Exilados naterra onde nasceram

Somam mais de mil. Foram forçados a regressar aos Açores por terem cometido algum crime que pode nem ter sido grave ou violento. Alguns parecem párias nas ruas de São Miguel. O seu país legal é Portugal, mas o seu país psicológico é o Canadá ou os Estados Unidos

Joe não tem horas para começar a beber. "Depende do dinheiro que tenho." Se não bebe, lá vêm tremores, náuseas, insónias, irritabilidade, ataques epilépticos. Há dias, caiu. Feriu-se na testa. "Bebo, esqueço. No dia seguinte, tenho o mesmo problema à porta: estou aqui nesta merda desta ilha. It could be worse. Oh. Podia ser pior. Podia ser repatriado para a terra dos taliban."

Tatuou a data no braço esquerdo: 15-7-95. Como se fosse possível esquecer aquele dia - o dia do regresso forçado aos Açores. Não tinha qualquer memória da partida de São Miguel. Partira com 16 meses. Cantava o hino norte-americano a cada manhã, numa escola de Providence, Rhode Island. E é o hino norte-americano que canta aos 46 anos, de pé, de mão no peito.

Passa horas no Campo de São Francisco, a poucos passos das portas da cidade de Ponta Delgada. Não tem um trabalho. Faz uns "fretes" a uns taxistas. "Vou pagar a água, vou pagar a luz. Limpo os carros por fora, limpo os carros por dentro. Vou ganhando uns trocos."

Esta é a sua "pequena New York". Há sempre alguém a falar em inglês nos bancos corridos, de madeira, ou no coreto, uma construção de cimento, com um rendilhado de ferro. "Metem-se aí a pedir esmola. Estão-se drogando para esquecer. Estão tomando bebedeiras para esquecer. Muitos também estão vendendo droga. É um sobrevive deles."

Logo pela manhã, conversam alguns, entre plátanos podados, perto de um frondoso metrosídero que resiste apesar de um raio lhe ter atravessado o tronco há quatro ou cinco anos. Há outros metrosíderos, embora de menor porte, ao longo da marginal de Ponta Delgada. Quando o calor chegar, Joe e os amigos devem passar lá, para a sombra. Que ninguém lhe chama repatriado. O que é pátria? "I"m an american!" [Sou americano].

A revolta pode ser grande. A revolta pode ser maior do que um homem. A de António faz-lhe trovejar a voz: "Cinquenta anos que eu estava lá. Fui com a família toda. Tinha um permanent residency card [visto permanente de residência]. A palavra permanent means forever. Forever é para sempre. O que estou a fazer aqui? Eu saí daqui com cinco anos de idade. Não sabia o que era o mal. Se aprendi, foi lá. A América não quer ser responsável pelo que fez. Vão botar fora um gajo que tem pequenos, que é avô e tudo!"

O primeiro deportado aterrou em 1987. O número subiu após o atentado de Oklahoma City, perpetrado por Timothy McVeigh a 19 de Abril de 1995. Os EUA aprovaram uma lei que não ordena apenas a expulsão de estrangeiros indocumentados, mas também a de condenados por algum crime, ainda que cometido muito antes. Com os atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque e em Washington, obra da Al-Qaeda, criaram um sistema global de alerta.

Durante anos, nem passou pela cabeça de António tornar-se norte-americano. "Não contava para nada." Só por seis meses escapou à guerra do Vietname. "A diferença é que a gente não podia fazer voto. Não me preocupava com quem ia ser meu presidente. Eles fazem o que querem, anyway. Quando queria ser natural, já tinha crimes em cima de mim, so... não podia."

Qualquer coisa o chamava para o arquipélago. Em 2002, veio ver uns terrenos, averiguar a possibilidade de recuperar uma casa de família. Há cada vez mais quem viva com um pé nos Açores e outro nos Estados Unidos ou no Canadá. Chamam-lhe população transatlântica. "Eu queria retiring [reformar] aqui, mas queria ir para trás, não queria ser deportado da terra que eu conheço."

O inesperado aconteceu ao tornar a casa. António entrou no guichet para mostrar o passaporte e o cartão de residente à polícia de imigração e protecção de fronteira. Tiraram-lhe fotografias e impressões digitais, como fazem a qualquer estrangeiro. Desenterraram o seu registo criminal. "Isso foram coisas que aconteceram muitos anos para trás. Eu estava fazendo bem. Tinha um negócio. Estava amanhando coisas: roofs [telhados], isso tudo."

O que fizera, afinal? Da primeira vez, impeliu-o uma paixão. "A minha rapariga morava a uns 20 ou 30 minutos. Eu não tinha bicicleta, não tinha carro. Roubava um carro para ir, roubava outro para voltar. Isso era o primeiro namoro. Diz que é o melhor. Não sei. Tinha 16 anos." Meteu-se nas drogas. Esteve preso por elas. Livrou-se delas. "Eu estava fazendo bem. Eu vim para cá, tinha 10 mil dólares ao lado. O dinheiro que eu tinha aqui foi todo para trás para eu pagar um lawyer [advogado]."

Lutou o mais que pôde: "Eu não saí da cadeia e vim para aqui. Eu saí da minha cama e vim para aqui. Eu fiz o appeal. Vim em 2010. Tenho 57 anos. O que vou fazer com a minha idade? Estou aqui para morrer! Vim para a minha terra para morrer. Não posso ver família, não posso ver ninguém. Não tenho amigos aqui, só pessoas que conheço. A pior coisa que Portugal fez foi meter-se nessa merda. Devia dizer: "Hello! Ele fez crimes aí. Ele fez prisão pelos crimes. Fica com ele!""

O último a aterrar foi Augusto. Só trazia a roupa do corpo. Estava tão atarantado que nem viu os técnicos que o aguardavam no Aeroporto João Paulo II e que o haveriam de conduzir ao Centro de Acolhimento Temporário de Emergência, numa rua íngreme que leva a um novo bairro de classe média, abaixo da casa de Walter Oliveira da Ponte, um dos homens mais ricos dos Açores.

Está sempre de pé atrás, de sobrolho franzido. Não diz o que o trouxe aqui. É como se ainda tivesse de se reger pelos velhos códigos. Numa cadeia de alta segurança, não há partilha de informação. Qualquer pergunta pode ser encarada como uma invasão. Augusto está a adaptar-se ao mundo exterior. Augusto está a adaptar-se a um mundo exterior desconhecido.

Carlos aterrou há 20 anos e nunca se adaptou. Anda entre a Calheta e o Campo de São Francisco. Há 20 anos, não havia apoio. "Quem chegava ficava nos caminhos." Refugiou-se numa lixeira. Viveu 16 anos por lá, a pescar metais, a vendê-los a sucateiros. "Às vezes não conseguia dormir. Aquilo era uma mata, não havia casas. Às vezes, chegava [à barraca] e estava a porta partida. Levavam coisas." Ganhou medo. Convenceram-no a mudar-se para um quarto.

Pelo menos 877 açorianos com residência legal permanente foram deportados nos últimos 25 anos -711 dos EUA, 165 do Canadá, um das Bermudas. Somando os ilegais de que há registo, o número sobe para 1161. A maior parte desembarcou em São Miguel, ilha-verde por eles rebaptizada "the rock", numa alusão a Alcatraz, ilha-prisão da baía de São Francisco, na Califórnia.

A Direcção Regional das Comunidades recebe uma ficha básica: nome, idade, data da chegada, motivo, destino, existência ou inexistência de familiares. Remete-a ao Instituto para o Desenvolvimento Social dos Açores (IDSA) e a duas instituições particulares de solidariedade social mandatadas para receber os recém-chegados e oferecer-lhes ajuda - a Novo Dia e a Arrisca.

A presidente da Arrisca, Suzete Frias, jamais esquecerá um "psicótico" que veio dos Estados Unidos num jacto. Era como se a tivessem puxado para dentro de um filme sobre o Campo de Detenção da Baía de Guantánamo. O homem usava um fato-de-macaco cor de laranja, algemas nas mãos e nos pés. Entregaram-no como quem "entrega uma encomenda". "Deram-nos uma caixinha com a medicação dele, disseram-nos que às tantas horas ele tomava aquilo, e foram-se embora."

Também lhe ficou na mente um "psicótico" que só vestia umas calças de ganga e uma T-shirt, calçava uns chinelos de enfiar o dedo e segurava uma caixinha de cartão com uma Bíblia, uma escova de dentes e alguns medicamentos. "Vinha com um batalhão de médicos e enfermeiros. Levámo-lo para a urgência para internamento. Era o destino adequado."

Não eram mentes perversas com currículos criminais extensos, daqueles que o imaginário cinematográfico coloca em listas intituladas wanted [procurados]. Eram doentes mentais que, num momento de crise, tinham agredido algum familiar. Os apelos dos familiares de nada lhes valeram.

A psicóloga pega num maço de folhas que tem em cima da mesa do seu escritório, uma sala pequena num prédio antigo, sempre com gente à porta. Cita a Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Ninguém será submetido a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante." Continua a citar: "Toda a pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei." Alguns viajam sem qualquer documento, com um papel emitido pelo país que os deporta. "Até o direito à identidade lhes é negado."

Amiúde, nem lhe parece correcto falar em deportação. Tudo lhe cheira a exílio, banimento, degredo. "As referências de quem cresceu nos EUA ou no Canadá estão nos EUA ou no Canadá. Esse é que é o seu país. Muitos foram à tropa. Alguns têm certificados de mérito. É muito difícil aceitar que esse país os rejeitou. É mais fácil culpar alguém com quem não têm um vínculo afectivo. Nós passamos a agressores. Eles estão cá porque Portugal os aceitou."

Portugal também deporta. Só que Portugal não deporta quem se instalou no país antes dos dez anos.

As comunidades portuguesas têm saído em defesa de compatriotas com doenças graves. Já salvaram um portador de Machado-Joseph, a chamada "doença dos pezinhos". Fizera um cruzeiro ao México para celebrar os seus 25 anos de casamento. Ao regressar, via Miami, numa cadeira de rodas empurrada pela mulher, o sistema alertou para um crime de juventude. "Outro direito humano quebrado", enfatiza Suzete Frias, tornando a citar a carta dos direitos: "Não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao acto delituoso."

A directora regional das Comunidades dos Açores, Graça Castanho, também conhece "casos incríveis": "Se estiver desprevenido, é deportado um indivíduo que quando era novo roubou um pacote de bolachas e agora é apanhado com excesso de velocidade." Nos EUA, a deportação é pena acessória para uma extensa lista de crimes, inclusive crimes menores e não violentos, como perjúrio. Vêm, sobretudo, por posse ou tráfico de droga, violência doméstica, roubos. O governo açoriano recomenda a quem tem cadastro que não vá ao estrangeiro nem peça cidadania norte-americana e aos outros que a peçam quanto antes.

Às vezes, tudo se precipita. Quando Márcio aterrou, a São Miguel não chegara qualquer informação.

"Eu fui para a América com dois anos. Eu nunca veio cá. Não sabia nada dessa ilha. A polícia veio [comigo], tirou-me as algemas.

- Até logo.

- Até logo?! Onde vou?

- Isso é contigo.

Não estava ninguém à espera. Fui andando. Fui andando sempre para cima. Já não havia casas. Era só pasto. No outro dia, comecei a andar para baixo. Parei no hospital novo. Estava em obras. Só tinha um segurança lá. Eu não falava português bem. Ele chamou a polícia. A polícia veio.

- Eu não sei nada disto...

- Tem família cá?

- Tem.

- Quem?

- O tio João.

- Onde está?

- Não sei.

Fomos para a esquadra.

- Sabes o número de tua mãe?

- Sei.

Eu chamei a minha mãe por telefone.

- O que passa contigo? Não chamaste ontem.

- Mãe, estou no Portugal.

- O quê?!

Ela começou a chorar. O meu pai veio ao telefone.

- O que passa? Apanhaste mais tempo na cadeia?

- Não. Estou no Portugal.

- O quê?!

- Fui deportado.

- Não, não foste deportado! Ainda vais para tribunal.

Eu tinha um advogado. O meu advogado teve um ataque de coração. Eu fui para tribunal sem advogado. Eu disse ao juiz: "Vamos fazer isto mais tarde, tenho de arranjar outro advogado." O juiz disse: "Tens dois meses". Dois dias depois, estava num avião para aqui."

Tinha 17 anos. Viveu com o tio três semanas. "Com o meu tio, havia horas para estar em casa. Eu saí da cadeia, queria andar fora."

O sociólogo Miguel Brilhante, autor do livro As Representações Sociais do Repatriado (Salamandra, 2000), julga que é preciso recuar até ao projecto migratório para perceber histórias destas. As famílias partiram atrás do chamado american dream, a oportunidade de prosperar através do trabalho árduo. Em nome de casa, carro, electrodomésticos, dólares, muitos adultos entregaram-se a longas jornadas de trabalho. E, nalguns casos, as suas crianças cresceram na rua, com os amigos, imersos numa "subcultura que aprova padrões de conduta anti-sociais".

Márcio encaixa nesse retrato-robô. O pai tinha uma empresa de reparação de casas. A mãe trabalhava numa fábrica de peças de computador. "Eu andava com um gang. Há gangs muito mais duros do que o meu. We were just a bunch of kids hanging around. Éramos todos portugueses. Éramos os Dover Boys. Vivíamos em Dover Street, Fall River, Bristol County, Massachusetts."

Já não está sozinho na ilha. Volvidos três anos e meio, aterrou um irmão, Jorge. Volvidos dez anos, outro irmão, Ricardo.

Jorge não se vê no Campo de São Francisco, onde se fazem as festas do Santo Cristo dos Milagres a cada quinto domingo depois da Páscoa. Trabalha de noite numa padaria. Dorme de dia. Ricardo também não se vê. Está no Estabelecimento Prisional Regional de Ponta Delgada. Márcio não o esconde: "Ele estava vendendo drogas. Dizem que eu estava metido nisso. Não há provas disso. Nunca estive preso por drogas. Estive preso por brigas na América."

Há outros repatriados no Estabelecimento Prisional Regional de Ponta Delgada, que há muito aguarda substituto. Vivem em celas sobrelotadas, degradadas. Joe já lá esteve duas vezes. "Um homem chega a um certo tempo que... Muitos já fizeram muitos anos de prisão lá fora, não têm medo da prisão aqui. Isso aqui é uma creche. Donde é que tu vês uma prisão com bar?"

Manuel saiu de lá directamente para o Centro de Acolhimento Temporário de Emergência, estrutura com 16 camas, que pode alargar até 19 em caso de necessidade. Tem um olhar mortiço, um tom de voz lento, arrastado. "A vida aqui não é ruim. Só não quero ficar aqui sempre..."

À chegada não passou por este centro gerido pela associação Novo Dia. A mãe acompanhou-o desde Boston, Massachusetts, até à velha morada, uma daquelas casas térreas só com uma porta e duas janelas, na freguesia da Fajã de Cima.

A irmã morava lá. Brigavam muito. A irmã saiu. Manuel entregou-se à cerveja e ao vinho. Um dia, armou zaragata. Esteve preso três anos e nove meses. Enquanto isso, outros invadiram-lhe a casa, apoderaram-se do que nela havia. "Levaram janelas, fios da luz, tudo."

Se fosse um caso típico, já dormia num apartamento de transição da Arrisca ou num quarto comparticipado pelo IDSA. Aguarda pelo arranjo da casa há um ano, aqui, no centro, onde hoje lhe cabe ajudar a fazer a massa com carne que servirá de almoço. "Às vezes há brigas. Um dá uma bofetada, outro dá um soco. Quem faz isso é expulso um mês. Já fui expulso. Fiquei ali em baixo, na rotunda de Santa Clara, numa casa abandonada..."

Não podem passar o dia inteiro entre os sofás de napa rasgada que estão no fundo do hall e as cadeiras de plástico que estão no átrio comprido, ladeado por muros brancos, altos. Deportados ou não, têm de passar grande parte do dia na rua - há todo um programa, que pode incluir acompanhamento psicossocial e terapêutico, trabalho ocupacional, formação e integração profissional. Se consomem drogas, álcool incluído, não entram.

Há meia dúzia de homens a dormir nas ruas da cidade. Um deles aterrou há mais de 20 anos. A equipa móvel Novo Dia passa por ele ao fazer a distribuição de sandes e fruta de manhã e de sopa e fruta de tarde. Não fosse isso, só bebia. Se puder, bebe mais de dez litros por dia. Adormece a qualquer hora, em qualquer lugar.

Há quem mude de passeio ao ver um grupo aproximar-se com tatuagens, roupas largas, a falar em inglês. Uma casa que está para arrendar pode deixar de o estar mal o senhorio ouve o candidato expressar-se num português afectado. Conquistar uma rapariga pode obrigar a vencer o preconceito dela e da família.

Nelson, um rapaz alto, de olhar desafiante, que ciranda pelo Campo de São Francisco, compreende a reacção. "Há deportados que fazem merda atrás de merda. Também já fiz coisas más aqui. Já fui detido. Bati num polícia. O polícia estava incomodando o meu espaço."

Zita, uma das poucas mulheres que por estes dias frequentam o grupo, irrita-se só de pensar nisto: "Não sei por que é que eles pegarem a gente para trás. Não querem a gente aqui. A gente semos todos bandidos, drogados, ladrões, putas. Por que é que pegarem a gente para trás?"

Miguel Brilhante compara o fenómeno ao racismo. Determinadas características exteriores colam-se a determinados traços de carácter. "As primeiras pessoas a excluí-los são os familiares. Como sabem que lá causava problemas, dizem: pode vir para cá, mas não vem para a minha casa."

Zita sentiu tudo. "Eu chegou aqui eu não tive ninguém. Eu tenho família aqui, mas eles não falam comigo. Tenho um primo que fala comigo. O resto, esquece." Zita sentiu tudo a dobrar: "Eles não sabem se sou homem ou mulher. Só quando eu me viro vêem que eu tenho mamas."

Todos os anos, por altura do Natal, Paulo Fontes, coordenador técnico da Associação Novo Dia, dá alguma entrevista sobre sem-abrigo e aproveita para falar sobre a discriminação que se abate sobre quem aterrou nas ilhas sem querer. "Temos uma história de emigração de sucesso. Esta é a face negra. Ninguém gosta de se confrontar com ela."

Houve impacte no arquipélago. "Têm uma escola do crime que difere da nossa, pela agilidade, pela gravidade", argumenta Miguel Brilhante. Não é o que era nos anos 90. Até pela rede de apoio entretanto montada. "Não podemos dizer que o problema da criminalidade decorre desses cidadãos", diz o subcomissário Nuno Costa, porta-voz do Comando Regional dos Açores. "Temos tido informação [sobre chegadas], temos controlado essas pessoas, temos tentado perceber se são reintegradas. Muitas têm sido ajudadas, não têm causado problemas. Algumas têm causado problemas, têm sido detidas."

Zita não esperava isto: "Saí do avião, a primeira coisa que cheirei foi a merda das vacas. Smells like Açores. Yeah, my Portugal."

O estigma já minou mais o quotidiano de quem foi forçado a vir. Antes, acontecia qualquer coisa: "Foram os repatriados!" "Por que é que os jornais diziam que era repatriado [quem praticava o crime noticiado]?", pergunta Paulo Fontes. "Já não se faz tanto isso. Já se ouve: "Os repatriados não fazem tudo"." A presidente do IDSA, Paula Ramos, também acha que "já foi pior". "Já não vão tanto para os jornais, nem escrevem cartas para todos os departamentos do governo a dizer que não querem aquelas pessoas [a viver perto]."

A Arrisca planeia pôr deportados e comunidade a falar uns com os outros para que percebam que há agressão e vitimização dos dois lados. Tenta desmontar estereótipos na reabilitação de deportados. Ainda nada faz com a comunidade. "Falta fazer todo um trabalho de sensibilização", argumenta Suzete Frias. "Temos aqueles totalmente disfuncionais, que são menos, que são uma minoria, mas que servem para pôr o rótulo nos outros todos. Temos senhorios que ficaram com as casas destruídas, logo, não vão voltar a querer alguém que fale inglês."

Não ficam todos subsidiodependentes, como se diz nos cafés ou nos minibusda ilha maior. O IDSA apoia, através das associações, 227 repatriados com antecedentes criminais: 150 em São Miguel, 57 na Terceira, oito no Faial, sete em Santa Maria, dois na Graciosa, dois em São Jorge, um no Pico. O número não é estanque. Saem uns, entram outros. Pelos cálculos de Paula Ramos, haverá uns 200 amarrados ao sistema. O que faz com que uns consigam desatar amarras e outros não?

Procurando, até se encontra quem veja no processo de deportação uma oportunidade de recomeçar sem mácula, como Fátima. "Voltei a nascer. It"s like a new life. I don"t have a criminal record [não tenho cadastro]. Posso votar. Tenho cartões de crédito. Lá fora, eu não podia votar, porque não tinha nacionalidade americana. Lá fora, não tinha cartões de crédito. I blew them up [estourei-os]."

Ninguém sabe por que aterrou a mulher de cabelos lisos, compridos, agora com 42 anos. "Nunca disse a ninguém. Eu paguei to seal my record. Porquê? I"m ashamed of what I did, so I don"t talk about it. Não me sinto bem com que eu fiz, prefiro não falar sobre isso, isso é o passado. Gosto da pessoa que sou hoje."

Nisto de ser despejado no lugar da infância, a atitude parece-lhe decisiva: "They give you the tools. Tu fazes o que quiseres. Não quer dizer que não foi difícil, mas eu disse-me: vou fazer uma coisa positiva desta situação ou não? Positiva ou não, eu tenho de estar aqui."

Durante um ano, deram-lhe um quarto e uma ocupação. "Trabalhava num lar de idosos. Ganhava 35 euros por semana. Com os meus 35 euros, consegui fazer as minhas compras e pôr dez euros de parte para se visse uma coisa que gostasse." Depois, entrou no mercado de trabalho. Serviu mesas num reputado restaurante de Ponta Delgada. "Chegava a casa, deitava-me na cama e chorava. Não era por estar lá. Eles mandavam-me buscar um pires, eu lembrava-me da minha mãe fazer suspiros, ia lá à cozinha: "Eu não vejo aqui suspiros!" Já vinha a tremer." Desenrascou-se. Convidaram-na para trabalhar com deportados. Trabalha com deportados e não deportados num apartamento de inserção.

Nunca se sentiu discriminada. Afastou-se dos outros. "Já sei como são as pessoas portuguesas. Iam dizer: é igual." Tentou passar despercebida. "I was all american when i came here [era totalmente americana quando cheguei] Levaram-me para vestir à moda european. Se vestisse à moda de lá, as pessoas iam saber. Era a minha psicóloga que dizia. Eles dizem a todos, só que eles levam a mal."

Quando aterrou, a 15 de Outubro de 2005, fez uma lista de resoluções: arranjar um trabalho, perder peso, pôr implantes dentários, usar o perfume Eternity, conduzir um carro. "Só falta a carta de condução!" Até o carro já comprou. "Estava a bom preço." Quem o conduz é o namorado, um homem elegante e bem-parecido há pouco deportado e já autónomo.

Tinha carta. A carta, nos EUA, caduca a cada dois anos. Esteve quatro anos presa. Não a pôde renovar. E Portugal não troca cartas caducadas nos EUA nem prevê que portugueses possam fazer exame de código com um intérprete. Quantos deportados sabem Português que permita escapar às rasteiras linguísticas? Se for estrangeiro, pode fazer exame com um intérprete, desde que pague. "Já escrevi para a Assembleia da República."

Não desiste. Não desiste da vida que deseja. Sabe que há quem desista. Nem precisa de sair do seu trabalho para o ver.

Zita esteve no Centro de Acolhimento Temporário de Mulheres em Risco. Passou a limpá-lo e a viver num quarto subsidiado. "Meti-me na droga. Aqui, é droga por todos os lados, todos. Eu não pensava que tinha tanta. Eu pensava que tinha marijuana, mas isso não tem. Isso é de vez em quando. O resto há sempre. Estava a consumir, não queria trabalhar. Perdi o meu serviço. Comecei a vender droga."

Não era novidade: "I like to smoke. I always did." [gosto de fumar, sempre gostei] Começou a fumar aos 10 ou 11 anos. Aos 12 ou 13 já vendia charros aos colegas. "Estive presa muitas vezes... fiz tempo quase dez vezes. Aqui nunca tive problemas com a polícia. Essa parte da minha vida já acabou."

Largou a heroína há quatro anos. Esteve três anos no Pinhal da Paz. Fazia limpezas naquela reserva florestal de recreio. O contrato terminou. Era um Programa de Ocupação Social de Adultos (Prosa), criado pelo Governo Regional dos Açores para trabalhadores com baixa empregabilidade. "Está mal para todos. Agora não faço nada. É passear por aí."

Sentada num banco corrido do Campo de São Francisco, olha para os companheiros de infortúnio, a conversar, a uns metros, de pé: "Este pessoal aqui... Fico doente. Eles querem tudo como se eles tiverem lá fora, mas a gente não está lá fora. Se não há serviço para os daqui! Eu vou procurar serviço. Como eu visto, como eu falo, não me dão serviço. Os únicos serviços que tive aqui foram o Novo Dia que foi buscar para mim."

Nelson deu o salto: Portugal continental, Bélgica, França. "O que é que há aqui? Se não era pelo meu tio, nunca tinha trabalho. Estou no Centro de Emprego. Nunca chamarem por mim. Quando estive na Maia, chamarem por mim. Tive trabalho fora do meu tio. Construção civil. Ninguém olhava para mim como um deportado. Era uma pessoa portuguesa." Derrubaram-no os opiáceos, que ainda agora lhe toldam o olhar e o deixam a viver numa casa sem água nem luz.

Joe aguentou-se nos primeiros tempos: "Não sei o que aconteceu. Juro que não sei. As coisas começaram a correr mal. Acho que foi no pensamento do que eu deixei lá atrás, na América. Comecei a beber. Deixei de trabalhar... comecei a pedir esmola na Igreja de Santo Cristo."

Paulo conseguiu. Paulo trabalha para o mesmo patrão há 14 anos. "Faço questão que as pessoas não saibam que sou repatriado. Alguns sabem. Pessoas da minha confiança..." Veio por um crime de juventude. Já construíra uma vida nova. Já tinha três crianças. "O acompanhamento das instituições ajuda muito. Se a minha família não viesse também, não sei... Se calhar andava sempre com a cabeça nos filhos, na mulher..."

Ainda disse à mulher: "Fica aí." Ela respondeu-lhe: "Vou contigo." Ficaram a viver numa casa cedida pelos sogros. Não se importa que os filhos regressem ao atingir a maioridade. "Têm lá avós, tios, tias, primos, primas, tudo. Aqui têm uma tia que não faz caso por eu ser repatriado."

Uma perda pode ficar estampada no rosto de um homem. A saudade das filhas, de 10 e 14 anos, carrega o rosto de Mário. "Tenho muitas saudades da América. Deixei as minhas pequenas lá. Sempre a chorar... Falo com elas pelo telefone, pelo Facebook. Eu fiz um erro. Foi a minha noiva.... A gente guerreava para cá e para lá. Ela chamava a polícia. O homem é sempre culpado..."

Aterrou há mais de três anos e ainda não se libertou da Arrisca. Mora num apartamento de transição. Emprega grande parte dos dias na recuperação de móveis. Durante um ano e meio fez um Prosa na carpintaria da instituição. Continuou a trabalhar lá outro ano e meio, com subsídio de desemprego. E ainda lá está, agora com subsídio social de desemprego. "É começar a vida de novo."

Em 1997, quando Paulo aterrou, havia mais trabalho. Era o boom da construção civil. A taxa de desemprego nos Açores rondava os 7%. No último trimestre de 2011, já tinha ultrapassado os 15%. Qual a empregabilidade para quem tem baixa escolaridade e fraco domínio da língua, como Mário?

Há quem mostre empenho, apesar de toda a adversidade. Reis dobra as manhãs a pintar pequenas peças de cerâmica no espaço ergoterapêutico da Arrisca. Os seus 61 anos não o impedem de delinear futuro. Voltou a estudar. Às quartas e quintas de tarde tem aulas. "Estou a fazer o 6.º ano. Quando acabar o 6.º, vou fazer o 9.º, tirar uma formação de canalização, o trabalho que fiz toda a minha vida."

Quem mantiver o registo criminal limpo em Portugal, ao fim de cinco anos, pode pedir para visitar os Estados Unidos. Alguns conseguiram autorização para ir ver pais ou filhos com algum problema grave. E essa esperança ajuda outros a evitar desvios.

Fátima está a tentar obter autorização para ver a filha, apanhada por uma doença rara. "Tenho recommendation letters de pessoas very important [cartas de recomendação de pessoas muito importantes]. Entreguei umas oito cartas ao consulado. Ele [o cônsul] disse-me que as minhas chances eram very good [muito boas], mas a decisão não é dele, é lá fora, vamos ver."

Desde 1 de Março, a Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa e o Consulado Geral em Ponta Delgada não processam vistos de Imigrante nem vistos derivados da Lotaria DV, um programa que todos os anos sorteia vistos de residência permanente. Qualquer entrevista ou visto dessa natureza tem de se fazer na Embaixada dos Estados Unidos em Paris.

O comportamento exemplar pode não chegar. Que o diga João, que aterrou em 2004: "Estava aqui há seis anos quando fiz os papéis. Tinha casa, trabalho, levei cartas dos meus patrões a dizer que sou trabalhador. Tinha cartas dos meus irmãos. Um tem cancro, outro hepatite. Queria ver eles. Meu registo criminal está limpo. Não aceitaram."

Tenta reproduzir o diálogo que teve nos serviços consulares.

"Perguntou-me:

- Gostas de Portugal?

- Queres a verdade ou a mentira?

- A verdade.

- Quem gosta de Portugal? A pessoa vive o tempo todo na América e depois vem para Portugal.

- Vais fugir?

- Para quê que eu ia para lá fugir se aqui vivo em liberdade?"

Recebeu um "não" volvidos três dias. Só queria ir três semanas a Connecticut. Queria ver os irmãos, antes que seja tarde.

Os custos das deportações não se pagam só nos Açores. "Muitas vezes são enviados os provedores, aqueles que garantem a subsistência da família, os que pagavam a casa, a educação", lembra Graça Castanho. "A mãe pode não ter capacidade para ficar com os filhos sozinha. Muitos ficam ao cuidado dos avós. Os avós não falam a língua das crianças. Isso dá problemas gravíssimos. Está comprovado que os filhos e filhas dos deportados e deportadas tendem a replicar o comportamento dos pais e das mães: o pequeno crime."

Por ora, não alimenta esperança de mudança. "Este ano, há eleições nos Estados Unidos. As facções mais viradas para os direitos humanos querem que essa lei seja alterada, mas muita gente da América profunda não quer. Esqueceram-se das suas origens. Quando se trata dos EUA e do Canadá, a menos que se seja nativo, é tudo uma questão da data em que chegou o barco ou o avião."

O IDSA já financiou a ida de alguns para o Reino Unido e para a Holanda. "Não é uma política de comprar passagens para os mandar para fora", afiança Paula Ramos. Faz parte das tentativas de inserção. "Se não conseguiram trabalho aqui, têm uma proposta para outro sítio e solicitam apoio, temos de analisar. Temos de ter a certeza de que não é uma artimanha para arranjar dinheiro."

Admite-se que possam acertar melhor o passo em cidades maiores ou em países com uma cultura mais próxima da sua. Mas esse caminho, avisa Suzete Frias, não serve para todos. Dois terços dos que ficam presos ao sistema sofrem de perturbações de personalidade, de doenças mentais ou de dependências. Metade já estava presa ao sistema antes de vir. "Temos de aceitar que uns terão sempre de ser ajudados. Primeiro, para a sobrevivência deles, depois, para redução de danos. Se passarem fome, os danos para a comunidade serão maiores."

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