Joaquim Bairrão Ruivo

Foi o percursor do trabalho com crianças com necessidades educativas especiais
e desenvolveu a psicologia educacional no país. Deixa como herança uma geração
que se pauta pelo rigor científico

a Tomou a opção de fazer um transplante cardíaco "com toda a coragem", sabendo da enorme possibilidade de não resistir, em parte devido à idade, 72 anos. À entrada da sala de operações, no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, lembrou à mulher onde é que tinha arquivado o trabalho que estava a fazer. "Olha, tenho a pen no lado direito da secretária...", lembra a Isabel Felgueiras, que recorda as suas palavras, dias depois, sentada numa sala de trabalho, na casa da família, em Lisboa. O pai da intervenção precoce em Portugal morreu na madrugada do primeiro dia de Dezembro devido a insuficiência cardíaca. Chamava-se Joaquim Belo Bairrão Ruivo e nasceu em Lisboa em 1935. Tinha três filhos (dois do primeiro casamento com a cineasta franco-portuguesa Monique Rutler) e cinco netos.
No final da década de 1960 - depois de ter feito a sua licenciatura em Filosofia, na Universidade de Lisboa, e de ter seguido para Paris como bolseiro do Laboratoire de Psychobiologie de L"Enfant, da Écoles Pratiques de Hautes Études -, recebeu dois convites. Em França, René Zazzo, um famoso psicólogo e investigador, propõe-lhe a realização de um doutoramento. Em Portugal, o então Ministério da Saúde e Assistência desafia-o a criar o primeiro Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógico (COOMP) para trabalhar com crianças deficientes.
Bairrão Ruivo escolhe Portugal. "Foi um fôlego na dinamização do ensino especial. Graças ao COOMP, além de se fazer a avaliação das crianças, faziam-se congressos, investigação e formação", enumera Ana Maria Bénard da Costa, amiga e defensora da escola inclusiva.
Entre 1968 e 1992 foi responsável pelo COOMP que, ao longo dos anos foi mudando de nome, o último foi Centro de Estudos e Apoio à Criança e à Família. Mas Bairrão Ruivo manteve a orientação do serviço para a avaliação e intervenção junto das crianças com necessidades educativas especiais e crianças de risco.
Foi ele que integrou psicólogos, terapeutas, médicos, neuropediatras nas equipas de intervenção precoce. O objectivo é promover o bem-estar da criança, cujo desenvolvimento pode estar ameaçado devido a factores biológicos ou ambientais. A meta da intervenção precoce, que deve ser feita até aos cinco ou seis anos, é proporcionar à criança igualdade no acesso aos serviços educativos e a outros.
Em 1977 regressou a Paris e sob orientação de Zazzo concluiu o doutoramento em Psicologia na Universidade de Nanterre. "Era um homem muito preocupado com a formação dos técnicos e tinha a consciência de que eram precisas pessoas muito competentes no terreno", recorda Sérgio Niza, professor do Instituto Superior de Psicologia Aplicada e que trabalhou com Bairrão Ruivo no COOMP. Irritava-se com os "psicólogos de aviário", com os que "não aliavam a investigação à acção", conta a mulher Isabel Felgueiras.
Entretanto, em 1979, inicia a sua carreira académica na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. "É o pai da psicologia educacional em Portugal, teve um papel muito importante no seu desenvolvimento", considera David Rodrigues, coordenador do Fórum de Estudos da Educação Inclusiva.
"Grupo de excelência"
Nunca deixou de fazer investigação, os seus pareceres foram pedidos em várias alturas, sobre diferentes temas como a deficiência mental, a educação pré-escolar, a condição dos professores ou a literacia das crianças. O seu trabalho é reconhecido pela Associação de Psicólogos Portugueses que lhe dá o prémio Psicologia, em 1989; e pelo Estado português, o Presidente da República Jorge Sampaio agracia-o com o Grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito, dez anos depois.
Paralelamente, mantinha contacto com universidades estrangeiras, em 2002 integrou um "grupo de excelência" formado por investigadores internacionais de sete universidades europeias e norte-americanas, no âmbito da intervenção precoce. O trabalho que estava actualmente a escrever era no âmbito desse consórcio.
É na escola do Porto, onde criou disciplinas e orientou cerca de cinco dezenas de mestrados e doutoramentos que deixa a sua herança. "Criou uma equipa que vai continuar o trabalho que começou", acredita João Formosinho, professor da Universidade do Minho.
"Não era homem de ficar sentado no sofá e tinha imensos projectos", conta Isabel Felgueiras. Em 2005, depois de se ter jubilado e já como professor emérito, decidiu obter uma nova graduação, um curso de Biologia, pela Open University de Milton Keynes, no Reino Unido. Ficou a meio, já estava muito doente.
Era um homem com valores de esquerda, mas nunca esteve "enfeudado" em nenhum partido político, revela a mulher. Era muito crítico em relação ao caminho que a intervenção precoce está a fazer actualmente, diz Teresa Brandão, da Universidade Técnica de Lisboa, que, com Bairrão Ruivo e outros especialistas das universidades portuguesas, se fizeram ouvir junto do Governo e do Parlamento sobre este tema.
Há precisamente um ano, o professor escreveu um artigo, publicado no Jornal de Letras, que começava com um grito de socorro, típico da aviação, uma das suas paixões: "MAYDAY MAYDAY", em letras grandes, a alertar para a necessidade de se investir mais nesta área e cada vez mais cedo. "Desesperava-se muito com os obstáculos que se punham à intervenção precoce, porque se bateu muito por ela", diz Sérgio Niza.
Na juventude, Bairrão Ruivo foi voluntário da Força Aérea e teve um acidente de aviação, na Madeira. Foi esse momento que a mulher lhe lembrou à entrada da sala de operações. "És a única pessoa que conheço que sobreviveu a um acidente de aviação, também vais sobreviver a isto", encorajou. Joaquim Belo Bairrão Ruivo não resistiu e morreu quinze dias depois da intervenção.

Sugerir correcção