Que farei com os meus livros?

Eduardo Lourenço doa hoje parte dos seus livros à biblioteca que tem o seu nome, na Guarda. É o destino natural das bibliotecas e acervos dos escritores. Enriquecem e mediatizam instituições nas suas terras e prestam um serviço aos investigadores. Por trás da doação há quase sempre uma ligação afectiva

a "Que farei com estes livros?" Muitos escritores portugueses fizeram esta pergunta "à Saramago", principalmente quando o passar dos anos, associado ao rarear do espaço das suas casas, os confrontou com o destino a dar às suas bibliotecas e arquivos.Regra geral, uma biblioteca vai parar a... uma biblioteca - é o seu destino natural. Mas nem sempre o caminho é assim tão linear: muitas vezes, os espólios transitam para os familiares dos escritores e acabam por se dispersar e, nalguns casos, vão parar a alfarrabistas ou a leilões, com a aleatoriedade que isso sempre implica.
Ultimamente, contudo, parece haver alguma preocupação por parte dos escritores portugueses mais velhos em tratar dos destinos dos seus acervos (bibliotecas e/ou arquivos) ainda em vida. Em alguns casos, eles mesmos tomam a iniciativa, pelas razões mais utilitárias e afectivas: doam-nos a bibliotecas, nacionais, municipais ou locais, ou acedem a solicitações e desafios que lhes são lançados. A personalização e manutenção dos seus acervos reunidos costumam ser bons argumentos para convencer uns e outros - com a decorrente mais-valia para as instituições escolhidas pelo doador.
Hoje mesmo, no dia em que celebra o seu 85.º aniversário, Eduardo Lourenço formaliza na Guarda a doação de parte da sua biblioteca à Biblioteca Municipal da cidade em cujo concelho nasceu (em 1923, em São Pedro de Rio Seco, Almeida), e à qual foi já atribuído o seu nome. "Tenho quase vergonha de o dizer, mas eles acham que o nome faz algum sentido", disse o filósofo ao P2, com modéstia.
Para o autor d"O Labirinto da Saudade, a biblioteca da Guarda - cujo novo edifício, ainda em construção, deverá ser inaugurado só em Novembro - é um destino lógico para os seus livros, pela circunstância afectiva e biográfica que o liga à terra.
A mesma cidade acolhe também já, numa pequena biblioteca escolar do 1.º ciclo, algum património de outro filho da terra - do poeta Manuel António Pina (n. Sabugal, 1943), que para aí doou parte da sua biblioteca pessoal, por "razões afectivas óbvias", diz, como aquelas que o levaram a oferecer outros livros a outra pequena biblioteca escolar no Porto, onde vive. "Sinto que os livros, muitas vezes, são mais rentabilizados numa biblioteca mais pequena do que nas caves da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), onde se perdem no meio de tanto espólio", diz o autor de Os Livros.
Foi também a razão afectiva e biogeográfica que levou Mário Cláudio (n. Porto, 1941) a ter já decidido doar o seu arquivo pessoal (manuscritos, correspondência, recortes e testemunhos áudio e vídeo, excluindo a biblioteca, que "está destinada a um familiar") à Câmara de Paredes de Coura. Vai ser instalado na velha escola primária de Venade, que vai ser adaptada para o efeito num lugar da freguesia de Ferreira, onde o escritor tem uma casa de campo desde o final da década de 1980.
O poeta e advogado António Osório (n. Setúbal, 1933) começou já a distribuir os núcleos do seu arquivo e da sua biblioteca de mais de 20 mil volumes por diferentes lugares e instituições. O arquivo literário foi entregue à BNP. Boa parte da biblioteca jurídica foi para a delegação de Setúbal da Ordem dos Advogados (OA) e, ainda nesta área, a valiosa colecção que possui da legislação jurídica portuguesa desde 1667 irá para a OA-Lisboa. Já a poesia vai para a Casa Fernando Pessoa - "é a casa dos poetas", justifica Osório -, mas há ainda muitos livros (entre eles uma colecção "única em Portugal" de literatura italiana contemporânea), cujo destino está por decidir.
Menos óbvia é a razão pela qual António Lobo Antunes, o autor de O Meu Nome É Legião, decidiu doar o seu acervo à futura Casa da Literatura de Torres Novas. O escritor não quis falar sobre o assunto, mas o presidente da câmara, António Rodrigues, explicou ao P2 que há também "um vínculo afectivo" no processo, por via familiar, já que um seu irmão, o arquitecto Pedro Lobo Antunes, vive em Torres Novas há vários anos, onde é o actual vereador do Urbanismo na autarquia. Assim, as primeiras edições dos livros de Lobo Antunes, os seus manuscritos, fotografias, prémios e outros objectos pessoais irão integrar a Casa da Literatura, que vai ser instalada no edifício que é hoje a câmara municipal, quando esta passar para as novas instalações.
O historiador José Mattoso decidiu, há uma década, dar os seus livros e documentação, "sem qualquer condição que não seja o usufruto", ao Campo Arqueológico de Mértola, terra que escolheu para viver a sua reforma. "Já fiz a entrega formal, mas os livros continuam em minha casa, para os meus trabalhos. Depois, o Campo Arqueológico de Mértola pode fazer deles o que entender", diz o historiador, que com o gesto realça a importância da investigação desta instituição no "reconhecimento de legado islâmico na História de Portugal".
Floresta de livros
O que é que leva estes escritores, poetas e historiadores a desfazerem-se, ou a tratar do destino dos seus livros, ainda em vida? As razões mais comuns são de ordem prática e utilitária. Mas nem todos se libertam com a mesma facilidade e desapego dos seus volumes.
Eduardo Lourenço, que diz ter "uma biblioteca modestíssima", não esconde que lhe custa a ideia de se desfazer dos livros que, mesmo no reconhecido caos da sua (des)organização, adornam o seu quotidiano na casa que habita em Vence, no Sul de França.
"Sei que os meus amigos estão a desfazer-se dos livros. Mas eu preciso de ter os meus todos os dias. Eles estão ali, e eu vivo entre eles como numa floresta. Incomoda-me não os ter. Mas, por outro lado, descansa-me saber que irão ficar nalgum sítio em que serão úteis para os outros", diz o filósofo e ensaísta.
É por isso que Eduardo Lourenço, que na Guarda deixará cerca de três mil volumes da sua biblioteca em português, também já pensou em doar os seus volumes em francês à Universidade de Coimbra, "se eles os quiserem receber". Mas, isso, só lá mais para a frente. "Não me quero desfazer já deles. Isso seria uma morte em vida. Eu preciso deles todos, sobretudo quando sinto que não encontro aquele de que preciso no momento."
Este apego aos livros confessado por Eduardo Lourenço não é sentido do mesmo modo por todos os autores. "À medida que envelhecemos, a nossa ligação com as coisas torna-se mais ténue e desvanece-se a noção de posse da juventude", diz Mário Cláudio, que vê agora as suas coisas como "bens transitórios". José Mattoso concorda: "Nunca tive apego a coisa nenhuma. As pessoas passam, não podemos levar nada connosco. O que é importante é poder ser útil para alguém, esse é o melhor destino para os livros."
A inevitabilidade (e a aproximação) da morte traz para esta equação o sentido da posteridade? "Não vejo uma biblioteca como um sepulcro funerário", diz o historiador. Mário Cláudio vê na posteridade "uma maneira de perpetuar os afectos", servindo os outros. "Interessa-me poder transmitir as metodologias da minha vida, que foi também um ofício", justifica o autor de Camilo Brocca.
Foi também por esta razão que António Osório correspondeu ao desafio do director da BNP, Jorge Couto, de doar à instituição a sua colecção de manuscritos, correspondência, fotografias e arquivos de imagem e som. "Foi um cerco muito amável do director, e as instalações da BN são muito boas", diz o poeta-advogado.
Na BNP, o acervo de António Osório foi fazer companhia a outros 136 que, desde 1981, constituem os fundos do Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea. A responsável deste serviço, Fátima Lopes, enumerou para o P2 alguns outros escritores vivos que já doaram acervos à BNP, como Ana Hatherly, José-Augusto França, Manuel Villaverde Cabral (um sociólogo ex-director da biblioteca) ou José Saramago, que aí depositou parte da sua correspondência e o manuscrito de O Ano da Morte de Ricardo Reis.
"As pessoas começam a confiar nas instituições para receber os seus patrimónios", nota Fátima Lopes, explicando que à BNP não interessam as bibliotecas propriamente ditas - esses livros estão nas bibliotecas de depósito legal -, mas principalmente os acervos que possam ajudar, no futuro, os investigadores a estudar e conhecer melhor os respectivos percursos e relações criativos.
Estas são também outras vias com que os escritores asseguram a posteridade. Porque "todos vivemos em função de eternidades", como recentemente disse António Lobo Antunes em entrevista à revista Visão (28/09/2007), em que confessava também "a serenidade" e a "distância" que tinha conquistado depois de viver de perto a experiência da inevitabilidade da morte, na sequência de um cancro. "Estive muito perto da morte, e palavra de honra que é muito mais fácil do que se imagina."

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