Veneza, espelho nosso

A 11ª Exposição Internacional de Arquitectura da Bienal de Veneza balança entre a deriva formal e a má consciência. Lá fora, no Canal Grande, Eduardo Souto de Moura e Ângelo de Sousa montaram porto em terra firme para a disciplina.

Num lugar irreal, refém das suas imagens e dos seus reflexos, é difícil perceber o que se passa à volta. "Veneza não tem significado. O seu faz-de-conta indica que ela é apenas linguagem. A imagem que apresenta exprime a crise e o conflito da cultura - não a sua utopia ou forma," resumiu Massimo Cacciari. O filósofo italiano, que preside aos destinos da cidade desde 2005 e já antes ocupara o cargo entre 1993 e 2000, conclui: Veneza é um lugar em crise permanente. Em crise com os seus elementos (cercada numa guerra impossível com as águas da laguna Veneta), em crise com a sua cultura (reduzida a um parque temático de si mesma).

A bienal, como sinal do moderno na cidade, nada mais faz que acompanhar o barco: os "estados das artes" desfilam fantasiosos, entre a feira profissional e o turismo cultural. Este ano cabe à arquitectura a sua mostra, dirigida pelo norte-americano Aaron Betsky. O título Out There. Beyond Building (Lá fora, além do edificado) vai no sentido contrário da edição anterior, na qual Richard Burdett defendeu o "regresso ao real" das cidades e suas áreas metropolitanas. Betsky, por seu lado, faz a apologia da imaginação como forma de superar os constrangimentos da realidade. Na melhor das hipóteses (a que descarta o cinismo), trata-se de um imenso equívoco crítico.

Muitos dos nomes seleccionados para demonstrar o argumento foram absorvidos pelos mercados da especulação imobiliária e política, aos quais fornecem os necessários objectos de desejo e consumo. Não se antevê nessa transacção uma imediata capacidade de ruptura com o statu quo. A experimentação fica pois reduzida a uma nova forma de academismo, à manipulação das linguagens. Talvez que o espírito fosse recordar os pioneiros da Accademia del Disegno, que Giorgio Vasari fundou em 1563 e da qual Andrea Palladio (1508-1580) foi membro. Mas a obra do mais ilustre arquitecto do Veneto esclarece que à máxima experimentação corresponde sempre a consciência de um tempo e de um lugar.

A estrada novíssima

Ancorado a um tempo e a um lugar, o Arsenale é um complexo de estaleiros navais que a partir do século XII garantiu a supremacia militar e comercial de Veneza, La Dominante. Na alvorada da fabricação em série foi ao mesmo tempo arquitectura e aparelho, hoje é uma máquina fora de circulação. Nas longas naves da Corderie (cordoaria), a bienal de Betsky expõe a sua tese, não por acaso contaminada pelas tecnologias. Os participantes apresentam instalações alusivas ao tema, de grande escala e maiores recursos. O dispositivo é eficaz, organizado ao longo de um percurso axial numa parada de estatuária. Os resultados, todavia, são pouco claros ou mesmo inconsequentes.
Bombardeado por uma artilharia de periféricos - sensores, monitores, projectores -, o futuro da arquitectura é futurista, com a promessa de uma "experiência total" enlaçada por geometrias entre a botânica e a aeronáutica. Nas palavras de um comentário mais mordaz, "uma feira de peças de automóveis". A exposição celebra os seus modelos e muitos dos arquitectos "desconstrutivistas" - Asymptote, Coop Himmelb(l)au, Zaha Hadid, Frank Gehry - que Mark Wigley e Philip Johnson apresentaram há 20 anos no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Apesar das diferenças de estilo, perpassa a mesma convicção que a forma liberta. Na sua deriva, desdobrada em efeitos de pirotecnia e sentido de griffe, ela basta-se a si própria. Lugar e real são abstracções, informáticas.

Dois exemplos, para concretizar. Os UNStudio de Ben van Berkel e Caroline Bos exibem um changing room, um espaço em suposta mutação. Por analogia os autores referem a alta costura e a sua habilidade para passar do verso ao reverso. Na verdade, o produto final não é mais que a enésima variação do Korova, o bar onde os rufias da Laranja Mecânica de Stanley Kubrick beberricavam copos de leite. Quanto à execução, o fato é de fraco corte, porque as juntas do tecido não casam com as curvas que morrem em bainhas onde o pó se acumula: o material tem sempre razão. Nem a cintilação das imagens em movimento no seu invólucro produz o desejado caleidoscópio, esta expansão sensorial já foi testada à saciedade em qualquer rave com a devida combinação de audiovisuais e psicotrópicos.

Faunos seminus dedilham guitarra e acariciam-se, espraiados num plinto branco rente ao chão. Outra plataforma mais elevada marca um diferencial de temperatura criado pelo calor vindo de fortes projectores de luz (em baixo) e pela refrigeração de um circuito de água (em cima). Este é o Digestible Gulf Stream de Philippe Rahm. A instalação do suíço tem a virtude de fazer valer o seu ponto com "baixa tecnologia": pulverizar a arquitectura e confiar no corpo humano como hardware e software superlativo. O microclima de Rahm pode ainda ser ingerido sob a forma de malaguetas e pastilhas de mentol. Não sendo o humor, genericamente falando, apanágio dos helvéticos, só mesmo pela ironia se aprecia esta reconstituição dos swinging sixties numa swinging city.

É pois importante que a exposição se disponha ainda assim a voltar atrás, a outras experimentações como as de Roma Interrotta. Em 1978 12 arquitectos redesenharam os 12 sectores da Nova Planta de Roma, elaborada por Giovanni Battista Noli em 1748. O mapa original representa a cidade com incrível precisão, uma anatomia consolidada pelo tempo. Interrompida pela especulação imobiliária e pela ausência de planos ordenadores, Roma foi confiada em fragmentos às propostas de Leon e Robert Krier, Colin Rowe, James Stirling, Aldo Rossi ou Robert Venturi. Coube ao último adivinhar a ponte transatlântica que também liga Veneza a Las Vegas, sua congénere: a cidade é uma miragem. Coube a outro participante, Paolo Portoghesi, confirmar o "regresso à história" com a sua Strada Nuovissima na bienal de 1980. Se a mesma anunciou os caminhos do pós-modernismo na arquitectura - e a falência dos seus maneirismos -, resta saber qual é o prazo de validade desta "estrada novíssima" e das suas quimeras.

Para um futuro melhor

No outro braço da bienal, os Giardini, navega-se em contramão. Aos paraísos artificiais "além do edificado" respondem beneméritas a antropologia, a sociologia, a ecologia.

O antigo pavilhão italiano conclui numa babélica exposição o tema dos experimentalismos; o excesso de informação desaba sobre o visitante. De relance fica uma instalação algo esquemática (mais ninhos e bambus) de Herzog & de Meuron com o artista chinês Ai Weiwei. Fica ainda Koolhaas HouseLife, o delirante filme de Ila Bêka e Lousie Lemoîne sobre as aventuras de Guadalupe Acedo numa obra-prima da arquitectura contemporânea. Guadalupe é mulher a dias na famosa Casa de Bordéus de Rem Koolhaas e prima afastada do Senhor Hulot, o alter-ego de Jaques Tati. Uma obra feliz, HouseLife contrapõe à linhagem modernista da casa a memória da sua sátira visual.

Sob o signo do Koolhaas estão também as aguarelas de Madelon Vriesendorp, sua mulher. Estas imagens oníricas fizeram a sua aparição em Delirious New York, o "manifesto retroactivo" da "cultura de congestão" publicado pelo holandês em 1978. Sob as siglas OMA e AMO, as suas inquietações ainda são as nossas: da amoralidade da arquitectura até ao seu mais brutal realismo. Não deixa de encantar o regresso a um projecto tão seminal quanto o The Peak de Zaha Hadid, um clube privado para Hong Kong que ficou no papel. Mas 20 anos passados sobre ele o virtuosismo dos painéis e das maquetas deu lugar a outra forma de expediente: a massificação do "desenho criativo".

Nas representações nacionais, para absolver esta ascensão e queda da arquitectura, a Noruega advoga o regresso ao "bom selvagem" (com roulottes e ABBA), a Dinamarca evangeliza sobre o ambiente e os Estados Unidos da América abrem as portas com uma horta biológica e filmes institucionais sobre inserção social nos projects. O fardo do homem branco persegue o G8 e no pavilhão da Alemanha toma mesmo proporções wagnerianas com o desarmante título Projectos para um futuro melhor. É duvidoso que tanto aparato seja sustentável com a retórica da sustentabilidade. Ao lado, o pavilhão do Japão explica porquê. O interior está vazio e é todo branco, as paredes vão-se fazendo notar por esfumados nas superfícies. São ilustrações a grafite de utopias verdes, no limiar da ingenuidade. Desta economia de meios - um lápis e a mão que desenhou com ele - surge, evanescente, uma atmosfera.

O regionalismo ainda é crítico e coube ao Reino Unido ser fleumático para mostrar, simplesmente, (boa) arquitectura. Trata um problema concreto, a habitação (de médio rendimento, entenda-se), no contexto concreto do mercado imobiliário (inflacionado antes, agora em queda livre). Os cinco participantes, entre os quais Sergison Bates e Tony Fretton, apresentam obras e projectos "na medida do possível". São trabalhos em continuidade, devedores de outros contributos: o exemplo de Alison e Peter Smithson, o neo-realismo de Mário Ridolfi e do programa INA-Casa, o sentido de civilidade que Álvaro Siza vem traçando há 50 anos.

A fechar, uma retrospectiva de Sverre Fehn no pavilhão dos países nórdicos. O edifício projectado pelo arquitecto norueguês entre 1958 e 1962 articula a expressão de um "novo humanismo" com uma eloquência não superada no seu trabalho. É também a mais bela construção nos Giardini, que conta com obras de Carlo Scarpa e James Stirling. O porte monumental das vigas cruzadas na cobertura dá lugar, no chão, ao esbater do dentro e do fora, da natureza e do artifício. A luz coada e as árvores rompendo o tecto amplificam essa comunhão. Uma "experiência total," enfim.

Eu sou um monumento

Que grau de visibilidade é legítimo esperar de um país periférico como Portugal? Apesar da internacionalização da sua arquitectura e do prestígio crítico que goza, convém não alimentar muitas expectativas quanto à geopolítica das "indústrias de conteúdos". Por condição e constrangimento a representação portuguesa continua em trânsito, numa itinerância que a levou do Arsenale aos Giardini e agora ao Canal Grande.

Um antigo armazém de mercadorias entre as pontes do Rialto e da Accademia, o Fondaco Marcello, recebe a intervenção de Eduardo Souto de Moura e de Ângelo de Sousa. O arquitecto e o artista plástico dão a volta ao texto e tomam à letra o partido da bienal, "lá fora, além do edificado". Lá fora: o projecto realiza-se fora do recinto, na jurisdição da cidade. Além do edificado: o projecto é a construção temporária de um espaço virtual.

No exterior, um plano de 19 metros por 12 cobre a fachada do Fondaco. O plano foi revestido com painéis espelhados e suspenso por uma estrutura de aço, que perfura o interior do armazém através dos vãos. O lastro que serve de contrapeso a esta consola vertical está depositado na sala de ingresso, pela qual se acede ao armazém. Transfigurado por quatro cantos e dois planos de espelhos, com mais propriedade se pode falar aqui de verso e reverso, o dentro e fora sugados pelos reflexos das imagens. Mas no intervalo fica o peso da arquitectura. "A arquitectura deve ser como um icebergue, gélida, pétrea, mas com o dobro da massa invisível que é o que a faz existir," escreve Souto de Moura.

O espelho no Canal Grande rasga um precedente efémero, ainda assim radical. Ao corpo embalsamado da cidade encosta os materiais da modernidade e desfere um golpe sobre o escaparate. Se o escândalo já não é possível, fica a experiência do choque com que a modernidade carburou. O trajecto de vaporetto no meio de turistas tira as dúvidas quanto à visibilidade do trabalho, só não vê quem não quer ver. Comissariada por José Gil e Joaquim Moreno, Cá Fora: Arquitectura Desassossegada é uma representação ambiciosa do país, porque contribui para a consciência que "o sítio é específico". Em Veneza, Souto de Moura e Ângelo de Sousa foram venezianos e aplicaram uma máscara de espelhos ao cenário, fizeram um capriccio. Posto ao nível dos outros palácios, ao nível da ilusão, o Fondaco Marcello faz-se notar: "Eu sou um monumento."

Na versão original - I am a monument - a frase de Robert Venturi está nas parangonas de um cartaz publicitário que promove um edifício indistinto. Neste triunvirato - slogan, billboard e shed - tudo se resume à comunicação, uma profecia que não perdeu sentido. Mas depois da comunicação, depois de Venturi, fica o que não pode ser dito. Talvez por isso valha concluir com um monumento moderno. A Ópera de Sydney de Jørn Utzon é um acto soberano de transformação de um lugar, além do edificado. Ao lado da Accademia, no Palazzo Franchetti, uma óptima exposição sobre o arquitecto dinamarquês mostra essa e outras aventuras da imaginação: a aliança do artesanal e do industrial na Igreja de Bagsværd (1976), a rara sensibilidade local da sua casa em Maiorca, a Can Lis (1971). Junto à água - entre Sydney, Veneza e Las Vegas - a bienal encontra terra firme.



 

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