Quer ajudar uma criança haitiana? Não a adopte

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ROBERTO SCHMIDT/AFP

Há um termo para as adopções em situações de crise humanitária: "adopções cowboy". Contribuem para gerar mais confusão em países onde se vive uma situação terrível. Levar as crianças para o estrangeiro deve ser o último recurso. Por Francisca Gorjão Henriques

No Haiti, 40 por cento da população tem menos de 14 anos. E também 40 por cento das crianças vivem na pobreza absoluta. Uma em cada dez morrerá antes de chegar aos cinco anos. Cerca de 300 mil são escravas, ou restaveks, como se diz em crioulo. Outras tantas vivem em orfanatos.

Todos juntos, estes dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ) - recolhidos ainda antes de o sismo ter arrasado com o pouco que havia no país mais pobre do hemisfério ocidental - podem levar a conclusões precipitadas. Sobretudo se lhes adicionarmos a agravante de pelo menos 50 mil crianças terem perdido os pais com o terramoto do dia 12 de Janeiro (esta será apenas uma estimativa, porque ninguém poderá dizer com certezas quantos órfãos existem agora no Haiti, e há até quem fale em um milhão).

O melhor é tirar as crianças dali e permitir que recebam carinho, educação, cuidados médicos e conforto em qualquer país pronto para as receber. Certo?

Laura Silsby não parece ter dúvidas de que essa era a vontade de Deus. Foi por isso, diz, que se meteu num autocarro com 33 crianças haitianas, dos dois meses aos 12 anos. Ela e mais nove missionários norte-americanos. O seu destino seria o estado de Idaho, onde fundou o New Life Children"s Refuge, ligado à igreja baptista de Central Valley. Foi ainda antes de chegarem à República Dominicana que a polícia os deteve. Não tinham papéis, nem autorizações oficiais.

Veio a saber-se depois que a maioria dos meninos não eram sequer órfãos. Foram parar às mãos dos norte-americanos porque muitos dos seus pais foram convencidos de que esta seria a única forma de darem um futuro aos filhos. O mesmo impulso que leva frequentemente os pais haitianos a deixar as crianças com famílias de mais posses no país (o termo "restavek" vem do francês "rester avec", ficar com), onde depois são forçadas a trabalhos domésticos ou, mais grave ainda, transformadas em escravas sexuais. E ainda o mesmo impulso que os leva a dar os filhos para grupos de adopção que não são mais do que redes de tráfico internacional de menores.

Há 33 meninos ainda assustados na Aldeia SOS de Santo, perto de Port au Prince. O austríaco Georg Willeit trabalha naquela instituição, onde as crianças levadas pelos missionários foram alojadas a pedido do Governo haitiano. "Vão cá ficar até o Ministério da Segurança Social decidir se voltam ou não para os pais", diz por telefone ao P2. "Não sabemos exactamente quantos são órfãos porque alguns são ainda muito pequenos, ainda não falam. E porque não há papéis. Mas pelo menos 20 têm família."

As crianças começam agora a sentir-se mais seguras, têm o que comer, onde dormir, carinho e atenções. "Mas alguns ainda estão confusos por acharem que nunca mais vão ver os pais", continua Willeit.

Para os missionários, esta era "a coisa certa a fazer". Para o primeiro-ministro haitiano, Max Bellerive, trata-se simplesmente de "tráfico ilegal de crianças". É dessa acusação, já formalizada pelo Ministério Público, que os cinco homens e cinco mulheres terão agora de se defender, num processo que, ao que tudo indica, decorrerá mesmo no Haiti. À acusação de sequestro junta-se ainda a de "associação criminosa".

Não é raro o tráfico de crianças haitianas - estima-se que, antes do terramoto, 200 mil eram levadas anualmente do país. E alguns observadores comentam que o Governo de Port au Prince pode querer fazer deste caso um exemplo de como está disposto a travar os sequestros.

Seguir as regras

Também para a Unicef as coisas são bastante claras: "Não se pode chegar e levar uma criança, independentemente do país onde estamos", reagiu o porta-voz Kent Page numa conferência de imprensa. "Há processos que têm de ser seguidos. Não se pode agarrar numa criança e sair do país com ela, mesmo que as intenções sejam boas." Mesmo que esta seja "a mais grave crise de protecção de crianças alguma vez vista", como descreveu na quinta-feira Hilde Johnson, directora-geral adjunta da Unicef.

A Convenção de Haia, criada em 1993, estabelece como prioridade que as crianças órfãs fiquem primeiro com alguém da família. Se isso não for possível, que sejam adoptadas no seu país. Só em último recurso se avança para uma adopção internacional. E, isto, se for considerado "do melhor interesse da criança".

"O Haiti não é signatário da Convenção de Haia, por isso as práticas de Haia não se aplicam aqui", diz por e-mail ao P2 E. J. Graff, directora associada e investigadora do Schuster Institute for Investigative Journalism da Universidade de Brandeis (Boston), com vários trabalhos sobre adopção internacional. "Mas o Haiti tem as suas próprias regras muito apertadas de adopções internacionais."

Num artigo frequentemente citado e publicado em 2008 na revista Foreign Policy, intitulado "The Lie We Love", Graff escreveu que "muitos dos bebés que são adoptados por pais ocidentais não são de todo órfãos". E que "muitas agências de adopção internacional trabalham não para encontrar casas para crianças necessitadas, mas para encontrar crianças para casas ocidentais".

A autora refere ainda que o número de adopções internacionais - que alguns artigos citam como "síndrome Angelina-Brad", referindo-se aos actores de cinema que são pais adoptivos de crianças de diferentes países - passou de 22 mil em 1995 para 40 mil em 2006.

A catástrofe no Haiti fez também disparar os pedidos de adopção. Em Portugal, alguém confessou a uma agência que ficar com uma criança que tenha passado por uma situação tão traumática seria "o sonho de uma vida". Já E. J. Graff refere que "esta é definitivamente a altura errada para tentar adoptar uma criança do Haiti, ou para tentar levar crianças para fora do país sem a documentação apropriada".

Neste momento, e devido à situação caótica em que o Haiti mergulhou ainda mais profundamente, os pedidos de adopção estão todos congelados. Os processos que já estavam próximo de ser concluídos foram acelerados, e centenas de crianças estão já com as suas novas famílias nos EUA, Canadá, Holanda... Mas com o sismo, muitos papéis, processos e identidades ficaram entre os escombros. E não se sabe quando é que as novas adopções poderão voltar a arrancar.

O exemplo do tsunami

Para Georg Willeit, há um tempo de espera que tem de ser respeitado. "Há uma clara posição da ONU, de organizações como a Unicef, que dizem que depois das catástrofes é preciso tentar encontrar os familiares: pais, avós ou família alargada, como tios, primos. Isto pode durar meses, até porque há crianças que não falam, não sabem dizer os nomes, as moradas, e não há documentação. O mínimo é esperar um ano." E dá um exemplo para mostrar como vale a pena o esforço: "Com o tsunami [em 2004] achou-se que haveria milhões de órfãos. Agora, afinal, muitas crianças estão com as suas famílias."

A criação de "espaços seguros" como os que foram criados pela Unicef no Haiti (uma espécie de orfanatos) já tinha sido experimentada em Aceh, na Indonésia, depois do tsunami. E cerca de 90 por cento dos acolhidos encontraram depois algum membro da sua família.

"Em situações destas [catástrofes] há todo o género de grupos de caridade e religiosos com as melhores intenções", comentava à BBC Richard Danziger, chefe do contratráfico do International Office Migration. "Mas não é assim que se resolve. Não ajuda a uma situação já confusa. Crianças sem documentação são levadas e as suas famílias ficam sem saber o que lhes aconteceu." Esta é, nas suas palavras, um tipo de "adopção à cowboy". "Não só é contra a lei, mas é aproveitar-se das pessoas que já estão numa situação terrível."

Recorde-se o exemplo da Arca de Zoe. Os membros desta associação de caridade francesa foram detidos num aeroporto do Chade em Outubro de 2007, quando se preparavam para levar 103 crianças para França. Alegaram que eram órfãos da guerra no Darfur, no vizinho Sudão. Uma investigação das Nações Unidas concluía mais tarde que não só não eram órfãos como eram naturais do Chade. Não só não estavam feridos como foram seduzidos com doces a entrar em autocarros, praticamente à porta de casa.

O Presidente chadiano, Idriss Déby, acusou o grupo de pertencer a uma rede de pedofilia e de explorar a crise para vender as crianças em França. Os arguidos argumentaram que tinham sido enganados pelos intermediários e que apenas queriam salvá-las de morrer à fome. Mas ainda que assim fosse, violaram várias leis: a adopção não é permitida nem no Chade nem no Sudão; e a França também criminaliza adopções sem processos oficiais. Foram condenados a oito anos de prisão.

O diário Independent recordava recentemente um exemplo honroso de uma saída em massa: o programa Kindertransport, durante a II Guerra Mundial, que salvou dez mil crianças do regime nazi, levando-as para o Reino Unido.

Mas mesmo seguindo todos os trâmites, respeitando papelada e burocracia, esperando os prazos previamente determinados, esta poderá, ainda assim, não ser "a coisa certa a fazer".

"A posição das Aldeias SOS é muito clara: [deve-se] tentar manter as crianças nas suas raízes", diz Willeit. "Elas já perderam tanto! Se as levarmos para fora, perdem ainda mais a sua identidade. A adopção é o último recurso."

Também para Louise Fulford, conselheira da organização Save the Children, a prioridade é manter as crianças nas suas "comunidades, no seu grupo étnico e nas suas culturas", cita a BBC. E defende um prazo de dois anos para que uma criança possa ser adoptada. "Isso dá tempo para localizar os familiares. Na maioria das catástrofes, podemos encontrar membros da família. Leva tempo. Entretanto, agências humanitárias dão prioridade às crianças que ficaram sozinhas, que são levadas para centros de acolhimento. As agências trabalham dia e noite para localizar crianças que ficaram entregues a si próprias."

Se alguém se dispõe a ajudar, acrescenta Graff, será muito melhor que apoie os serviços humanitários já existentes, como os que a Unicef, as Aldeias SOS Criança e o Save the Children garantem.

Georg Willeit adianta que o objectivo da sua organização é acolher 300 crianças em Aldeias SOS no Haiti. Mas é preciso ajuda. "Só trabalhamos com donativos", diz. "Estamos há 25 anos no Haiti, temos boas relações com o Governo, mas a situação é ainda caótica. Para nós, o que é urgente agora é criar as estruturas: casas-de-banho, cozinhas, tendas. Estamos a distribuir entre quatro mil e cinco mil refeições por dia nas comunidades mais pobres."

Na Aldeia SOS de Santo, onde estão as 33 crianças que os missionários norte-americanos queriam levar para fora do país, existem 19 casas, descreve o funcionário austríaco. Cada uma tem entre seis e dez meninos, e cada casa tem uma mãe SOS, que cozinha, trata da roupa, ajuda nos trabalhos de casa, acorda as crianças de manhã para irem para a escola... "Não somos um orfanato, damos cuidados familiares." Por isso, a conclusão é muito rápida: "É melhor ficar nas nossas organizações do que ir para fora. Nós somos família."

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