então vêm aqui", explica.

"Quem já foi às Galápagos pode sentir-se desiludido porque lá é que se vêem de certeza tartarugas e isto e aquilo", reconhece. No entanto, o Yasuní tem mais surpresas, e é uma experiência mais pessoal: "Outras pessoas preferem a experiência aqui, porque nunca se sabe o que se vai encontrar... e não nos estamos sempre a cruzar com outros barcos e mais turistas, como nas Galápagos", diz Juanca. Para os amantes de aves, então, é um paraíso.

Talvez a Amazónia do Equador passe a ser mais procurada pelos amantes da natureza a partir deste ano, pois entraram em vigor em Fevereiro restrições no acesso às ilhas Galápagos, para as proteger da pressão turística: os visitantes só podem ficar quatro dias e cinco noites, no máximo, e cada embarcação só pode acostar a uma das 14 ilhas uma vez a cada duas semanas, seja qual for a sua envergadura e número de passageiros.

A ameaça do petróleo

Mas não muito longe dali paira a ameaça do petróleo: no canto nordeste do parque, na fronteira com o Peru, estão 19% das reservas comprovadas de petróleo do Equador, num bloco petrolífero denominado ITT (as iniciais de Ishpingo, Tampococha e Tiputini). Apesar de ser reserva da biosfera da UNESCO, os loteamentos petrolíferos são anteriores à sua classificação, e o facto de ali estarem 846 milhões de barris de petróleo faz com que o Equador não consiga virar costas facilmente à possibilidade de extrair o crude que destruiria a floresta.

Ainda assim, o Presidente Rafael Correa tenta preservar a sua consciência verde: garante que o país manterá o petróleo na terra, se o mundo der uma ajuda. O petróleo dos lotes ITT valia em 2007, quando a ideia foi lançada, 7,2 mil milhões de dólares. Se a comunidade internacional contribuir com metade desta soma (3,6 mil milhões) ao longo de pelo menos 10 anos, o Equador não extrairá o petróleo. Esse dinheiro será colocado num fundo, gerido pelo Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) para desenvolver projectos de energias alternativas ao petróleo - sobretudo hidroeléctricas de grandes dimensões, mas também outros de cariz social (ver http://mdtf.undp.org/yasuni). Mas o projecto tem tido alguma dificuldade em vingar.

De canoa pelo bosque

Mas enquanto os políticos e os homens do petróleo ajustam as suas contas em Quito, nós estamos na barriga da selva. No silêncio pontuado de gritos, cantos, chilreios e outros sons indefiníveis, que nos pegam ao colo desde que entramos no rio Napo e sobretudo desde que nos metemos pelos estreitos canais, como quem viaja pelas artérias de sangue verde da Amazónia. Sentimo-nos engolidos por um gigante, a viajar por dentro do seu corpo.

Navegar numa canoa a remos pela Amazónia é ser uma folha a deslizar à superfície da água. Não nos sentimos intrusos na floresta. Avançando lentamente pelos túneis de vegetação, rentes à água, sentimo-nos parte do imenso organismo vivo que é tudo aquilo: o verde e o negro dos pontos mais escuros, onde parece que estamos num filme de terror, nos restos de uma civilização arruinada, comida pela selva, ou os locais mais iluminados, onde há flores gordas e lânguidas a cair sobre a água e as borboletas se derramam sobre nós como uma chuva feliz de pétalas coloridas.

Macacos-esquilo, pequenos e com mãos cor-de-laranja, como luvas compridas e elegantes, penduram-se de ramos mesmo por cima das canoas onde viajam os humanos, que estudam com despudor. Saltam de ramo em ramo sem se preocuparem onde vão aterrar. Pelo barulho que se ouve, algumas aterragens não devem ser nada suaves... As folhas e ramos abanam como se houvesse uma tempestade.

"Estão a lutar", explica Juanca, para justificar o comportamento tão exuberante destes macaquinhos que são caçados por falcões, águias e boas constritoras - estamos no território das lendárias anacondas, que apertam as presas para as matar. "Vivem em bandos de 20 a 60 indivíduos, mas não formam pares estáveis", diz o guia, sempre a falar dos macaco-esquilo. "Os machos estão a disputar quem tem direito a reproduzir-se". Por isso estão a dar tanto nas vistas, arriscando-se a ser o almoço de algum predador.

Papagaios automedicados

O Yasuní é um paraíso para os amantes de aves. Um dos espectáculos mais inebriantes (e desconcertantes) do parque natural é o do morro onde os papagaios vão comer argila.

O que se nota primeiro é a algazarra ensurdecedora que fazem, embora estejamos num troço de rio aberto e amplo, numa canoa grande, a motor. Uns ficam a sobrevoar a zona, dando gritos de alerta para a debandada geral se aparecer algum predador, enquanto os outros debicam, ferram o bico afincadamente, na colina vermelha de argila, enchendo a barriga de terra. Quando se fixam os bichos com os binóculos vê-se um verdadeiro arco-íris de penas: azul, amarelo, vermelho, verde. Alguns comem tanto que quando largam a parede de argila quase rasam a água, com a barriga pesada.

Por que é os papagaios vêm comer argila aqui nos saladeros?

"Há várias teorias. Pode ser uma forma de neutralizar toxinas dos alimentos que consomem. Por exemplo, dos caroços da fruta, que têm alcalóides, substâncias tóxicas, como as da cocaína, que afectam o fígado. Os papagaios precisam de metais como cobre, alumínio e magnésio para as neutralizar, como quem toma um medicamento para acalmar o estômago", diz Juanca. "Outra teoria é que a argila serve para limparem as moelas, tal como as galinhas comem pequenas pedras para esse efeito."

Noutro local, os turistas acumulam-se numa plataforma - esta não é alta, como a de observação de aves acima das árvores. Esta é como um coreto à volta do qual os humanos se sentam em banquinhos, acomodando-se para verem os papagaios acumularem-se junto a uma reentrância na rocha, uns em cima dos outros, à espera da sua oportunidade de comer terra.

Esta geofagia é algo que muitos animais fazem naturalmente, e que faz parte do elenco da medicina tradicional, como receita para neutralizar a acção de substâncias tóxicas. A automedicação dos papagaios parece ser, afinal, algo de profundamente natural.

Banho de águas negras

É através de um trecho mais desafogado, sem vegetação a criar abóbadas que não deixam passar os raios de sol, que se chega de canoa ao Napo Wildlife Center, que fica numa lagoa de águas negras. A água é desta cor porque aqui a vegetação tem muitos taninos, os químicos que tornam o vinho tinto e o café escuro. Nada tem a ver com a poluição, garante Juanca. "Torna é as águas mais ácidas, o que faz com que haja menos mosquitos." Uma boa notícia, portanto, porque esta área do Equador é uma zona de malária (é preciso fazer profilaxia).

Cabanas de madeira circulares, distribuídas ao longo de um morro pouco elevado, entre palmeiras e flores. É ali que vamos ficar. "Trouxeram o fato de banho? Quem quiser nadar na lagoa, é ali à frente, os caimões ficam sempre cá para trás e de qualquer forma dormem durante o dia", diz Juanca. Uuups, caimões? E piranhas, há? "Ah, exagera-se muito sobre as piranhas..."

As cabanas vistas à distância dão vontade de ficar ali a descansar quando se entra: rede mosquiteira que envolve a cama como um véu, telhado muito alto e bicudo, quase até ao chão, de construção tradicional, uma rede à entrada. Mas faz demasiado calor. Um duche com a água que, apesar de filtrada, ainda é escura - toda a água que se bebe e que se usa para cozinhar vem de Coca, a cidade mais próxima, porque a água do rio nunca perde esta cor - dá uma sensação de frescura durante mais ou menos dois minutos. Depois começa-se a suar outra vez. Até chegar a frescura da noite, não vale a pena pensar nisso.

O que é preciso é arranjar calçado adequado para andar na floresta amazónica. Andar na selva é duro. As nossas pernas citadinas, os nossos sentidos afinados para estarem alerta a carros, semáforos, multidões em contramão, não nos prepararam para o terreno irregular, por vezes enlameado, cheio de folhas secas e raízes, ramos que nos esbofeteiam. E a humidade, claro - na floresta não há ar condicionado.

Chinelos nem pensar, sapatos caros de caminhada também não é propriamente o que se impõe. Do que realmente precisa para andar na floresta - além de um chapéu e de um cantil - é de... galochas. Nunca se sabe quando vai acabar com a perna enterrada na água, ao tentar entrar para a canoa andando sobre uns troncos caídos... no Napo Wildlife Center estão apetrechados com todos os números para os turistas imprevidentes. Mas é bom levar peúgas extra.

As três pedras de Helena

É assim que nos apresentamos no Centro de Interpretação criado pelas mulheres da Comunidade Añangu: Helena fez de anfitriã, mostrando músicas, danças e os objectos que as mulheres quíchua tradicionalmente fabricam e usam. Em jeito de boas-vindas, Maribel canta e toca um tambor feito de uma carapaça de tartaruga - "que é um dos grandes instrumentos da floresta", explica Helena. "É um convite para a festa, para que todos cantem e dancem", diz, à laia de tradução da canção.

As mulheres andam descalças, de cabelos soltos, lisos, camisa rosa às florinhas, saia larga, de folhos azuis. São pequeninas mas têm os ombros largos, tal como os homens, rosto sorridente. A sua especialidade é fazerem bijuteria da selva com sementes, das mais variadas formas, cores e tamanhos. Mas das suas mãos conhecedoras saem outros milagres, como a bolsa extremamente maleável e leve que se pode usar de qualquer maneira que se imagine - a tiracolo, cruzada, à cabeça -, cestas ou até cobertores, feitos de lianas e outras plantas da floresta.

Na cabana aberta, construída sem um único prego - a maloca -, onde Helena mostra como é a cozinha e a despensa quíchua, há assentos a toda a volta em forma de animais: tartarugas, jaguares, sapos. "Estas três pedras, sobre as quais se faz o fogo e assenta a panela, são as três prendas mais importantes que um casal recebe quando se casa. Simbolizam o lar. São o pai, a mãe e o filho", explica, apontando as pedras de três tamanhos diferentes. "As pedras são raras no Napo superior", justifica o guia Luís Garcia, para explicar a importância da prenda de casamento.

É sobre estas pedras que se cozinha e que se prepara, todas as manhãs, o chá de guayusa, para despertar. É uma bebida aparentada com o chá de yerba mate, popular na América do Sul, mas é feito com uma erva nativa da Amazónia equatorial (Ilex guayusa). Tem mais anti-oxidantes que o chá verde, menos cafeína que o café mas mais que o chá preto. Algumas empresas norte-americanas estão a comercializar o chá de guayusa. "Antigamente, quando não havia galochas, os homens lavavam as pernas e os pés com o chá para afastar as cobras venenosas", conta Helena, a anfitriã da casa na floresta.

O sabor é bom - sabe a chá. É bem menos problemático que a célebre chicha, a bebida que na Amazónia equatoriana se faz de yucca, a mandioca que é a base da alimentação.

Antigamente, as mulheres mastigavam este tubérculo e cuspiam o líquido, que era usado para fazer a bebida. A saliva desencadeava a fermentação, que fazia desta uma bebida alcoólica, cujo grau aumentava com o passar dos dias. Hoje, garante o guia Luís Garcia, usa-se uma enzima tirada de uma planta que faz as vezes da saliva e da mastigação.

A chicha branca, fresca, é dada às crianças. Sabe a iogurte azedo - é preciso gostar, ou desenvolver um gosto por esta bebida da floresta. À medida que passam os dias, vai escurecendo, e vai-se tornando mais alcoólica.

Fecha-se os olhos...

O que falta contar desta viagem Amazónica, breve mas intensa, é o que acontece quando o sol desce no horizonte, quando já se comeu a refeição da noite, e o ar, ao relento, tem uma frescura agradável, já sem a humidade quente que transforma a pele numa poça constante durante o dia. Quando o cansaço das emoções do dia - iniciado bem cedo, antes de o sol ter começado a levantar-se, antes mesmo de os animais acordarem! - pede ao corpo que descanse. Aí, a cabana de construção tradicional fica surpreendentemente fresca.

Quando os véus da rede mosquiteira estão fechados, as luzes apagadas, ouve-se o silêncio - que não é como na cidade, não é a simples ausência de ruído. É um silêncio cheio, orgânico, que nos embala. As noites passadas no Yasuní foram as noites mais bem dormidas. De sempre?

A Fugas viajou a convite do Governo do Equador

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