Esta minoria canta mais altoque todasas maiorias

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ANTENNA/ FSTOP/ CORBIS

Aconteceu em 2003, quando o Primavera Sound era um festival de culto que atraía alguns milhares ao Poble Espanyol, representação das diversas comunidades espanholas em forma de pequeno bairro. A organização anunciou os White Stripes e nos blogues, nos fóruns e, imaginemos, nos cafés de Barcelona, houve quem não contivesse a indignação. Que era um sinal de decadência, que não se podia baixar os níveis de exigência e pôr em cartaz uma banda que perdera a sua singularidade e que era uma mais entre as que fazem a alegria da indistinta cultura de massas.

Em 2003 os White Stripes, alegavam os descontentes, já não eram compatíveis com o espírito do Primavera Sound. Sintomático: aquilo em que a banda se tornara a seus olhos, com Seven Nation Army omnipresente e cantado em estádios de futebol, tornava uma afronta a sua presença naquele festival que se queria impoluto, livre de mediocridade massificada. Os White Stripes dariam depois um concerto impressionante na praça principal do Poble. O público acabaria por abandonar as arcadas e reunir-se a céu aberto sob uma chuva diluviana.

Nove anos passaram. O Primavera Sound cresceu e já trocou o Poble Espanyol pelo bem maior Parc del Forum. Os festivais de música tornaram-se "o" caso de sucesso na indústria musical, crescendo por todo o lado, sob diversos formatos, e o Primavera Sound, cuja edição catalã de 2012 terminou domingo, já ganhou extensão fora das suas fronteiras. Ontem, arrancou o primeiro realizado no Porto, no Parque da Cidade. Entre hoje e domingo, quando o festival se deslocar para a Casa da Música e para o Hard Club, veremos os Walkmen e os Wilco, representantes de duas gerações da canção americana feita de nervo rock, e os Olivia Tremor Control, psicadélicos de culto da década de 1990 [entrevistas com os três nas páginas que se seguem]. Veremos a idiossincracia exuberante de Rufus Wainwright e a violência metaleira dos Wolves In The Throne Room. O histórico Lee Ranaldo, dos Sonic Youth, e os britânicos Spiritualized. A pop sintética, moderníssima, de James Ferraro ou o rock"n"roll dos Black Lips. O intimismo das canções dos Beach House e a fantasia tresloucada dos Flaming Lips. Os Gala Drop ou Linda Martini, nomes importantes da actual música portuguesa, e os espanhóis Las Mujeres ou The Right Ons, representantes da modernidade que interessa no panorama espanhol. Uma diversidade enriquecedora, mas com centro comum: música exigente, das margens, música que desafia ou se homenageia porque desafiou um dia.

Alternativa

Festivais há muitos e não são todos iguais. O que são estes Primavera Sound? Agregadores de micro minorias pop que, reunidas, criam uma comunidade maior - até porque, hoje, com a comunicação em rede e a diluição de fronteiras que tal trouxe, com a explosão das companhias low cost e a possibilidade de viajar a preços acessíveis, essa comunidade é verdadeiramente global: prevê-se que sete em cada dez espectadores do Primavera Sound no Porto sejam estrangeiros. Vêm atraídos pela cidade, periférica no contexto europeu, mas cujos encantos começam a ser descobertos mundo fora. Vêm porque sabem o que irão encontrar: um mostruário de diversidades que, na sua maioria, não está nos topes e não vende aos milhares, mas de onde sairão os nomes a ler nas enciclopédias da música popular urbana do futuro - sim, é em festivais como este que se vê a história acontecer.

O público sabe que não será enganado. Que comprou bilhete para um festival de música e que é música que terá, mantendo uma ideia de pureza e integridade que se associa à fruição musical. Uma ideia muito rock"n"roll, muito punk, muito indie, em que é fundamental a separação entre a música e o negócio - ele existe e todos o sabem, mas não é necessário que nos seja atirado olhos dentro, agarrando-nos o braço e berrando-nos aos ouvidos poluição sonora e visual em forma de marketing. No fundo, um festival como o Primavera Sound prova que há sempre alternativa ao que se pretende impor como inevitável, ensinamento importante nos dias que correm, em que é evidente a tentação do pensamento único nos mais diversos domínios da sociedade.

Com uma identidade vincada na idealização, na programação e na concretização, com a aposta em música que, na sua maioria, não passa na televisão e não se ouve nas rádios de grande divulgação, mas que se partilha nos canais formais e informais que a internet desbravou desde o início do século XXI, o Primavera Sound cresceu até se tornar, hoje, um acontecimento de absoluto destaque no mapa de acontecimentos musicais mundiais. Um símbolo de vitalidade da cidade que o acolheu originalmente - e da forma como esta se quer projectar no mundo - e também uma importante fonte de rendimento económico. Porque nada disto é loucura de quem acha que um festival de música pode ser feito da música e da cultura que lhe está associada, sem necessidade de bungee jumping, rodas gigantes e sabe-se lá que mais. Não, não é loucura de maluquinhos da música que só ouvem música que ninguém ouve. Prezando a singularidade, o festival tornou-se, escrevia o El Mundo, um "oásis económico" numa Barcelona que a crise financeira deixou em graves dificuldades. A edição de 2011 gerou 11,7 milhões para os cofres municipais, quantia que a edição deste ano, um recorde pelos mais de 150 mil espectadores, provavelmente baterá. E o Primavera Sound, ou o espírito que o anima, não é um "oásis".

Em 1999, nasceu em Minehead, Inglaterra, o All Tomorrow"s Parties, reacção aos exageros de dimensão e ao domínio corporativo dos grandes festivais. O nome definia desde logo uma identidade: trata-se do título de uma canção dos Velvet Underground, a banda que melhor representou a existência marginal, exploratória e inconformada do rock"n"roll. Em Minehead, recusava-se publicidade, privilegiava-se a pequena escala - não mais de um par de milhares de pessoas - e negava-se o aparato do estrelato - bandas e público ficavam alojados no mesmo espaço. Para além disso, entregava-se a curadoria do festival a uma figura do universo pop, não necessariamente musical - Matt Groening, criador dos Simpsons, foi curador. Hoje, o All Tomorrow"s Parties ganhou extensões em Nova Iorque ou na Austrália. E no Parque da Cidade, um dos palcos do Primavera Sound é, precisamente, do ATP. Em Barcelona, havia para além desse outro com algum simbolismo, o da Pitchfork, um dos mais influentes meios dedicados à música. Cresceu de forma semelhante ao Primavera Sound: no final da década de 1990 era um pequeno webzine dedicado à música independente. Daí para cá, cresceu exponencialmente - demasiado, dirão os que a vêm hoje como entidade corporativa mascarada de alternativa. O facto é que a sua influência é inegável: uma boa nota a um álbum pode "fazer" uma banda, uma actuação na Pitchfork TV alojada no site, pode criar um hype. Naturalmente, está no Parque da Cidade a cobrir o festival.

Num mundo em rede, esta rede está montada: a da música como um fluxo pop contínuo, um emaranhado de alternativas que constrói um mosaico onde convivem a história celebrada, o presente a descobrir e o futuro em construção. No fundo, estes acontecimentos significam a vitória de quem segue a música como definidora de vida, de quem rejeita a submissão desta à lógica mercantilista e agressivamente publicitária que tudo contamina. Não interessa a quantidade - mais não é necessariamente melhor e é por isso que o Primavera Sound se estendeu este ano Porto: a organização catalã não queria descaracterizar o festival, abrindo-o a mais do que 40 mil pessoas diárias, como nos explicava a semana passada o director Gabriel Ruiz. Interessa a sensação de pertença e, mesmo que ilusória, de proximidade - entre o público e com as bandas em cartaz, que não raro vemos passear pelo recinto, mais uns entre a multidão.

Ser indie

"Ser indie sempre foi estar à margem da música massificada, procurar obsessivamente objectos únicos, minúsculos, pessoais". Em 2006, começámos assim um texto em que procurámos sinais do representava essa exclusividade associada à cultura indie. Indie, de independente, claro. Já nessa altura a noção se tornara difusa e difícil de definir. Não se podia aplicar simplesmente a grupos de editoras independentes, como quando o termo foi cunhado. Não se aplicava somente às bandas, dos antigos Smiths aos antigos mas não tanto Belle & Sebastian, cuja música reflectia uma sensibilidade à flor da pele, um desconforto perante o mundo que as palavras certas e as melodias adequadas tornavam menos pesado, por sentir que havia alguém que partilhava as sensações que se calavam naqueles que não pegavam em guitarras, microfone, baixo e bateria. Mesmo pouco preciso, o termo, à falta de melhor, continua a ser o que melhor define esta comunidade de minorias que partilha uma mesma sensação de exclusividade. Não é no centro massificado da cultura popular que encontramos voz, personalidade, sentido. É a partir das margens, que não oprimem, antes libertam, que surge a possibilidade de uma escapatória à ditadura de valores que se impõe social e mediaticamente. É disto que falamos quando falamos de um festival de música? Sim, é disto que falamos quando falamos do Primavera Sound. Chegou ontem ao Porto. Um festival das minorias com as quais se fará a história da pop. Se somos todos minorias hoje, estas cantam mais alto que as outras.

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