Santos que não estamos bem a ver quem são

Na quarta-feira, como acontece todos os anos, os lisboetas vão sair à rua para demonstrar quão preconceituosos são. Refiro-me, como nenhum leitor percebeu uma vez que não tem por hábito perder tempo a reflectir sobre parvoíces, à segregacionista celebração do Santo António. Como um dos chamados "Santos Populares", Santo António é um santo de classe alta. Para ele é tudo à grande. Pudera, pois se é "popular"! Toda a gente aprecia os populares. Mas, e os outros, os Santos que não estamos bem a ver quem são? Ninguém liga aos que são apenas vagamente reconhecidos. Aqueles de quem a cara até não é estranha, mas escapa-nos o nome. "Ontem rezei ao santo, o... ai!, aquele, o coiso ou lá como é que se chama." Este apartheid da santidade é fruto da sociedade obsessivamente competitiva que discrimina entre quem tem popularidade e quem é anónimo. Ninguém se lembra dos outros santos do 13 de Junho. É por isso que quarta-feira, quando Lisboa estiver a festejar o Santo António, eu vou honrar o outro santo que também é celebrado a 13 de Junho. Creio que se chama Ávito. Enquanto toda a gente estiver num arraial a cantar marchas, a cheirar manjericos e a comer sardinhas, eu vou estar não sei onde, a cantar não sei que música, a cheirar não sei que vegetal e a comer uma bifana. É que, de tanto nos borrifarmos nele, não sabemos como festejar o Santo Ávito. A bifana é porque vou ter fome.

Santo António é um privilegiado. Nasceu rico, estudou, viajou pela África e pela Europa e um ano depois de ter morrido já tinha sido santificado. Ou seja, era tão popular que alguém deve ter metido uma cunha. Toda a gente recorre a ele, seja para se casar, seja para encontrar o comando da televisão perdido no meio das almofadas do sofá (como se sabe, o sucesso do casamento depende muito do uso diligente do comando da televisão). É tão famoso que até julgam que é o padroeiro de Lisboa. Falava com os peixes, o que podia ser apenas um sinal de demência, não fosse o caso de os peixes o ouvirem. Convenceu uma mula a preferir a hóstia a um fardo de palha. Enfim, executava milagres com categoria. É o Cristiano Ronaldo com uma auréola.

Já Santo Ávito era conhecido na sua terra como "o idiota", por ser um bocadinho simplório. Começou como ermita, depois foi abade, um cargo que até quis recusar por não se considerar à altura. Ora, ser abade consiste sobretudo em beber e comer bem. Quem é que não está a altura disso? Um ano depois de ter morrido, ainda não tinham encontrado o corpo. Nem dois anos. Só ao fim de 70. A hagiografia de Santo Ávito não é lá muito hagiográfica.

Normalmente só recorrem a Santo Ávito as mulheres com partos complicados. Até nisso Santo António é o menino querido das súplicas: só trata das partes giras do engate, do casamento e da concepção. Da parte que aleija, dar à luz com dor, trata ali o Santo Ávito. Mal o bebé está cá fora e passou o perigo, esquecem-se outra vez do Santo não sei quantos. E provavelmente vão chamar António à criança. Ávito é que não chamam de certeza. Eu não conheço nenhum Ávito. O máximo que ouvi falar foi de um superavit, mas já não se vê um superavit em Portugal há muitos anos.

Sugerir correcção