O último mosteiro de Cister vai voltar à vida

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MANUEL ROBERTO / PUBLICO
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Há, nas "Terras do Demo", um curioso conjunto de edificações cistercienses. A última a ser construída foi em Tabosa, no final do século XVII: um mosteiro feminino, que praticamente só esteve activo durante século e meio, mas cuja história permanece de certo modo intacta, entre as ruínas. O novo proprietário do mosteiro vai restaurá-lo e promete colocá-lo, também, ao serviço da comunidade. Por Sérgio C. Andrade

a O que é que pode levar alguém a adquirir um velho mosteiro em ruínas, isolado do mundo e em plena "terra do demo", como Aquilino Ribeiro no-la descreveu? O interesse pelo património, e em particular pela história da Ordem de Cister; a intenção de o partilhar numa dupla vivência privada e comunitária; o desejo de aceder a uma condição de vida diferente da dos meios urbanos; e, claro, as condições materiais para adquirir uma propriedade com estas características, inesperadamente encontrada à venda num anúncio na Internet.É esta a sorte do Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa, no lugar de Carregal, concelho de Sernancelhe, um dos cinco edifícios cistercienses existentes nesta região e o último a ter sido edificado na história portuguesa daquela ordem, já no final do século XVII.
Que o actual proprietário tenha pedido que o seu nome fosse mantido em reserva, como condição para nos guiar numa visita ao estado actual do mosteiro e ao seu projecto de restauro, foi algo que decidimos aceitar. "Este é o sítio para onde quero vir viver na minha reforma; será o meu retiro", justificou o economista e publicitário a trabalhar em Lisboa, mas que desde há anos é também um estudioso e apaixonado pela história e património de Cister, a ponto de integrar a Carta Europeia de Mosteiros e Sítios Cistercienses.
O novo proprietário do Mosteiro de Tabosa - adquirido a uma manta de herdeiros espalhados por várias terras e países - explicou ainda que não pretende "pedir qualquer subsídio ao Estado" para o seu projecto de intervenção no velho monumento, que foi declarado imóvel de interesse público em 1971, e, por isso, se encontra sob a alçada do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar). "Quero vir viver para aqui, mas também quero partilhá-lo com a comunidade", diz, referindo-se não só à função cultural e religiosa que o mosteiro já actualmente tem com a sua igreja, mas também à futura utilização de parte do edifício para iniciativas culturais - recitais, exposições, conferências, encontros...
O último mosteiro feminino
Quem já visitou as "Terras do Demo" sabe que os mosteiros de Cister são os ex-líbris patrimoniais desta região da Beira Alta. O Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa faz parte do "pentagrama" de edificações com que a ordem tirou proveito do enquadramento paisagístico da serra de Santa Helena, mas também da localização próxima de terras que favoreciam a agricultura, que era "a principal ocupação dos monges brancos", também chamados "os monges agrónomos", salienta o historiador de arte Paulo Pereira.
São Pedro de Águias, em Tabuaço, Santa Maria de Salzedas e São João de Tarouca, todos mosteiros masculinos com origem no século XII, e o de Nossa Senhora da Purificação, em Moimenta da Beira, mosteiro feminino do século XVI, completam este núcleo de cinco sítios religiosos na região do Douro-Sul. O de Tabosa, também feminino, foi o último a ser fundado, em 1692, e é "o mais interessante dos pequenos mosteiros da rede nacional da Ordem de Cister", nota Paulo Pereira. Este professor na Faculdade de Arquitectura de Lisboa chama a atenção para a sua "implantação orgânico-mineral", já que parte dele foi construído sobre uma fraga, que para o efeito foi escavada durante seis anos.
Quem visita o lugar de Carregal é, de facto, surpreendido por uma edificação que parece irromper da rocha e dar um sentido arquitectónico à encosta. Há uma ampla frontaria em granito, que do lado esquerdo se eleva a um terceiro piso encimado por uma invulgar torre mirante, de fachada quase palaciana, e que é "muito característica do estilo chão e de uma arquitectura muito pragmática que marcou a época", explica Paulo Pereira. A existência desta torre-miradouro é também uma marca dos mosteiros femininos: é uma concessão de abertura ao olhar e ao mundo para uma regra monástica que era muito mais estrita para as freiras recolectas no século XVII, que "vêm retomar um rigor que estava já em desuso por parte dos monges, dados a um certo laxismo disciplinar", nota o historiador da Faculdade de Letras da Universidade do Porto Geraldes José Coelho Dias, que foi o orientador da dissertação de mestrado de Maria Luísa Gil dos Santos precisamente sobre este mosteiro, um trabalho editado em livro pela Câmara Municipal de Sernancelhe, em 2002.
Havia a roda...
Entre esta fachada esquerda e a igreja na outra extremidade do complexo monástico, construída em 1685, a substituir a anterior Capela de Nossa Senhora da Luz, de 1634, há uma porta encimada pelo brasão de armas ostentando tanto os signos da portugalidade (quinas e castelos) como os da Ordem de São Bernardo de Claraval (1090-1153), a figura mais influente dos primeiros anos de Cister.
À entrada, são ainda visíveis as marcas da tradição de a porta se manter sempre aberta, já que aí estava instalada a "roda" para a recolha dos bebés enjeitados. Só depois vem o locutório e as salas de visitas e do capítulo, como antecâmara de "um claustro muito íntimo, tipicamente feminino e rodeado por colunas toscanas", descreve o guia da visita, explicando que serão estes os espaços que futuramente serão destinados à fruição pública.
Sobre este piso térreo, com a cobertura quase toda em ruínas, levantava-se a parte habitacional, cujas características actualmente só podemos adivinhar, já que a informação documental sobre a história do mosteiro se perdeu num incêndio no Seminário Maior de Viseu, em meados do século XIX. Mas são aí ainda evidentes os traços dos aposentos, dormitórios, cozinha, refeitório, calafetório e enfermaria... É nesta área que irá principalmente incidir a futura intervenção de reconstrução, que deverá respeitar a tipologia própria dos mosteiros de Cister, e que o proprietário entregou aos arquitectos Cristina Salvador (vencedora do Prémio Távora 2009) e Fernando Bagulho e ao seu Atelier do Chiado.
"É uma escolha que garante a qualidade da intervenção", considera Paulo Pereira, assinalando como muito positivo este projecto, num país onde continua a haver múltiplos casos de património deste género ao abandono. O proprietário garante não querer "mexer nem alterar nada" daquilo que visivelmente era a estrutura do edifício, e que, aliás, se mantém praticamente inalterada - as únicas intervenções que aí houve foram a venda de pedra para construções próximas, e que praticamente destruiu a cozinha, e uma incipiente tentativa de ancorar o tecto da portaria.
A igreja, votada ao culto de Nossa Senhora da Assunção, mas também a São Bento e São Bernardo, foi restaurada parcialmente para poder servir os habitantes, mas a talha dourada do altar-mor continua a precisar de cuidados, para os quais há já um projecto de intervenção da Câmara de Sernancelhe. Com as características habituais deste género de templos, este apresenta, como mais invulgares, uma capela-mor com belos tectos de masseira decorados com as ladainhas de Nossa Senhora e, principalmente, um coro separado por uma grade de madeira com duas empenas entrelaçadas, a lembrar o estilo árabe.
Clausura e elevação natural
Um mosteiro cisterciense não estará completo se não possuir uma cerca a envolver o templo e o edifício principal. O de Tabosa possui uma a resguardar dois hectares de terreno através de grossos e altos muros de clausura (nalguns pontos, ultrapassam os seis metros de altura). Dentro dela há uma linha de água encanada proveniente de uma mina a 400 metros de distância (como acontece no Mosteiro de Tibães, em Braga), que alimenta os ciclos da horta e da frondosa vegetação que inclui castanheiros e carvalhos, cerejeiras e oliveiras, bambu e vinha.
Esta é a componente do mosteiro que está mais próxima da sua natureza original, e o proprietário quer preservá-la exactamente como está. "Isto só faz sentido se for assim. É um lugar que, sabemos, era de clausura e de intimidade, mas não seria necessariamente um lugar de penitência, antes também de fruição da paisagem. Seria uma vida dura, sim, mas que permitia uma elevação espiritual natural", diz este apaixonado pelas histórias de Cister, que está agora a cuidar de poder viver mais próximo desse imaginário.
O Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção teve uma existência bastante mais efémera do que aquilo que imaginaria a sua fundadora, D. Maria Pereira, uma nobre abastada da terra, que com esse seu gesto, decidido após a morte de dois maridos, quis que "os bens que Deus lhe deu fossem empregados no seu serviço e utilidade da sua alma e família", como refere a escritura de instituição e dote concertada em 1690 com a congregação mãe de Alcobaça. Mas, não havia decorrido sequer um século sobre a abertura do mosteiro, as monjas viram-se "despachadas" para Setúbal por decisão do Marquês de Pombal e decreto de D. José I. No reinado seguinte de D. Maria, em 1779, seriam reconduzidas a Tabosa. Mas pouco tempo depois, em 1834, a extinção das ordens religiosas decretada por Joaquim António de Aguiar, o "Mata-Frades", tem como consequência o início do fim do Mosteiro de Tabosa, que foi ainda habitado até à morte da última monja, em 1850. A partir daí, o mosteiro tornou-se ruína, mas permaneceu o orgulho da terra.
No final da nossa visita, o senhor Júlio, homem do Carregal, caseiro e guardião do mosteiro quando o seu dono trabalha em Lisboa, mostrava-se feliz com a perspectiva de ele poder vir a ganhar nova vida. "É bom saber que o mosteiro vai continuar a ser também nosso, da nossa freguesia." E presenteou-nos com cerejas. Era ainda o tempo delas, quando fizemos esta viagem ao passado.

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