O sexo que sussurra

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As roupas tanto podem tapar o sexo como falar-nos dele. Filipe Faísca tem a ignição no nome. Na carreira, trabalha o sexo e a portugalidade. Passou de gritar a diferença para sussurrar: "rendição". Figurinos da vida portuguesa. Joana Amaral Cardoso

Gemidos de prazer femininos alimentados por uma voz masculina. O poema de Paul Éluard sentado connosco, na folha de sala - "Bonjour tristesse/ Amour des corps aimables/ Puissance de l"amour/ Dont l"amabilité surgit/ Comme un monstre sans corps/ Tête désappointée/ Tristesse, beau visage". Por fim, a roupa, corpos carregados de insinuações para este Inverno. Filipe Faísca começou assim, em Março, no ano da graça de 2011 e na hora de protesto da geração à rasca, o seu desfile na ModaLisboa. Noutro desfile, ele próprio, nu perante três mil pessoas - eram as Manobras de Maio dos anos 1980 e ele, à falta de manequins disponíveis para o risco, desfilou. Hoje, insinua. Dantes, gritava. O sexo segundo Filipe Faísca, criador de moda e figurinos para uma vida portuguesa, com certeza.

A moda portuguesa faz-se de nomes esparsamente renovados e compartimentados - Fátima Lopes desenhou mulheres (e até manequins de montra) à sua imagem durante grande parte da carreira; Dino Alves brinca com o género, com a moda; Nuno Gama faz roupa para um homem profundamente alfa e erotizado. Quando Filipe Faísca regressou em 2007 à criação de moda com um tributo a Portugal, recebeu uma ovação, lágrimas como palmas na ModaLisboa. Já propôs secretárias sexy, já usou manequins "drag", já despiu África (onde nasceu, na foz do Zambeze), já se cruzou com os pecados que moram nas páginas do lado - fez figurinos para Mónica Calle, ou para Soraia Chaves em "Call Girl" (2007). "Foi difícil fugir ao óbvio nesse exercício porque o António-Pedro [Vasconcelos] facilmente quereria umas botas altas e uns calções. Eu não deixei".

Filipe Faísca fala a língua dos limites e da ambivalência. Diz, com a suavidade que o caracteriza, coisas moda como "A carga sexual vem do corpo e os tecidos transportam essa carga" ou "Tudo quanto é animal e pele é sexy." Ilumina-se com as transformações que opera no atelier, ao "perceber o lado sexual de uma mulher de 80 anos": "Ela própria se assusta."

O sexo trespassa todo o seu trabalho, inseparável do seu percurso pessoal. Fala de Pina Bausch e de "Crash", de Cronenberg, de Vivienne Westwood, João Pedro Vale ou Matthew Barney. Acredita que "só é possível trabalharmos a dimensão sexual com muito respeito e amor, senão caímos facilmente em clichés". Ou na compulsão e no narcisismo. "Sexo é igual a drogas. É preciso ter muito cuidado."

Não esquecer que Faísca hoje alude, antes forçava. E isto também diz algo sobre a maturidade do criador, do alcance de um certo sucesso, da batalha social e sexual portuguesa. Factos, por ordem cronológica: Filipe Faísca sente-se a Leste do homem português; posiciona-se como observador até explodir a movida lisboeta na década de 1980; na sua timidez, as ruas eram suas, os saltos altos também; o lado performance do seu trabalho é o mais forte; os auto-retratos de nus eram presentes que dava aos amigos; numa das suas imagens mais conhecidas, de Luís de Barros, veste fato e unhas vermelhas reluzentes.

"O meu corpo já serviu imenso para comunicar com o outro com mensagem sexual", explica na sua loja, no centro de Lisboa, como que a anunciar a fase de depuração. "Não é um factor-choque, é comunicação. Uso a moda como forma de comunicar. Sou muito introvertido e a matéria é o meu texto." Sente que já não precisa de explorar tanto. Esteve lá, fez aquilo. Interessa-se sempre pela androginia, pensa na sua falta de sintonia com o homem português como animal enjaulado nos estigmas de género. Fez roupa para um homem que fica em casa enquanto ela sai; e entre homens e mulheres o tamanho, de facto, importa - "A roupa de homem não é mais do que roupa de senhora em tamanho grande".

Mais, menos, igual, dividido ou subtraído. A aritmética prossegue. Hoje é mais igual, antes era mais diferente. Nos "early years", quando se transformava, o que procurava? "Tinha a ver com a procura da diferença. Ser diferente. E hoje do que estou à procura é do ser igual". Porquê ser igual, e hoje? E porquê o ser diferente, na altura? "Porque a mensagem pode ter mais receptores através da igualdade do que através da diferença. Naquela altura afastava-me, não conseguia comunicar. Tive grandes problemas de comunicação no período em que usei o meu corpo como uma imagem transmissora de diferença, não tinha como chegar às pessoas e as pessoas não chegavam a mim. E hoje dia prefiro, através da igualdade... - e não estou a dizer isto como conformismo". Não? "Talvez seja mais rendição (riso, perfurante)". Aos padrões? "Acho que se ganha imenso quando se rende." Baixa a guarda... "E as pessoas aproximam-se e, porque é você, estabelece-se o diálogo." E porquê o sexo como elemento de diferença e de integração e não outra coisa qualquer? (Longa pausa, longo ruído do ar condicionado, qual pesadelo de Miller) "É sempre um tema de muito difícil abordagem. E é inesgotável". Por fim, sejamos práticos: "As pessoas gostam [de sexo na moda], mesmo que não consumam, mesmo que tenha de se estabelecer um compromisso. Gostam de saber que através destas roupas podem sentir-se sexy, [gostam] desse poder".

Esta história acaba como um conto de fadas, com percurso, clímax e transformação. Somos todas Cinderela. Faísca, ígneo de seu nome, não tem dúvidas. "O lado sexual da mulher portuguesa transparece nos sapatos. Olha-se para os pés e percebe-se o seu lado sexual." A prova foi a chegada a Portugal dos "sapatos fétiche, irresistíveis" de Christian Louboutin, com quem Faísca teve uma parceria. O sapato serviu como uma luva a um monstro sem corpo.

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