Uma aldeia, um festival, uma lição para o futuro

Foto
Entre 16 e 19 de Agosto. Este ano, Cem Soldos receberá o maior Bons Sons de sempre. Quatro dezenas de concertos, numa mostra eclética e intergeracional: a voz de Vitorino e a bateria siamesa dos PAUS; o jazz de Maria João & Mário Laginha e o blues de Legendary Tigerman; o fado idiossincrático de António Zambujo e as canções surpreendentes d"Os Passos em Volta; a ponte Luanda-Lisboa de Batida e a música experimental de Gabriel Ferrandini & Pedro Sousa

Cem Soldos é uma aldeia nas proximidades de Tomar que, desde 2006, montou algo que a colocou no mapa: um festival dedicado à música portuguesa chamado Bons Sons. Numa altura em que os festivais são cada vez mais acontecimentos padronizados, urge descobri-lo. Porque é um acontecimento cultural, uma experiência social e, no limite, um manifesto político.

Aqui fazem-se coisas. Ao sol inclemente, dois homens serram madeira para construir as placas a que darão uso daí a duas semanas. Protegidos pela sombra da árvore e de um pequeno armazém, outros dão cor e inscrições às placas cortadas: Bons Sons, indica uma das muitas dezenas que vão nascendo no estaleiro. Aqui, ao lado do campo de futebol pelado, seis voluntários trabalham para construir o que a placa indica. Um festival de música chamado Bons Sons que não é apenas um festival de música. Trabalham sem receber. A recompensa deles será outra.

Ao Largo do Rossio, centro nevrálgico da localidade, entramos na sede do Sport Clube Operário de Cem Soldos (SCOCS), aldeia da freguesia da Madalena a cinco quilómetros de Tomar. Na sala, muitos pares de olhos fixos em computadores portáteis e ouvidos colados ao telefone: o trabalho de bastidores carburando em bom ritmo. No salão adjacente, várias avós e duas netas aglomeradas à volta de uma mesa. Nela, estão dispostas dezenas de porta-chaves, colares de lã, pequenas lagartixas de pano coloridas, em forma de lua. As lagartixas, alcunhadas "tixas", estão a ser preparadas às centenas desde Março pelas mãos sábias que se dividem entre o pano, o crochet da lã e o meticuloso enrolar de pequenos papéis que servirão de rifas. Avós e netas trabalham desde Março. A sua recompensa é manterem-se activas, colaborar, participar.

Na sede do SCOCS, e por toda a aldeia em que, na tarde abrasadora de final de Julho, poucos se aventuram pelas ruas, prepara-se o que está quase a chegar. Aproxima-se o quarto Festival Bons Sons. Bienal, teve primeira edição em 2006 e, daí para cá, fomos reparando cada vez mais nele. É um cliché que soa verdadeiro: o Bons Sons é um festival diferente. O Bons Sons, criação de uma jovem geração de cem soldenses que atraiu toda a comunidade de cerca de mil habitantes, é mais que um festival. Montra da actualidade e diversidade da música portuguesa (dela se faz 99 por cento do cartaz), experiência comunitária (envolve os habitantes da aldeia em todas as actividades e todas as fases do projecto) e projecto de futuro que se alarga bem para além dos dias em que uma pequena localidade é invadida por algumas dezenas de milhar vindas de todo o país - o Bons Sons funciona como oficina de formação para quem nele trabalha e que no processo aprende vários misteres, da montagem de palcos à promoção de imprensa, e serve de base a todo uma série de projectos que, tendo a dinâmica cultural como base, pretende fazer de Cem Soldos um exemplo.

Luís Ferreira, director artístico do festival, designer em Lisboa que volta todos os fins-de-semana à terra onde nasceu, mostra-nos a sala na sede do SCOCS que será um dos palcos do festival, recuperada através do "Cria o teu espaço", workshop de design de interiores, restauro, electricidade e pintura, por miúdos entre os 10 e os 15 anos que estão agora responsáveis pela preservação do mesmo. Mostra-nos, depois disso, a Casa Aqui Ao Lado, que é precisamente isso, o edifício separado da sede por um pátio que será transformado em hostel rural e residência artística, ou o Projecto Aldeia, através do qual se oferecerão condições à população mais idosa de Cem Soldos e das aldeias próximas para envelhecer activa e inserida na comunidade, em vez de armazenada numa qualquer instituição. "Costumamos dizer que "os velhos são o futuro"", diz Luís, que fala rápido e com clareza, com entusiasmo fundado na realidade, na certeza que é possível fazer. Há outra coisa que ele costuma dizer. Cita a mãe: "Barco que não tem rota, não aproveita vento algum".

Em Cem Soldos, há uma equipa de "operários culturais" - e que bem sabe ouvir a expressão nestes tempos em que a ideologia dominante faz guerrilha semântica trocando trabalhadores por colaboradores - a seguir uma rota definida. Os projectos estão bem estudados, orçados, profissionalmente preparados, envolvendo filhos da terra, como o arquitecto Henrique Narciso, estruturas autárquicas ou fundações com a Gulbenkian. Mas afinal é ou não de um festival de música que aqui se fala? Certamente.

Este ano, entre 16 e 19 de Agosto, Cem Soldos receberá o maior Bons Sons de sempre. Quatro dezenas de concertos, numa mostra eclética e intergeracional: a voz de Vitorino e a bateria siamesa dos PAUS; o jazz de Maria João & Mário Laginha e o blues de Legendary Tigerman; o fado idiossincrático de António Zambujo e as canções surpreendentes d"Os Passos em Volta; a ponte Luanda-Lisboa de Batida e a música experimental de Gabriel Ferrandini & Pedro Sousa. Seis palcos, um deles entregue ao projecto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria, uma sala de exposições, uma mostra de cinema e uma apresentação teatral. É certamente de um festival que falamos. Mas mais: o Bons Sons é um acontecimento cultural, uma experiência social e, no limite, um manifesto político. Num momento em que, como nos diz Pedro Coquenão, o homem por trás de Batida, "a política está completamente cega com números, e nos números não existem pessoas, apenas zeros e uns", esta entreajuda através da qual uma população se empenha para não receber nada mais em troca que o desenvolvimento da sua comunidade (empenho solidário, desenvolvimento segundo as suas regras) é, obviamente, "política". Que nós, provincianos da cidade, não nos deixemos enganar.

Olhamos para o cartaz do Bons Sons, navegamos pelo site interactivo, alojado em www.bonssons.com, onde Cem Soldos ganha vida digital e pensamos, naturalmente, na perspectiva muito aliciante a olhos urbanos de passar quatro dias a ouvir da melhor música que por cá temos num ambiente bucólico, entre tascas, petiscos e a paisagem natural ao alcance de um par de passos. Provincianos seremos se não ouvirmos Luís Ferreira: "Chateia-nos essa ideia de que o futuro está na cidade e que o passado está na aldeia". Cem Soldos não quer ser um postal ilustrado, uma realidade presa numa falsa ideia de pureza intocada, pitoresca.

"Aldeia vermelha

A origem do nome Cem Soldos é incerta. Diz-se que ali se erguia um posto de defesa militar, na época da reconquista cristã, formado por cem homens a que se distribuía regularmente um pagamento de cem soldos. Diz-se também que ali se erguia uma quinta, pertença dos Cavaleiros de Cristo, a quem eram pagos cem soldos de renda. Se a origem é incerto, não há dúvidas que, em meados do século passado, como sucedia em qualquer aldeia do país, Cem Soldos era para quem nela vivia todo o mundo que existia. Tudo era longínquo - até Tomar ali tão perto.

Mas Cem Soldos, dizem-nos, era especial. Em 2010, quando visitámos a aldeia no dia anterior ao início do festival, Rui Mourão, um dos produtores, contava-nos que não sabia explicar de onde vinha a tradição comunitária que parece inscrita na genética do local. Desde que se lembrava que se organizavam mostras de teatro, festas musicais e outras actividades ligadas à cultura. Contava-nos que o SCOCS até tem presidente, mas a sua autoridade é "informal". As decisões são tomadas em conjunto, ouvindo todos. Rui contou-nos também que Cem Soldos era conhecida como "a aldeia vermelha" e que talvez isso explicasse "o sentido comunitário". Dizia-o e acrescentava, incerto de que a classificação explicasse o que quer que fosse: "A verdade é que eu já nasci com isto".

Luís Ferreira sorri quando, caminhando pelas ruas da aldeia para nos mostrar todos os espaços onde se erguerá o Bons Sons, lhe falamos do que nos dissera o amigo Rui Mourão. "É uma "aldeia vermelha" onde o PCP nunca ganhou". Ficou a ideia que aquela cor, politicamente, implica. E outros pormenores importantes, ligados à estrutura social de Cem Soldos: "Mesmo com as grandes distâncias a que tudo parecia estar, havia desde há muito uma ligação forte a Lisboa, por causa das famílias abastadas que traziam cá os amigos e que promoviam acontecimentos culturais". Tudo isso potenciado pela estrutura urbana da aldeia: "O sentido comunitário de Cem Soldos existe por causa da associação e do Largo [do Rossio]. Outras aldeias, que tenham apenas ruas, sem um espaço como aquele, não poderiam tê-lo". O Largo do Rossio, onde se ergue a Igreja de São Sebastião, é como que um terreiro amplo povoado de algumas árvores. Ali estará o palco principal do Bons Sons. Dali partimos com Luís Ferreira à descoberta do festival que ainda não existe.

Em 2010, o festival teve a sua edição mais concorrida de sempre. Ao longo de três dias, passaram por Cem Soldos trinta mil pessoas. Este ano, o festival crescerá em número de dias (serão quatro) e em dimensão. Haverá mais palcos, mais parques de estacionamento, mais espaço para campistas, mais ambição. Há quem critique esse desejo de crescer e de chegar a mais gente. Porque isso levará a Cem Soldos gente que não "partilha o espírito" do festival, dizem, manifestando essa vontade de que o postal ilustrado se mantenha enquanto tal: um refúgio para uma realidade cristalizada e imutável. Querer algo assim, porém, é não perceber aquilo que aqui nasce. "Hoje em dia, com a internet, ninguém está à frente de ninguém", aponta Hélio Morais, baterista que irá apresentar-se no festival em dose dupla: com os PAUS e com os Linda Martini. "Já não estamos tão dependentes do espaço que habitamos".

Uma das coisas mais interessantes nesta aldeia que visitámos quando ainda só podíamos ver a azáfama de quem trabalha e, ouvindo, imaginar o que nascerá ali na próxima semana, é existir em verdadeiro desejo de fazer sem descaracterizar, envolvendo todos, usando aquele espaço, as suas pessoas, os seus edifícios e a sua tradição comunitária. A aldeia respira, viva, e transforma-se sem perder a essência. O Bons Sons é, de dois em dois anos, o momento em que somos convidados para testemunhá-lo. E é impossível não ficar sensibilizado e entusiasmado com o que ali se vê. Vitorino, que ocupa em 2012 o lugar de patrono que foi de Fausto há dois anos, surgindo como cabeça de cartaz do último dia, chama-lhe "uma pérola rara neste mainstream de festivais que conhecemos". Mário Laginha, ao telefone desde Itália, diz-nos que está "roído" para conhecer a aldeia e o festival. Para ele, será uma honra participar: "É um grande exemplo de comunidade, de como envolver as pessoas, de como se pode viver de outra maneira, de como podemos ser todos cúmplices".

O crescimento do festival em 2012 tem de ser visto como uma justa necessidade. "Sendo feito por voluntários, não havia receitas. Assim sendo, alguma coisa falhava. O trabalho pro bono é bom e válido, mas é preciso devolver algo, é preciso emprego". Os estudos efectuados mostram que o Bons Sons gera 750 mil euros em toda a região e que tem potencial para crescer até um milhão. "Gera mais dinheiro que a Festa da Aleluia [tradição cristã pagã, realizada no fim-de-semana de Páscoa, com uma história de quatro séculos]".

Escala humana

No fim da edição 2010, escrevemos o seguinte: "Num momento em que os festivais são cada vez mais acontecimentos padronizados, o Bons Sons é aliciante. Caminhando pelas ruas da aldeia, parando nas suas tascas e cafés ou procurando a sombra dos beirais quando o calor aperta, é como se a personalidade do local se inscrevesse na genética do festival". Em 2012, tal será mais verdade do que nunca. Pedro Coquenão, que não conhece Cem Soldos, mas que investigou a história do Bons Sons e recolheu informações junto de músicos e amigos sobre o que ali se faz, diz-nos uma coisa curiosa: "Este festival parece-me uma coisa muito moderna no conceito. E muito portuguesa. É óbvio que alguns festivais utilizam a palavra sustentabilidade como arma de arremesso comercial, ali parece real". Centremo-nos na palavra "moderno". "Vivemos com esta ideia de que o desenvolvimento exige que se faça cada vez mais e maior. Quando damos por nós, quanto está tudo tão grande, percebemos que, na realidade, ficámos pior. E voltamos a compreender a diferença entre o que é comida boa e barata e um hambúrguer mal amanhado, entre um festival sem alma que não passa de um amontoado de artistas e um festival que promove a proximidade e que nos oferece algo realmente novo".

Num momento em que vivemos colonizados pelo discurso económico e pela lógica do marketing, em que nos impingem a ideia de que tudo é vendável, que tudo tem um preço e que o dinheiro não tem moral; quando somos nada mais que caras anónimas num oceano de consumidores, talvez que algo como este Bons Sons e tudo o que o rodeia não seja acontecimento a "contracorrente" da lógica dominante. Coquenão quer acreditar que não. "Precisamente ao contrário. É ser a favor da corrente de um rio, e não de um canal que foi construído". É recuperar uma escala humana perceptível e actuante. Luís Ferreira: "Vivemos numa aldeia que acredita e por acreditar faz. A frase é um bocado "kumbaiá", mas é assim que somos." Em Cem Soldos faz-se.

Comprovámo-lo sem ver tudo o que será o Bons Sons - as grandes estruturas só começam a ser montadas hoje, de forma a tornar toda a produção o menos incómoda possível aos habitantes da aldeia. Uma frase ecoou-nos pela cabeça durante toda a tarde: "Na cidade o espaço público não é de ninguém, na aldeia é de todos".

Caminhamos então até à antiga eira, que será transformada no Palco Eira, precisamente, onde tocarão PAUS, Os Velhos ou Linda Martini. Era o local onde se fazia a secagem dos cereais, a sua função primeira, mas também espaço de festas, de dança, de convívio. "Queremos devolver essa vivência à comunidade", diz Luís, enquanto aponta para um grande portão de madeira. É por ali que gostaria que o público entrasse para os concertos, vindo da Casa dar Artes - "ando a namorar o proprietário para tentar consegui-lo, com calma e sem pressões, porque só se junta quem quiser". A Casa das Artes, onde estará patente a exposição conjunta "Uma Intervenção Na Actualidade Portuguesa" - na imagem que a apresenta vê-se uma caixa vidrada com um cravo no interior e no vidro lê-se "quebrar em caso de necessidade" -, é um antigo armazém recuperado: manteve-se a identidade do espaço, sem o desvirtuar, mas transformou-se-lhe a função, ofereceu-se-lhe um futuro.

Atravessando o casario e conduzindo um quilómetro até a um terreno de carvalhos, entramos naquele que será o parque de campismo do festival. Há poucas semanas, o silvado subia até aos primeiros ramos das árvores. Agora, está preparado. O terreno foi limpo por voluntários em parceria com uma empresa de Cem Soldos e, naturalmente, o proprietário que o cedeu gratuitamente agradeceu o trabalho. Mais: as silvas e a madeira recolhidas durante a limpeza foram esmagadas e reutilizadas no adubar de terrenos agrícolas de Cem Soldos - a vertente ecológica e a ideia de sustentabilidade não são palavras vãs neste festival.

Regressados à aldeia, descendo pelo cruzamento de ruas onde será montado o Palco Giacometti, encontraremos o espaço multi-funções onde veremos Não Me Importava de Morrer Se Houvesse Guitarras no Céu, o último filme de Tiago Pereira, ou a peça See You Later Alligator, de Goreti Mourão e Sofia Sena, duas criadoras do concelho de Tomar que protagonizam a primeira co-produção do Bons Sons. O edifício, antiga Casa do Povo, mostra de forma exemplar a forma como a noção de reaproveitamento e a recusa do desperdício está inculcada: ali encontramos o Centro de Saúde, mas também um auditório com 120 lugares criado pela população.

Como é que tudo isto nasce? Como é que se cria um espírito comunitário e essa vontade de fazer para e pela comunidade? Pedro e Vítor Cartaxo, dois primos, o primeiro integrante da direcção do festival, que se atarefam na construção das placas sinalizadoras junto ao campo pelado, não conseguem responder melhor que isto: "É o espírito da aldeia. É diferente." Trabalham há duas semanas ininterruptamente, continuarão a trabalhar enquanto o festival decorre. Bendito suor.

Mais acima, no Largo do Rossio, no Café da Tonita, que era o "Casimiro" e onde, entre uma bica ou uma míni, se pode tomar o pulso à vida em Cem Soldos, a senhora atrás do balcão conta-nos que não há muitos dias um homem de uma aldeia próxima lhe dissera que, se tivesse podido escolher a aldeia onde nascer, teria escolhido esta. Di-lo com a naturalidade de quem já ouviu declarações semelhantes mais que uma vez. Quanto ao Bons Sons, só tem um lamento. Desde 2006, tudo o que dele viu esteve limitado pelo enquadramento da janela e da porta do café. "É preciso atender os clientes e fazer dinheiro". À sua frente, o homem que se entrega à nobre tarefa de esvaziar um copo de tinto, mantém-se na defensiva. Que já viu que vão montar-lhe um palco à porta de casa, que o festival pode ser muito bom, mas a aldeia fica cheia e é uma confusão. "Deixe lá isso que é só de dois em dois anos", atira-lhe a mulher. Ele encolhe os ombros e continua a esvaziar o copo de tinto. Esta reacção não surpreende Luís Ferreira. Segundo ele, há três momentos na relação de vários cem soldenses com o Bons Sons. "Primeiro baixam-se as expectativas com receio que não possa não correr bem. Depois cresce o entusiasmo quando ele acontece. No fim, surge o orgulho: "Cem Soldos faz!""

Na sede do SCOCS, mãos enrugadas continuam a trabalhar com precisão nas "tixas". Ali não há dúvidas. O que pensam do festival? "Ah, gosto tanto de ver a minha aldeia cheia de gente".

Pequeno resumo para despedida: haverá festa na aldeia e a avó está feliz. Mas a festa é só a ponta do icebergue. Cem Soldos quer mais. Mostra-nos mais.

Sugerir correcção