O padre falso da Trofa tem "voz doce e cara de anjo". "Parece que enfeitiça as pessoas"

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O padre José Ramos passou nove meses a investigar o burlão

Foi cozinheiro na Alemanha e também tentou ser pastor da IURD. Agostinho Coutinho Caridade - aliás "padre Luís", aliás "doutor padre Pedro Miguel" - tem uma já longa folha de serviços por burla e furto. O homem de 38 anos continua em fuga.

Talvez, ao início daquela manhã de Junho de 2007, houvesse gaivotas sobrevoando o areal da praia do Cabedelo, em Viana do Castelo. Agostinho Coutinho Caridade, então com 34 anos, tinha sido detido dias antes, quando celebrava um baptizado na igreja de Areias, Santo Tirso. Assim se interrompeu abruptamente uma promissora carreira de pároco e missionário da "congregação dos camilianos", com mestrado em Teologia feito em Roma, trabalho de evangelização em Angola e passagem por várias dioceses do país. Os fiéis apreciavam-no, tratavam-no como a um filho e davam-lhe dinheiro quando se achava nalgum aperto. Foi assim pelo menos até terem percebido que era tudo falso: o cabeção, o ministério, o mestrado e até o nome do padre João Luís Amorim.

"E ainda não se chegou à verdade toda", diz Maria Rosa Sousa, uma paroquiana de Alvarelhos, Trofa, cuja prima vive agora "triste e doente" por ter sido uma das vítimas do falso padre. Filomena ficou sem 2300 euros.

Posto em liberdade condicional após a detenção, Agostinho Caridade abandonou naquela manhã de Junho o Peugeot 106, verde e registado em nome de outra das suas vítimas. Deixou as portas do carro abertas e foi-se embora com a brisa litoral agitando-lhe a melena. Terá tentado desaparecer, simulando um suicídio. Horas depois, porém, foi visto a embarcar num comboio na estação de Viana do Castelo, a caminho de Vigo. Reconheceram-no dois funcionários da CP, ex-colegas de trabalho do pai, um ferroviário reformado.

- Aquele não é o filho do Ramiro?

- Quem? O falso padre?

- Sim, esse.

- É ele, é.

Em Agosto, o jornal 24 Horas narrava o caso de um indivíduo que, a 30 de Julho, fugiu da Residencial Viriato, em Lisboa, sem pagar a conta, depois de ter dito que era um chefe de cozinha famoso. Seria, outra vez, Agostinho Coutinho Caridade.

"O indivíduo é muito inteligente, mas não é minimamente esperto. Deixa sempre umas pontas de fora", diz o padre José Ramos, responsável pela paróquia de Alvarelhos. Passou "nove meses menos uma semana" a investigar o jovem padre que o substituía quando, por algum motivo, tinha que se ausentar da freguesia. Consumada, no passado dia 3, a condenação de Agostinho Caridade a dois anos e seis meses de prisão, com pena suspensa, no Tribunal Judicial de Santo Tirso, o padre Ramos lamenta agora que o falso missionário continue em liberdade. Nunca compareceu às sessões do tribunal em nenhum dos processos em que se viu envolvido e a GNR não consegue, sequer, notificá-lo das sentenças a que é condenado. Júlio Barbosa, seu defensor oficioso no caso da Trofa, também nunca falou com o homem que hoje tem 38 anos e que, quando regressa à casa dos pais, em Aguiar, Barcelos, faz questão de pagar a cerveja alardeando um volumoso maço de notas.

"Só a GNR é que não o encontra. Ele vai regularmente a casa dos pais e até o Correio da Manhã o encontrou lá, em Setembro, a matar galinhas com a mãe. Mas a GNR nunca o encontra", desabafa o padre José Ramos atrás da secretária da casa paroquial. Tem diante um monte de fotocópias, resultado da investigação que fez, e uma bola de futebol autografada por jogadores do FC Porto contrastando com as imagens religiosas. "Caiu-me isto nas mãos. A certa altura, começou a ser apaixonante. A partir do quinto mês, tinha noites em que acordava a pensar no caso. Mas jamais imaginei que a investigação levasse onde levou, nem que o caso tivesse estas proporções", diz. "São muitas pessoas enganadas, muitos milhares de contos".

Reconstituição dos passos

Concluído o processo para cuja instrução foi fundamental o memorando de 15 páginas que, em Junho de 2007, o padre José Ramos fez chegar às autoridades civis e eclesiásticas, o pároco de Alvarelhos sente-se finalmente autorizado a revelar tudo o que conseguiu apurar desta espécie de Apanha-me se puderes à portuguesa: se Agostinho Caridade se assemelha à personagem que Leonardo di Caprio desempenha no filme de Steven Spielberg, o padre Ramos vestiu na perfeição a pele de Carl Henratty, o polícia interpretado por Tom Hanks - ou, vá lá, de William of Baskerville, o frade detective de O Nome da Rosa. Telefonou para bancos e paróquias, cruzou informações e, apesar do nome falso com que o padre se apresentou, conseguiu reconstituir uma parte dos passos do homem que uma das suas vítimas, uma octogenária de Mação, descreveu como alguém "com uma voz doce e uma cara de anjo", que "parecia que enfeitiçava as pessoas".

Para perceber quem é Agostinho Caridade, diz o padre José Ramos, é preciso recuar, pelo menos, ao ano de 1999. O minhoto tinha passado uma temporada a trabalhar como cozinheiro em Colónia, na Alemanha. Quando regressou a Portugal, fixou-se em Lisboa durante algum tempo e tentou tornar-se pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. É o próprio que o diz no Notícias de Barcelos de 6 de Maio de 1999, no qual o "dissidente" acusa a igreja evangélica de se ter apossado de cerca de dois mil contos (dez mil euros) que tinha ganho na Alemanha, contra a promessa de um ordenado de 600 contos por mês assim que fosse promovido a pastor.

Se, dessa vez, tiver realmente sido enganado, Agostinho Caridade parece ter aprendido a lição e passado ao contra-ataque - visando qualquer desprevenido que lhe saísse ao caminho. "Com a excepção de uma advogada de Braga, ele escolhe sempre pessoas simples, fragilizadas e desprotegidas", diz José Ramos.

Logo em Novembro de 1999, Agostinho Caridade terá estado envolvido, em Fátima, numa burla com um cheque furtado de 20 mil escudos (cem euros), destrocado por dinheiro por um homem que não desconfiou do padre que, pouco antes, tinha visto a oficiar a missa, de túnica branca, no Edifício Paulo VI. A queixa foi arquivada em 2002, por ter sido apresentada fora de prazo, devido à dificuldade para identificar correctamente o falso padre.

"Até 2004, não encontro referências nenhumas, nenhumas", lamenta o padre-investigador, que também só ao fim de algum tempo atinou com a verdadeira identidade do "padre Luís". "Durante muito tempo, pensei que era um padre que tivesse sido suspenso de alguma congregação, por alguma coisa grave. Aí estatelei-me ao comprido. Só quando fui investigar um cheque que lhe tinham passado é que dei com o nome de Agostinho Coutinho Caridade", conta.

Quando pediu no Registo Civil informações sobre o natural de Barcelos, o padre recebeu um aviso do Diário da República, datado de 20 de Março de 2006, segundo o qual o juiz da primeira vara criminal do Tribunal da Comarca de Lisboa declarava "contumaz" o ex-cozinheiro. Motivo: um crime de "burla informática e nas comunicações" praticado em Abril de 2004. O então "padre Pedro Miguel" tinha-se apossado de dois cartões multibanco de uma idosa nascida em 1927, e dos respectivos códigos, lesando-a em três mil euros, depois de a ter abordado no decurso de uma missa na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na capital.

Padre Pedro ou Luís?

Nessa altura, em 2006, já Agostinho Caridade era também o padre João Luís Amorim e ajudava, durante os meses de Verão, os párocos da zona da Trofa, de onde se ausentava, depois, para, alegadamente, terminar um mestrado de Teologia, em Roma. Um casal chegou a pagar-lhe a viagem de avião e deu-lhe mais algum dinheiro pelo incómodo de vir de Roma para celebrar a cerimónia de casamento na Sé de Braga.

As ausências do falso padre, entre 2005 e 2007, não o levavam, porém, para tão longe como Roma. Em Março de 2007, o "doutor padre Pedro Miguel" (o mesmo nome que usara em Lisboa em 2004) assinava inclusive um texto no jornal Notícias de Albufeira, narrando a Procissão dos Passos saída da igreja matriz da cidade. Isto apesar de, um mês antes, um blogue local denunciar já as práticas de falso padre, "jovem bem-falante e persuasivo", que andaria a tentar "sacar umas massas a alguns incautos", executando exorcismos. Num assomo talvez involuntário de ironia, o "doutor padre Pedro Miguel" chega a invocar, na nota do Notícias de Albufeira, o bom ladrão que aceita a cruz e o mau ladrão que contra ela se revolta.

Alguns meses antes, em Setembro, já o padre José Ramos tinha iniciado a investigação. "Até ao Verão de 2006, nunca os paroquianos se tinham queixado do padre Luís."

"Dizia a missa toda direitinha como manda a lei, alguém tem que tê-lo ensinado", conta Maria Rosa Sousa, a paroquiana que lhe queria como a um filho, mas que começou a desconfiar no dia em que ele lhe apareceu todo pisado no minimercado. "Disse que lhe tinham feito uma espera à falsa fé, e que não sabia porquê. Eu pensei que ele devia dinheiro a alguém ou que se tinha metido com a mulher de alguém. Uma vez, veio pedir-nos dinheiro para uma aflição, por causa de um atropelamento, e para não ter que vender um carrinho descapotável vermelho com que aí apareceu uma vez. Pediu que não contássemos ao padre", recorda a paroquiana de Alvarelhos. "O meu marido diz que ele nunca o enganou, mas era uma pessoa muito simpática, muito humilde, acessível e que cativava", conclui.

"Farejo burlas à distância"

Nessa altura, já o padre José Ramos estava no encalço de Agostinho Caridade, faltando-lhe apenas demonstrar que ele e o "padre Luís" eram a mesma pessoa. Foi então que o pároco de Aguiar, com o qual se tinha posto em contacto, se lembrou de que Agostinho tinha aparecido na televisão uns anos antes, liderando uma manifestação diante da Sé de Braga por causa de um terreno cuja propriedade o jovem reclamava. Dois paroquianos deslocaram-se a Barcelos para ver as imagens da TVI e não tiveram dúvidas de que era o "padre Luís" que lá aparecia. No dia seguinte, José Ramos fez seguir o memorando de denúncia para as dioceses do Porto e de Braga.

O documento resultou, dias depois, na detenção do falso padre.

O padre Ramos conta, no memorando, como conheceu o "padre Luís" numas confissões em Santiago ou S. Martinho de Bougado, na Trofa, onde o falso pároco se apresentou com um documento atestando ter estudado em Espanha com os Camilianos. Dizia ser natural de Barroselas, em Viana, ter estado antes em Angola, como missionário, e ter regressado por motivos de saúde. "Eu farejo as burlas à distância. Mal falei com ele da primeira vez, farejei qualquer coisa de anormal. Mas jamais pensei que fosse um burlão", diz o padre de Alvarelhos.

Certo é que a personagem criada por Agostinho Caridade conseguiu conquistar a confiança de quase toda a gente, havendo paroquianos que até lhe pagaram as propinas em Roma. Da sua folha de serviços constam serviços em paróquias da Trofa, de Santo Tirso, de Vila do Conde, da Maia e da Póvoa de Varzim (missas, comunhões, baptizados, funerais, confissões), mas também falsos peditórios para causas humanitárias e crianças desaparecidas, a organização, no centro da Trofa, de um encontro ecuménico das famílias à revelia das paróquias e a alegada atribuição de uma bolsa a um missionário de Angola. À benfeitora deste último, uma octogenária, chegou a entregar uma fotografia do beneficiado: mostra um jovem branco languidamente deitado numa cama e a imagem tem, no verso, o carimbo de uma casa de fotografias de Albufeira. "Deve haver muitas histórias relacionadas com esta no Algarve", suspeita José Ramos, que também recorda como, a dada altura, os seus paroquianos começaram a queixar-se de que o "padre Luís" era "um badalhoco", "tinha conversas muito porcas" e parecia "tarado sexual".

Extorquir dinheiro

Não obstante, o falso padre dizia que o bispo do Algarve lhe atribuíra a Pastoral da Juventude ou que tinha almoçado com o arcebispo de Braga. Afirmava que ia dar aulas de Teologia, mas enredava-se em contradições. O padre José Ramos lembra-se de que, certa vez, Agostinho Caridade referiu dois nomes diferentes para a universidade romana em que estaria a fazer o mestrado. Confrontado, "começou a engolir em seco e foi-se embora. A partir daí só aparecia nas casas das pessoas para extorquir dinheiro. A maioria nem sequer apresentou queixa, por vergonha ou porque acharam que não valia a pena", conta. "Ele também tinha muito medo da violência física. Tem vários traumas que vêm da infância", acrescenta. "Nos últimos tempos, parecia muito assustado", acrescenta Rosa Sousa.

Por força da investigação que realizou, o padre José Ramos continua a receber informações de pessoas que reconhecem Agostinho Coutinho Caridade aqui ou ali, em Lisboa ou em Fátima. "Era capaz de apostar a cortar o meu pescoço em como ele esteve ontem [13 de Outubro] no santuário de Fátima", diz. Foi aí, aliás, que, em Novembro de 2008, já depois de ter sido detido em Santo Tirso, o falso padre deu mais um dos seus golpes: apossou-se da caderneta bancária de uma idosa, enganou-a prometendo-lhe instalá-la num lar e foi desmascarado quando tentava fazer uma transferência de 150 mil euros, depois de já se ter apossado de sete mil euros.

O caso valeu-lhe uma condenação de três anos e seis meses de prisão por burla qualificada continuada, na forma consumada e tentada. A sentença é de Janeiro de 2010, mas, tal como no caso que recentemente se julgou em Santo Tirso, Agostinho Coutinho Caridade nunca compareceu ao julgamento e continua em liberdade, apesar da ordem de "condução do arguido ao estabelecimento prisional respectivo" assinada pelo juiz da comarca de Ourém.

Nas paróquias trofenses onde o "padre Luís" oficiou sacramentos católicos, o caso está longe de estar esquecido, embora a questão da validade dos actos por ele praticados tenha sido resolvida a contento de todos. "Algumas pessoas ainda me procuraram, mas eu descansei-as. No caso de um dos casamentos, a coisa resolveu-se por si: quando isto se soube, o casal já estava a tratar do divórcio. Nos outros casos, entendeu-se que deve prevalecer o princípio de Santo Agostinho, segundo o qual o que conta é a recta intenção daqueles que tomam os sacramentos. A igreja entende que são válidos", refere o padre José Ramos.

A dona Rosa do minimercado de Alvarelhos também vê vantagens no caso todo: "A notícia saiu na China e na Austrália, ainda vai ser um ensinamento muito grande para o mundo sobre a falsidade das pessoas". Ambrosina Rodrigues, à porta de um solar que há diante da igreja de Santiago de Bougado, tem uma opinião diferente: "Estou como um jornaleiro que aí tenho. Se o falso padre tinha jeito para aquilo, deviam era incentivá-lo em vez de o prenderem".

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