José Barrias, o coleccionador de ecos

Foto
Os espaços do Museu de Serralves surgem transfigurados pelas cores de José Barrias: "O meu lado italiano veio ao de cima", ?diz o artista FILIPE BRAGA

No Museu de Serralves, descobrem-se câmaras e gabinetes que guardam pinturas murais, desenhos, textos, objectos, histórias e sinais mágicos. Obra de José Barrias, artista português radicado há 40 anos em Itália que regressa com "In Itinere", exposição de ecos e encontros. José Marmeleira

José Barrias (Lisboa, 1944) não se sente muito confortável com a entrevista telefónica que lhe propomos: "Acho estranho. Dantes faziam-se cara-a-cara. Os sinais eram mais ricos e fortes. Este hábito de fazer [as entrevistas] por telefone acaba por amputar uma parte essencial, que é a relação com as pessoas. O corpo-a-corpo". É uma queixa compreensível, sobretudo depois de visitarmos "In Itinere", a exposição que o artista português, estabelecido há 40 anos em Milão, apresenta no Museu de Serralves. Composta por várias câmaras que criam uma cenografia de memórias, desenhos, objectos e textos, é uma conversa em público com ele próprio e, também, com os outros, os espectadores. "Chamo-lhe um testamento poético não no sentido lúgubre da palavra", esclarece José Barrias, "mas porque a dada altura da vida devemos fazer as contas com o nosso percurso".

"In Itinere", como o nome indicia, introduz-nos, desde logo, num trajecto, uma caminhada pelo museu. Há uma grande sala pintada (a "Camera Picta"), um "Gabinete de Desenhos", uma "Wunderkammer" (gabinete de curiosidades), uma "Câmara dos Ecos" e uma "Câmara Clara". Nas paredes, nos tectos, em vitrinas, a metamorfose impressiona, como se dentro de Serralves tivesse nascido outro museu. "Foi um trabalho longo, que durou anos. Entreguei-me inteiramente a esta viagem. Como um "flâneur" que caminha e observa". E o espectador, como o "flâneur", não corre o risco de se perder. Pelo contrário, pode identificar-se com a pluralidade de coisas que José Barrias lhe oferece, do desenho à pintura, do som aos objectos.

A cartografia de "In Itinere" está na "Sala dos Mapas", constituída por textos e desenhos emoldurados, os "Cadernos de Serralves", que anunciam as salas seguintes. Foi a mão do artista que os inscreveu, no primeiro caso, a partir de autores como T.S. Eliot, João Cabral de Melo Neto ou Carlos Drummond de Andrade; no segundo, a partir do seu próprio processo de trabalho (esquissos, desenhos preparatórios). Vemos também a maqueta da exposição, como uma escultura suspensa e, ao fundo, uma semi-esfera coberta de fotografias retiradas de jornais, para a qual aponta um óculo. Chama-se "No Mundo", a semi-esfera. Ou podemos chamar-lhe o mundo de José Barrias.

Esta cartografia pessoal é mais explicitamente revelada nos contornos de Itália e Portugal desenhados sobre a superfície colorida das paredes. "["In Itinere"] também representa a minha dupla pertença. Uma pertença a um país culturalmente avançadíssimo, do ponto de vista das artes, e com um passado glorioso. E uma pertença a um país cuja história está mais ligada à narrativa. Tentei sempre, através do meu trabalho, ligar estas duas formas de vida, a italiana e a portuguesa", assinala. A "Sala dos Mapas" não é único espaço dominado pelas cores. A "Camera Picta" (uma referência aos espaços privados decorados com frescos da Itália Renascentista) encontra-se inteiramente pintada (azul, laranja, rosa, amarelo). "O meu lado italiano, fortemente decorativo, veio ao de cima (risos). A Itália está cheia de "cameras pictas". É como se tivesse assumido nas duas primeiras salas a celebração da minha residência".

Encontros em série

As cores servem, no entanto, como suporte para os textos. Toda a "Camera Picta" é na verdade um bloco de notas, um caderno de apontamentos. "Há aí uma chamada à literatura. À escrita que se pode transformar em desenho, e ao próprio desenho. Tudo nesta exposição são ecos. Sou um coleccionador de ecos. Porque sou herdeiro de tudo o que me precedeu. De uma cultura que me hospeda, de outra que me viu nascer".

A relação entre as duas traduções, visual e literária, regressa mais à frente, em "Quase Romance" (1972-85), incluída no "Cabinet des Dessins" (Gabinete dos Desenhos), uma série de enigmáticas imagens a que um texto (sobre o mistério do romance) dá início. Como se, embora evocando o acto de ler, a obra de José Barrias fosse sobretudo para ver. Na mesma sala, "O Reconhecimento da Luz" (2007) detém-se no desenho, evocando a história da arte antiga e motivos (uma pena, bengala, uma escada) que nos reenviam para outros lugares. A repetição e a citação são constantes em "In Itinere". Há imagens que reaparecem na "Wunderkammer" ou na "Câmara Clara". Como ecos. Encontros não apenas do artista com o seu fazer e as suas memórias, ou das obras com os espectadores, mas também com a arquitectura. "Medi-me com os espaços do museu. Tirei-o para o dentro. Num certo sentido, com os nichos que estão na "Camera Picta", puxei as janelas do Álvaro Siza para dentro da câmara". A alusão à construção do arquitecto estende-se, depois ao "Cabinet des Dessins" e aos volumes brancos da "Câmara Clara".

Entretanto, na "Wunderkammer", José Barrias revela os objectos que recolheu, guardou: estatuária, postais, fotografias, livros, um teatrinho de marionetas, discos, desenhos, garrafas. Objectos que atravessaram a sua vida e que compõem um mundo sem rupturas, onde tudo coexiste. Até que entramos num lugar sem a presença da mão do pintor, daquele que desenha, do coleccionador. É a sala escura da "Câmara dos Ecos", onde são projectadas imagens recolhidas por um telemóvel. Reconhecem-se contornos, formas, figuras. "São sinais mágicos produzidos por um mecanismo contemporâneo, e que habitam uma espécie de câmara rupestre", explica.

Uma sala pintada, um gabinete de desenhos, uma "Wunderkammer", uma câmara rupestre. "In Itinere" é uma viagem pela subjectividade de um artista, pela história do museu, pela ideia de exposição como obra de arte. Que encerra na "Câmara Clara", um corredor de sombras e volumes, no qual a luz cresce ante de convergir para o centro e diminuir. Sob uma voz que diz "nunca mais serei isto". Feito o seu testamento poético, José Barrias pode ser outro artista. E nós outros espectadores.

Ver agenda de exposições na página 36

Sugerir correcção