Portugal como no cinema

Foto
RUI GAUDÊNCIO

Leonor Areal percorreu três décadas de cinema português em busca de um retrato do país. Isto é Portugal tal como o imaginámos no grande ecrã.

Cinema Português: Um País Imaginado (Edições 70), a investigação de Leonor Areal sobre as representações que os portugueses criaram de si próprios no seu cinema, divide-se ao meio pelo 25 de Abril de 1974, analisando a forma como os portugueses se viram em duas épocas marcantes da história recente do país: a vida sob o Estado Novo e a nova liberdade adquirida com a revolução. "O país imaginado é o conjunto de todos os filmes, tal como o país é o conjunto de todas as suas cidades, vilas ou pessoas", diz a autora ao Ípsilon, especificando que excluiu da sua análise os documentários e os filmes históricos para se concentrar na ficção que, ao longo desse período de 30 anos, lidou com a sociedade que era sua contemporânea. Ao percorrer essas obras no ANIM (Arquivo Nacional de Imagens em Movimento), a investigadora descobriu "não como vivíamos, mas como as pessoas achavam que nós vivíamos".

Os dois volumes de Cinema Português: Um País Imaginado acabam por cobrir a produção nacional entre meados dos anos 40 e o final do século XX. Contudo, grande parte da investigação acaba por se focar nas décadas de transformação: a tentativa de instaurar uma indústria cinematográfica portuguesa, nos anos 40 e 50, que respeitasse a visão de sociedade defendida por Salazar (uma sociedade patriarcal sufocante, retraída nas ambições sociais e moralista nos comportamentos); e a possibilidade de um "cinema digno", com o discreto surgimento de um autor de inspiração neo-realista (Manuel Guimarães) e o marcante Cinema Novo, inspirado pelas novas vagas europeias, nas décadas de 60 e 70 (Paulo Rocha, Fernando Lopes, António da Cunha Telles ou António-Pedro Vasconcelos, entre outros). "Durante a ditadura, o cinema era condicionado pela existência de uma censura muito punitiva", explica Areal. "O Fundo do Cinema Nacional escolhia os filmes a financiar através de uma selecção da mediocridade. É por isso que Manoel de Oliveira, durante 30 anos, não fez uma longa-metragem de ficção [entre Aniki Bóbó (1942) e O Passado e o Presente (1972)]."

Contudo, o estudo de Leonor Areal não assenta numa oposição total entre dois paradigmas. O seu interesse está em descobrir as mutações de uma sociedade filme a filme, independentemente dos objectivos estéticos ou das origens da produção. "O cinema conformista e resistente coexistiam, são pontos de vista diferentes sobre um mesmo país", explica a autora. "Em 1963, Os Verdes Anos, de Paulo Rocha [foto de cima] passa-se nas Avenidas Novas, em Lisboa, tal como Pão, Amor e Totobola, de Henrique Campos [foto de baixo]. A estrutura social que representam é a mesma, mas um coloca-se no ponto de vista do pequeno burguês que anseia ter um carro e joga no Totobola, enquanto Os Verdes Anos descreve uma realidade social do ponto de vista da criada e do sapateiro." O filme de Rocha, obra marcante do nosso cinema sobre uma sociedade sufocante, "tem uma importância enorme, é o primeiro filme em que o realizador é também argumentista." "Mas se virmos filme a filme, a transformação é gradual e contínua. A atenção aos serviçais da classe burguesa [presente em Os Verdes Anos] já aparecia no anterior Pássaros de Asas Cortadas [Artur Ramos, 1963]. Cada filme traz algo de novo."

O estigma

Após a revolução, surge a vontade "de encontrar uma nova identidade nacional" no cinema português, explica Areal. "Depois do 25 de Abril, o cinema é completamente diferente daquele que tinha o condicionamento da censura", argumenta Leonor Areal. Como se o cinema português se virasse, finalmente, para uma reprodução mais profunda da vida no país, depois do teatro forçado do Estado Novo. "Vai-se à procura das raízes no campo, tal como fizeram os românticos do século XIX, como Garrett e Herculano no liberalismo, um período de liberdade de expressão." É a explosão do documentário, tanto sob a forma de retratos do interior do país, como de obras que juntam o real às formas da ficção (Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro, 1976; Veredas, de João César Monteiro, 1978), num movimento já anunciado pelo incontornável Acto da Primavera (1963) de Manoel de Oliveira, obra influente sobre o seu e o nosso tempo.

Se Cinema Português: Um País Imaginado acaba por não cobrir anos mais recentes, tal deve-se à prioridade que a investigadora entendeu dar à construção de uma memória do passado, operação que estava por fazer. Metade do trabalho são sinopses dos filmes, ou seja, aquilo de que precisava quando comecei a minha investigação e não encontrei." Ainda hoje, os portugueses mantém uma relação difícil com o seu património, sobretudo aquele que funciona como espelho. "Temos uma relação difícil com a memória do nosso cinema, talvez porque não o vemos suficientemente", defende Areal. "Foi um problema que deu origem ao meu trabalho: interessava-me fazer uma investigação sobre o cinema português mas não conhecia os filmes, não faziam parte do meu lastro cultural." Ver esses filmes significa também resolver uma falsa questão. "O cinema português não tem um problema de identidade", explica-nos. "É um estigma injusto, não é fundamentado ou legítimo." O país imaginado convida-nos a vermo-nos nele e assim melhor entendermos um país bem real.

Sugerir correcção