"Interessa-me contar a história do vencido, a história do vencedor já está contada"

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Nasceu em Bogotá, Colômbia, em 1958, e sente-se uma artista do Terceiro Mundo: herança que diz ser o seu maior privilégio RUI GAUDÊNCIO

Em "Plegaria Muda", instalação criada para o CAM da Gulbenkian, a colombiana Doris Salcedo lida com o terror inefável da morte anónima, violenta: 162 mesas para lembrar jovens mortos por um exército a soldo e enterrados em vala comum. "Não há palavra que diga o que é para uma mãe abrir uma vala comum e encontrar o seu filho", diz-nos. "Oração Muda", chama-se, por isso. Artista do Terceiro Mundo - essa herança leva-a à incessante busca do modo como os outros vivem -, acredita que a arte pode trazer quem morreu de regresso à vida. Anula a sua coisificação.

Inaugura-se hoje, às 18h30, no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, a instalação de Doris Salcedo, "Plegaria Muda". A artista nasceu em Bogotá, Colômbia, em 1958, e sente-se uma artista do Terceiro Mundo: herança que diz ser o seu maior privilégio. Este sítio de onde vê o mundo obriga-a a uma incessante procura pelo modo como os outros vivem, pensam e sentem.

Ainda que o seu trabalho fuja às convenções das linguagens artísticas, pode dizer-se que é escultora: cria espacialidades e objectos que transportam histórias e condensam experiências humanas. A obra é percorrida por uma urgência que diz não poder conter: face à tragédia, à morte sem sentido e à violência desmedida. São obras sobre a morte e a humilhação dos emigrantes, sobre a guerra e a morte violenta dos jovens colombianos às mãos de mercenários.

Em 2003 participou na Bienal de Istambul e empilhou 1600 cadeiras que recolheu em diversos locais. Uma peça, com uma volumetria e escala semelhante à dos prédios circundantes, que pretendia criar uma topografia do terror das migrações no mundo global. Quanto em 2007 fez "Shibbolett" para a sala das turbinas da Tate Gallery em Londres, abriu uma fenda de 167 metros que percorria todo o pavimento do espaço. Era como se um tremor de terra tivesse ali acontecido. Este gesto escultórico destinou-se, disse ao Ípsilon, a mostrar as cisões entre o Norte e o Sul, os brancos e os escuros, os emigrantes e as grandes cidades cosmopolitas e, sobretudo, a mudar a habitual direcção do olhar do céu para a terra. Ainda se podem encontrar vestígios dessa obra no chão do museu londrino e Doris fala dessa permanência como uma cicatriz permanente.

Em Lisboa apresenta "Plegaria Muda" ("oração muda"), criada para a nave central do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian numa encomenda conjunta com o Moderna Museet de Malmö, Suécia. Trata-se de uma obra-síntese na qual a artista tenta lidar com o terror inefável da morte anónima, violenta e sem sentido. São 162 mesas do interior das quais nasce relva e que são um lugar sagrado para lembrar os jovens colombianos mortos por um exército a soldo e enterrados anonimamente numa vala comum.

A história do trabalho de Doris Salcedo é a história dos lugares em que a felicidade é um luxo e a tragédia humana quotidiana. Falou com o Ípsilon enquanto, silenciosa e concentrada, fazia os últimos ajustes das peças que trouxe para Lisboa.

Como começou o trabalho para a exposição que apresenta em Lisboa?

Qualquer obra minha começa com uma investigação profunda acerca de factos reais. E a investigação para esta peça levou-me a um confronto directo com o horror inefável. E a única maneira de enfrentar essa dor e horror foi fazer "Plegaria Muda" porque não há palavras para descrever o que vi. E foi a maneira que encontrei de expressar aquele horror e de me dirigir aos que sofreram e não puderam usar palavras.

Qual é a história de "Plegaria Muda"?

Talvez seja a história mais obscura e sangrenta da Colômbia. O Governo anterior pagava aos militares pelos mortos, supostamente guerrilheiros rebeldes, que conseguissem fazer. E o Exército começou a matar jovens de zonas marginais na Colômbia dizendo que eram mortos de combate. Encontrei esta história porque andava a pesquisar os "gangs" de Los Angeles e as mortes violentas dos jovens nas ruas da cidade. No meio desse processo, para uma obra que acabei por não realizar, encontrei em Bogotá um grupo de mães à procura dos filhos desaparecidos. Comecei a acompanhá-las e descobrimos os corpos dos filhos nas valas comuns de cemitérios muito afastados de Bogotá e percebeu-se que tinham sido assassinados pelo Exército, que, depois de os assassinar, os vestia com uniformes de guerrilheiros para justificar a sua morte e para receber o dinheiro do Governo. Acompanhar aquelas mães na procura dos seus filhos de 18 anos nas valas comuns, obrigando-as a identificar os filhos, foi impressionante. A vida delas paralisou-se no momento da abertura da vala comum. E quis, com esta obra, encontrar uma forma humana para dar à vala comum, acrescentando a experiência angustiante de quem escava a terra à procura dos seus mortos: um escavar lento, não-profissional. É desta acção de escavar que surje a presença da terra nesta minha obra.

E as mesas?

As mesas são uma referência aos lugares de encontro, de partilha e de troca; mas também quis mostrar as mesas numa dimensão disfuncional. Cada mesa tem a dimensão de um caixão, o que torna presente o corpo humano: a medida dos caixões está relacionada com a medida dos corpos humanos.

Mas do interior dessas mesas caixão surge a vida através da relva que cresce a partir do interior das mesas.

Sim, a vida prevalece. Com o tempo alguma coisa surge. E esta é a única forma com que podemos enfrentar a violência: com a certeza de que a vida prevalece.

Porquê o título "Plegaria Muda"?

É o que os seres humanos fazem quando constroem um túmulo funerário. O túmulo em si é uma espécie de oração e uso a palavra muda porque aquilo com que me confrontei foi com o inefável, que não é simplesmente o silêncio. Trata-se de um horror inefável: não existem palavras para o descrever e nomear. Não há palavra que diga o que é para uma mãe abrir uma vala comum e encontrar o seu filho. As mães com quem estive confrontaram-se com uma vala comum e, portanto, ficaram sem o lugar das suas orações.

Procurou esta história?

Não. O artista não tem liberdade. Isso é um mito. Há coisas que tenho de que me são impostas pela realidade. Quando se vive na Colômbia, tem de se fazer certas coisas: não tenho qualquer liberdade, porque os factos são tão contundentes que tenho de enfrentá-los. Como ser humano, sou responsável pelo que acontece à minha volta. E a única maneira que conheço para me confrontar com essa realidade é a escultura. Na investigação que faço falo com as vítimas, tento conhecer os caminhos por onde andaram, o vocabulário que utilizam, que objectos possuem. E tudo isto define os materiais e as formas que utilizo nas minhas obras.

E um objecto escultórico é suficiente para conter toda essa realidade?

O Beckett na sua peça "Molloy" diz: "A tarefa dos objectos é restaurar o silêncio." Por isso os objectos podem conter todo aquele horror de forma muito mais veemente do que as palavras. Porque são precisos.

As palavras não?

Eu sou escultora e as palavras são-me difíceis. A poesia é um exercício de precisão, mas não para mim. Os objectos têm uma capacidade de comunicação transversal. Nos objectos que utilizo [muitas vezes peças de mobiliário como portas, cadeiras ou mesas] consegue ler-se se as pessoas os utilizaram, como os utilizaram, as condições económicas das pessoas que os utilizaram. Por exemplo, se uma pessoa se senta muitos anos numa cadeira ela fica marcada com essa presença. Os objectos estão carregados de vestígios e pegadas.

Mas no seu trabalho nem sempre utiliza objectos, constrói coisas novas.

Umas vezes sim, outras vezes não. Muitas vezes uso objectos que me foram dados e cuja história conheço. Na peça para a Bienal de Istambul [instalação em 2003 em que preencheu o espaço púbico entre dois edifícios com 1600 cadeiras] todas as cadeiras tinham sido usadas. Mas não me interessa se o objecto é usado ou se sou eu que o crio, porque é sempre possível carregar o objecto com um significado.

São situações diferentes. Quando uma vítima me dá alguma coisa, esse objecto já vem carregado com uma história específica; quando são criadas coisas novas, eu confiro ao objecto a capacidade de contar uma história. Mas nos dois casos tudo depende do testemunho que me dão.

Por que é que está sempre a falar em vítimas?

É o mundo que conheço. Venho de um país em que tudo foi violento: a conquista, a colonização, a descolonização. E a história da violência permanece. O mundo de onde venho é um mundo subjugado, que está abaixo, que tem pele escura, que é Terceiro Mundo. E a mim interessa-me contar a história do vencido, porque a história do vencedor já está contada. Trata-se da história do lugar a que eu correspondo.

Numa entrevista disse: "Não quero ser recordada como mulher, colombiana ou católica, mas que digam que sou do Terceiro Mundo."

É muito importante ser do Terceiro Mundo. Para mim, viver no Terceiro Mundo é um privilégio. Dá-me muita força e coloca uma enorme urgência em tudo o que faço. Tenho muito para fazer e dizer: há um milhão de histórias que preciso de contar. Portanto, ter nascido e viver na Colômbia é um dom. Este é o meu lugar, é o sítio de onde vejo o mundo.

E não sente falta da mudança?

Sim, cada vez sinto mais. "Plegaria Muda" é a minha primeira obra que tem vida: a relva nasce do interior das mesas. E é como se estivesse a dar conta do triunfo da vida: não interessa quantas guerras há, quantos massacres e assassinatos são cometidos, porque a vida prevalece. Franz Rosenzweig [filósofo judeu alemão 1886-1929, autor do livro "A Estrela da Redenção"] diz que existe a vida eterna porque quando alguém está a morrer há alguém que está a lavar roupa, outro que está a cozinhar, outro a escrever e quem esteja a nascer. Tudo é vida.

Está a falar do modo como pela primeira vez a vida está presente num dos seus trabalhos. Seguindo esse raciocínio, podemos afirmar que a arte nos redime?

Não. Não acredito da redenção estética.

Então neste contexto das vítimas e da vida eterna, qual é o papel da arte?

Para que um ser humano assassine outro ser humano é preciso bestializar o outro e vê-lo como um objecto, numa coisa não-humana. Esta é a condição "sine qua non" para que o assassino assassine. E a arte pode trazer quem morreu de regresso à vida, anulando a sua coisificação. A arte devolve esse ser à esfera do humano. Em poucos, difíceis e raros momentos, a arte pode aceder a esse carácter sagrado. E este é o máximo a que a arte chega, porque não dá respostas. A arte amplia as perguntas que é possível fazer. E é com isto que um artista pode contribuir.

Como é que foi ser criança na Colômbia?

Para uma pessoa da classe média, como eu, foi um privilégio, porque não olhamos para nós próprios, mas para fora. Há um enorme complexo de inferioridade que se traduz numa enorme curiosidade em ver o outro diferente de ti. Nos países ricos está-se sempre a olhar para o umbigo. Quando se cresce no Terceiro Mundo, há esta necessidade de olhar para fora e esta necessidade é um privilégio: obriga a ver a diferença, a reconhecer o que não se tem e o que faz falta.

E aprender arte?

Foi aborrecido, tal como é em todo o planeta. O cânone europeu está institucionalizado. E para nós, no Terceiro Mundo, aprender essa arte foi aprender aquilo que não éramos: não nos mostravam pinturas com pessoas de pele escura e cabelos crespos como o meu. É uma experiência curiosa, porque me ensinaram arte com a ingenuidade de dizer que fazíamos parte do mundo que aquelas obras descreviam e mostravam. E percebi que tudo aquilo me era alheio, mas foram aquelas regras que tive de aprender.

Mas como foi o seu percurso de estudante?

Desde os sete anos que frequentei o ensino artístico. Depois fui para a Universidade em Bogotá, onde estudei História da Arte e Escultura. Só depois fui para Nova Iorque fazer um mestrado em Escultura. Foi aborrecido, porque o ser humano, onde quer que esteja, tem de contar a história do sítio onde está. E Nova Iorque e os seus mitos já foram contados tantas vezes que, para mim, seria redundante ser ali artista. Há artistas que admiro muito que o fazem, mas, para mim, não dava. E sempre foi claro que queria regressar a Bogotá. Nunca quis imigrar.

Fala muito da morte, mas existem muitos tipos de morte. De que morte lhe interessa falar?

Da morte em vida e da morte social e da morte violenta. Ou seja, da morte trágica, porque é na tragédia que se descobre o ser. E eu vivo num lugar onde a tragédia é quotidiana. Nessas tragédias o ser humano é levado a um limite onde, para sobreviver, tem de ser mais criativo. Para mim, viver na Colômbia é viver numa cápsula de experiência condensada. E nesse ambiente trágico que habito vejo, como diz Rosenzweig, o puramente humano. E é desse ponto-limite que se origina a criatividade. O criativo está na tragédia.

Quando diz que a sua arte conta a história silenciada, isso significa que quer rever através do seu trabalho a história ortodoxa?

Repensar a História seria a grande coisa. É preciso, como diz Walter Benjamin, não permitir que o vendaval do progresso feche as asas do anjo da História. Para mim o importante é resistir e contar essas tragédias. Voltar a contar e voltar a ver para que surja o momento messiânico. Que não é a obra de arte, mas é um momento. A arte pode resgatar alguns momentos esquecidos da História para os podermos pensar e o meu trabalho é fazer esse resgate do tempo. Depois o que a sociedade faz com isso já não sei. Eu sou só uma artista.

Nunca se questiona sobre se não estará a estetizar a tragédia? Porque, mesmo sendo a sua obra sobre o terror e as vítimas, as suas obras são motivos de prazer estético. E isso não é perverso?

Nunca há ingenuidade em arte, ela é sempre perversa. Mas há uma diferença. Quando se trabalha sobre a tragédia caminha-se à beira de um abismo: de um lado está a glorificação da violência, do outro a possibilidade de criticamente falar da violência humanizando e embelezando o humano da vítima. São duas coisas diferentes. A arte é complexa, mas há uma diferença essencial: o momento de beleza que aparece no meu trabalho está no humano que eu tento resgatar das vítimas da violência. E resgato esse momento para o devolver àqueles que foram privados da sua própria humanidade.

Quando diz que quer devolver a humanidade que foi roubada às vítimas, isso significa que faz monumentos?

Não. O monumento permite a uma sociedade recordar os mortos que lhes convém: os heróis e os que triunfam. O meu trabalho é um memorial ou, porque na minha língua não existe essa palavra, lugares de memória. É um lugar à parte da vida. Os monumentos estão inscritos na vida em praças ou em parques que são o centro da vida social de um comunidade; a mim interessa-me criar lugares de memória que estejam fora da vida. Os meus lugares de memória é onde se lembram os mortos, mas são isolados e diferentes do espaço da vida.

Em "Shibboleth", que apresentou na Tate em Londres, falou da emigração. Qual é a tragédia da imigração que quis denunciar?

Certas pessoas emigram em condições que implicam risco de morte e outras são sujeitas a humilhações e segregações. Era este o aspecto que me interessava. E a Turbine Hall tem um lado interessante porque é um espaço democrático público. E neste lugar interessava-me colocar aqueles que, como eu, vêm do Sul para o Norte. Impressionou-me muito que quando as pessoas chegavam àquela sala toda a gente olhava para cima e eu perguntava-me porquê. Não se está à frente das pirâmides do Egipto ou do edifício mais alto do mundo, então porque se olha sempre para cima? Detectei ali um certo narcisismo e interessou-me logo mudar a perspectiva e levar para ali a perspectiva de muitos emigrantes: estão sempre a olhar para baixo, a vender coisas sentados no chão e, como se diz em inglês, são "underclass". E quis evidenciar isto.

E como chegou à conclusão de que a melhor forma de expressar essa perspectiva de ver de baixo era abrir uma fenda no chão?

Não sei bem. Posso dizer que nessa altura andava a ler muitos livros acerca do racismo como sistema de pensamento e estudar as mortes nos lugares que os emigrantes usam para passar as fronteiras: o muro entre o México e os EUA, ou entre Israel e a Palestina, o antigo muro de Berlim.

Nunca pensou que essa intervenção, em vez de ser temporária, como são todas para ali criadas, ia ficar lá a marcar o espaço para sempre?

Eles sabiam. E com grande generosidade, aceitaram-no. Eu sabia que a obra ia cicatrizar no espaço. Tal como as cicatrizes que a Europa tem relativamente à forma como exerceu o poder nos países do Sul.

Independentemente da carga política e ideológica da sua obra, dizem que quando chega a um espaço onde vai fazer uma exposição fica durante um longo tempo muito concentrada a olhar.

A arquitectura não só nos abriga, como nos define e domina. A minha relação com a arquitectura é essencial. Observo o espaço porque há uma precisão total na obra de arte. O meu processo é intuitivo, mas o cuidado e a precisão são essenciais para construir o sentido. Não sei bem verbalizar isto. Sei que é contraditório falar de uma coisa precisa e intuitiva, mas trabalho assim. A concentração é o que permite que a intuição seja precisa. Não acredito na improvisação, nem acredito que qualquer gesto ou movimento sejam valiosos. Há que prestar muita atenção e fazer as coisas com comedimento e devoção. Nesses momentos alguma coisa surge, dá-se.

Isso deixa-a numa situação difícil relativamente a uma grande parte da arte moderna e contemporânea.

Não acredito em nada disso. Admiro muito Duchamp, mas não gosto dos filhos dele. Para nos aproximarmos da experiência humana contida nas obras de arte é preciso ser cuidadoso e delicado. O descuido não serve para a arte. A arte tem que ver com respeito, cuidado, devoção, atenção e precisão.

E a arte pela arte?

Não me interessa para nada a arte auto-referencial. Claro que há artistas que fizeram coisas interessantes, mas eu não o poderia fazer. Não posso estar alheada do mundo, interessa-me a maneira como as pessoas vivem, como é a vida quotidiana em tempo de crise e como a vida se transforma. E a arte só me interessa porque me permite estabelecer todas esta conexões entre o político e o poético.

O modo como fala parece sugerir uma artista cujo trabalho é solitário, mas ouvi-a um dia dizer "I"m not a solo singer."

Sim, é verdade, somos um coro. Há muitas pessoas que trabalham comigo. Primeiro, trabalho muitíssimo com as vítimas, relações que se prolongam no tempo, e depois tenho a felicidade e a honra de trabalhar com pessoas inteligentes que me ajudam na elaboração das obras. Estamos sempre a discutir e a testar ideias. Primeiro faço a pesquisa, depois fico sozinha a desenhar e só depois vou ter com estas pessoas que me ajudam e então começamos a construir as obras.

Refere muitos filósofos e poetas judeus. Há alguma razão especial?

Eu tive uma educação católica, mas o pensamento judeu é a minha espinha dorsal. Há uma maneira judia de ver, questionar e de dialogar com a vida que não se encontra noutro lado. O judaísmo questiona e interpela tudo e todos, até Deus. E no centro do meu pensamento está o Holocausto, a memória e a necessidade de nunca esquecer os seus mortos que Walter Benjamin fala. São tantos os elementos do pensamento judeu onde me revejo que não consigo dizê-los todos.

Tem uma consciência grave e trágica da vida. Como consegue manter a delicadeza que tão bem a caracteriza?

É difícil, porque as coisas que vou conhecendo mudam a minha vida. Normalmente pensamos que somos imortais, mas aproximo-me muito do horror da morte. O que me dá uma grande consciência da fragilidade e vulnerabilidade da vida. É uma carga pesada. Mas aprendi que só me posso aproximar do outro humano, que muitas vezes foi torturado e silenciado, que é frágil e sensível, com a maior delicadeza e subtileza possíveis. Não se pode fazer de outra maneira. A aproximação a um ser ferido e vulnerável cuja única protecção, como diz Lévinas, é a fragilidade da sua pele é através da delicadeza.

Não há aqui outra contradição? Essa delicadeza resulta, em alguns trabalhos, em obras escultóricas com uma enorme escala: fendas gigantes no chão, 1600 cadeiras depostas no espaço público, 162 mesas espalhadas pelo CAM.

A vida é forte. E se nos aproximamos da tragédia, a vida intensifica-se. Eu preciso que a dor da história que conto seja incessante.

É religiosa?

Eu sei que uso um vocabulário muito religioso e que me movo numa zona próxima do misticismo, mas não o faço no sentido convencional. A minha religiosidade é, como diz Derrida, responsabilidade. É isto que me interessa: assumir a responsabilidade de estar viva. Somos responsáveis por tudo, mesmo por tudo. Repito: somos responsáveis por tudo e em todos os momentos. E ainda tenho muitas obras para fazer: no meu "atelier" tenho imagens coladas nas paredes para me lembrar todos os dias das coisas que ainda me falta fazer.

Ver crítica de exposições págs. 37 e segs.

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