Um estádio do tamanho de um apartamento

Foto
No Verão de 2010, Samantha viu-se com "uma série de canções pop a sério"

Samantha Urbani começou a preparar as canções disco-pop-funk-girl group dos Friends no Verão de 2010 e há seis meses a BBC indicava já a sua "banda de apartamento" como um dos grupos a ter debaixo de olho e dentro dos ouvidos em 2012.

Samantha Urbani nunca foi de acreditar que a linha da sua vida teria de ser paralela às dos demais. Sempre foi adepta da vagabundagem, de não estar parada à espera do que pudesse vir ter consigo, de não acreditar no ensino como algo com morada fixa e professor com mesma cara e mesmo nome dia após dia. "Nunca tive um sentido linear da escola ou até da minha vida", confessa. E foi por isso que a ida para a universidade como cúmulo do ensino secundário não foi interpretada pelos seus olhos como obrigatoriedade legal. "Sempre acreditei no ideal de que podemos ensinar-nos tudo aquilo que quisermos e que não precisamos de ter uma qualquer nota que quantifique a nossa inteligência". Daí que sobre o fundo disco-funk de Mind Control (espécie de tema dos Chic em tempo de bola de espelhos para montar e pendurar em casa) seja fácil ouvi-la a cantar que pode: fazer as suas leis, ser o seu deus, cultivar a sua comida, dispensar os padrões de beleza impostos, ser a sua escola e prescrever-se a sua "medicação" para combater estados de espírito indesejados.

Mas a boca de Samantha não diz aquilo que ela não faz. Aos 16 anos, morreu-lhe o irmão, a família começou a girar numa espiral de desamparo e as pouco claras regras sociais que tentavam empurrá-la para o habitual percurso académico tornaram-se ainda menos sólidas. Em vez de aceitar o jogo de provar o seu potencial perante as universidades possíveis, achou que havia outras coisas mais importantes: "Queria viajar muito, trabalhar em filmes e música, conhecer gente. Sempre senti uma necessidade grande de exploração e de nomadismo". E ao invés de reproduzir a típica viagem de autodescoberta em confronto com mundos estranhos - da Europa à Ásia -, reuniu os trocos necessários para comprar um reles carro e subsidiar viagens sem rumo pelas estradas dos EUA, partindo de Nova Iorque. O carro durou até chegar à Califórnia, depois abandonou a companheira de viagem e Samantha foi-se desenrascando para chegar a Porto Rico e, finalmente, decidir voltar. Mas não andava à procura de epifanias. A ausência de rumo era-lhe confortável.

"Fui agarrando as coisas conforme chegavam e sentia ser o certo nessa altura." Uma das primeiras coisas que realmente agarrou e lhe fez sentido foi uma guitarra num flea market a meio do caminho. Trinta dólares compravam-lhe então a possibilidade de ir compondo umas canções que ninguém lhe ouvia e que serviam como pequeno depósito de familiaridade diária na sua vida em trânsito. "Houve uma manhã em que estava a guiar há 12 horas, o sol estava a nascer e tive de encostar na berma da estrada e compor uma canção".

Guia de viagem

Nada disto fez parte de um plano. Eram composições transitórias, vindas ao mundo com bilhete marcado para o cemitério das canções logo em seguida. Até que, no Verão de 2010, Samantha viu-se repentinamente com "uma série de canções pop a sério", das quais gostava o suficiente para acumular os níveis mínimos de coragem que lhe permitiram mostrá-las a um par de amigos músicos - Matthew Molnar e Nikki Shapiro. Achou inclusivamente que eram canções merecedoras de formar-se uma banda que as tocasse. Mas a sua falta de jeito para com uma situação de compromisso era tal que depois de Matt e Nikki se entusiasmarem Samantha respondeu-lhes fugindo dois meses para Berlim. E foi-se convencendo de que só tinha uma razão para voltar para Nova Iorque: formar a banda e matar a curiosidade do que seria daquela música se ganhasse corpo.

Quando voltou, tudo ajudou a que nascessem os Friends. Deixara o apartamento alugado, voltou descobrindo-o parcialmente destruído e roubado. Depois, Lesley Hann e Oliver Duncan pediram-lhe guarida durante uma semana enquanto não lhes expulsavam os percevejos de casa. Samantha mostrou-lhes as tais canções, começaram logo a ensaiá-las, fizeram-no todas as noites e no final da curta estada deram o seu primeiro concerto numa festa caseira ainda sob o nome Perpetual Crush. Se num apartamento nasceram, por lá continuaram.

A curta carreira dos Friends foi arrancando precisamente em concertos de apartamento, cenários caros a Samantha que gosta da inexistência de palcos e de poder dançar com e tocar no seu público. "Gosto muito da ética por trás dessa cena musical DIY [do it yourself] - salas que são geridas por pessoas que adoram música e querem ter bandas de que gostam, e em que os concertos são abertos a quem quiser aparecer. Gostava que fosse assim em todo o mundo". A energia dessas actuações é irreprodutível à medida que as salas crescem e fazem parte de um circuito mais oficial, acredita Samantha. Não é a mesma coisa tocar para um público verdadeiramente apaixonado e pouco interessado em quantas capas de revista a banda já fez, e tocar para quem calhou ir a um concerto quando poderia ter dedicado a mesma noite a visitar o cinema ou fazer umas quantas compras. "Podemos tocar em qualquer lado, mas tenho saudades de tocar em salas DIY a toda a hora. Mas, que se foda", ressalva, "tocaria também num estádio. Quero ser como o Bruce Springsteen".

Claro que num estádio dificilmente os Friends conseguiriam levar a cabo a dança de proximidade e desmontagem de hierarquias que Samantha propõe. "Quero que esteja toda a gente no mesmo plano e que o público não esteja parado à espera que as músicas e depois o concerto acabem. Quero que toda a gente se divirta e retire o máximo da experiência". Por isso - é comprovar a 14 de Agosto, em Paredes de Coura -, Samantha costuma ignorar limites e saltar para o meio do povo, tocar-lhe, cobrir-lhe os olhos com as mãos ou agarrar-lhe a cabeça e agitá-la. Há quem reaja com esgares de desconforto perante uma situação potencialmente intrusiva, algo que a vocalista interpreta como "o medo da proximidade" criado por este mundo em que vivemos atrás de computadores.

Afinal, Friends é nome de banda para poderem dizer We are Friends e valer nos dois sentidos, mas também uma tentativa de resgatar a palavra da usurpação das redes sociais "que levaram a que perdesse algum do seu significado de fraternidade, cooperação e comunidade". Aqui não há cliques, há o toque de alguém que acredita na música enquanto prazer táctil, no regresso em força das cassetes e que não consegue comprar discos em vinil porque a) não tem dinheiro desde os 14 anos; b) está sempre a mudar-se e os discos são pouco práticos para transportar.

Esta dificuldade de transporte dos vinis poderá vir a ser tema do livro sobre a vida na estrada que Samantha está a preparar e que deverá abordar outros tópicos como: o porquê do uso de cogumelos ser preferível ao álcool quando se está em digressão; a dieta certa para não cair no regime de fast food+batatas fritas+chocolates; como é possível fazer ioga numa carrinha; e como é imprescindível passar mais tempo produtivo, lendo ou desenhando ou escrevendo letras, do que a navegar sem objectivo na internet durante as longas horas de ligação entre cidades. O charme da falta de rumo não é pois igual para todas as situações.

Ver crítica de discos págs. 30 e segs.

Sugerir correcção