Entrevista Gore HütterO homem que curou um doente com sida

Foto
O hematologista, fotografado durante o encontro organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto adriano miranda

É o primeiro caso documentado de um doente infectado com VIH que, após um transplante de medula óssea, ficou livre do vírus. O sucesso foi conseguido em 2007 e hoje o "paciente de Berlim" continua a gozar de boa saúde. Infelizmente, e apesar das tentativas para repetir o procedimento, é também o único caso verificado até hoje. Gore Hütter, o hematologista alemão responsável pelo sucesso que agitou a comunidade médica e científica, não desistiu e procura agora o caso número dois, número três, número quatro...

Gore Hütter só tem o caso de um doente para apresentar, mas é um caso espantoso. O maior defeito será mesmo ter sido algo irrepetível até agora. O hematologista alemão usava cabelo a tocar nos ombros quando se começou a interessar pelo mundo da terapia genética e dos seus possíveis pontos de contacto com o VIH. Depois disso, curou um doente com sida que sofria de uma leucemia aguda através de um transplante de medula óssea e foi notícia no mundo. Gore Hütter recorreu a um dador portador de uma mutação genética muito específica (presente em apenas um por cento dos europeus, com maior incidência nos países do Norte da Europa) que faz com que o vírus da sida não consiga entrar nas células. O transplante tratou a leucemia e expulsou o VIH do corpo de Timothy Brown. O norte-americano que ficou conhecido por "paciente de Berlim" ganhou também um amigo. Hütter e Brown tomam café, jantam juntos e lembram os velhos tempos. "É sempre fantástico para um médico salvar uma vida", refere o especialista que esteve no Porto a participar no YES Meeting, organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

O que sentiu quando percebeu que Timothy Brown tinha ficado livre do vírus da sida?

No início, não foi claro para mim que iria resultar tão bem. Quando se faz medicina, há sempre incerteza e temos sempre a sensação de que não sabemos tudo. Quando planeei este procedimento, tinha esperança que resultasse, mas fiquei deslumbrado por ter resultado tão bem.

Mudou a sua vida profissional e pessoal?

Seguramente. Tornei-me numa espécie de especialista nesta área, quando, até à altura, era um hematologista que não tratava especificamente doentes com VIH. Não mudou a minha profissão, continuo a ser um hematologista, mas o meu interesse na investigação mudou.

Na sua palestra falou neste caso como o caso número um. Ao longo destes últimos quatro anos tentou o caso número dois, três... e ainda não conseguiu. O que se passou?

É uma questão de tempo para conseguirmos repetir isto. Não é muito fácil encontrar um dador compatível para um doente que necessite de um transplante e muito mais improvável encontrar um dador compatível com esta mutação. Tivemos uma sorte inacreditável com este doente número um. Tivemos muitos dadores compatíveis para ele (80), se tivéssemos tido apenas dez nem sequer tínhamos avançado com a experiência. O número de dadores registados foi o primeiro sinal para arrancarmos com o projecto. Para repetir isto, julgo que será necessário ter outro paciente com um número semelhante de dadores.

Sente que foi um caso de sorte?

Foi uma espécie de sorte. Foi sorte e circunstâncias. Mas não foi por acaso que conseguimos isto. Tínhamos uma ideia muito concreta do que queríamos fazer. Mas não podemos repetir isto com toda a gente, essa é a principal mensagem.

Mas já tentaram isto com outros doentes. O que aconteceu?

Alguns morreram. É sabido que cerca de 30 por cento dos doentes morrem após um transplante destes. É sempre um risco. Mas mais importante do que podermos repetir é que serviu de prova de princípio de que resulta.

Referiu que o "paciente de Berlim" foi submetido a dois transplantes de medula (do mesmo dador). Isso teve alguma coisa a ver com o VIH?

Não. Tratou-se apenas de uma recaída da leucemia que pode acontecer nestes casos.

A mutação genética que bloqueia a proteína CCR5 e que, desta forma, fecha a porta para a entrada do vírus tem de ser herdada de pai e de mãe? Não será possível que isto resulte se for apenas de um deles?

Provavelmente, não. Cerca de 20 a 30% das pessoas têm a mutação, mas apenas herdada de um dos pais (heterozigotos). Eu tenho. Mas, apenas uma, não resulta. Há 50 ou 60 doentes com VIH que foram alvo de um transplante e nenhuma resultou. Matematicamente, 20 a 30% deles receberam um dador com apenas uma cópia da mutação e nenhum resultou. Mas sabemos que nestes casos a expressão da CCR5 não é bloqueada, ficando apenas um pouco menor do que o normal.

Mas não o suficiente para curar...

Não, mas, ainda assim, podemos optimizar este efeito com inibidores de CCR5 durante o processo de transplante. Mas é algo para descobrir. Ainda não foi testado antes.

Na discussão do seu caso, alguns especialistas defendem que o VIH tem uma capacidade incrível de se esconder e que ainda poderá estar no corpo de Timothy. Por seu lado, afirma que nos últimos anos fez mais de 100 testes e todos negativos. Acha possível que o vírus esteja lá?

Se tomarmos em conta o conhecimento que temos de outros doentes infectados, sabemos que, quando temos valores muito baixos do vírus, se lhes tirarmos a medicação, o vírus volta a manifestar-se em força passados poucos dias. Este doente está sem medicação há quatro anos e meio e não tivemos nenhuma replicação.

E procuraram nos habituais esconderijos?

Sim, procurámos no cérebro. Fizemos todo o tipo de exames. A certa altura, detectámos uns problemas com a capacidade de reconhecimento e fizemos uma TAC [tomografia axial computadorizada]. Detectámos algo e fizemos uma biopsia. Mas ele recuperou. Suspeitamos de que tenha sido algum tipo de infecção. Mas o VIH foi sempre negativo e as células que transportam o vírus no cérebro foram rapidamente substituídas após o transplante, ficando também com a CCR5 bloqueada.

O que vê no futuro dos tratamentos para a sida? A resposta estará na terapia genética?

Sim, apesar de não saber se isso vai automaticamente levar a uma cura. Isso será algo difícil de conseguir...

Então nem sequer se atreve a falar da possibilidade de uma vacina...

Isso é mesmo muito difícil. A vacina é algo que se está à procura desde que a doença foi identificada, há 30 anos. Até agor,a ainda não funcionou. E não há ninguém que possa dizer que vai resultar. A vacina seria desejável em termos profilácticos, no caso de África, por exemplo, onde as opções de tratamento são limitadas. Mas não deposito as minhas esperanças numa vacina. Temos doentes com VIH que tomam a medicação e que estão bem durante alguns anos e chega uma altura em que aparecem problemas. Sabemos que a medicação com anti-retrovirais tem efeitos secundários, cardiovasculares, diabetes...

E estão também ligados ao aparecimento de cancros que não estão associados com a sida?

Sim. E que estão a aparecer cada vez mais.

São cancros causados pela medicação anti-retroviral?

Pelas duas coisas. O VIH pode manipular células para este efeito, mas a medicação leva a isso. Se conseguirmos guardar esta medicação e dar-lhes outra coisa diferente sem efeitos secundários, será um grande sucesso.

E essa outra coisa será através da terapia genética?

Sim, algum tipo de terapia genética. Pode ajudar-nos a minimizar outras terapias e a dar uma melhor qualidade de vida a estes doentes. Actualmente, a abordagem mais promissora deste problema da sida é a terapia genética relacionada com o mecanismo de entrada do vírus. É a única coisa que, para já, sabemos que resulta.

É o homem que curou um caso de sida. Sente o peso da responsabilidade? Quer ser o homem que cura a sida?

Isso seria formidável. Quando se é um médico, é sempre fantástico salvar uma vida. Sendo hematologista, e depois de ver muita gente morrer nos últimos dez anos - muitas vezes mais novos do que eu -, qualquer vida que se consiga salvar é uma vitória. Quando é algo que nunca ninguém fez antes, é melhor ainda! Mas sim, sinto a responsabilidade. Demorei algum tempo a reconhecer que poderia resultar. Mas, por outro lado, se olharmos para o exemplo da leucemia, há doentes que ficam livres da doença durante vários anos e de repente ela volta... por isso... ter a certeza absoluta...

Tem medo que o VIH volte a aparecer no corpo do Timothy Brown?

Espero que não, acredito que não. Mas, como médico, não posso excluir essa possibilidade. Fizemos isto com o que sabíamos da doença, mas ainda há muitos "porquês" para os quais não temos resposta.

O que está a fazer agora?

Estou a tentar montar uma rede de colaboração que dê resposta a estes doentes com VIH com leucemia ou outras doenças [por exemplo, anemia aplástica], em que é necessário intervir com transplante de medula óssea. A ideia é criar uma base de dados com os dadores de medula que têm as duas cópias da mutação no gene, para termos uma forma mais fácil e rápida de encontrar um dador compatível e com a mutação.

Basicamente, continua à procura do caso número dois?

Sim. Estou a oferecer esta oportunidade porque acredito que há muitas lições a tirar ainda disto e, na ciência médica, um caso não significa tudo. É desejável que se consiga juntar mais informação. Não quero excluir a possibilidade de encontrarmos um segundo paciente, repetirmos o procedimento e as coisas não resultarem. As situações são sempre diferentes. Podem existir coisas que desconhecemos que sejam importantes para conseguir o sucesso...

Como é a sua relação com o caso número um? Ficaram amigos?

No princípio desta história eu nem sequer era o médico dele. Com todo o processo, aproximámo-nos. Encontramo-nos para um café ou jantar e falamos sobre os velhos tempos. Temos uma boa relação. Ele agora está em São Francisco e é seguido por médicos lá e com quem estou em contacto. Nos últimos tempos, falamos mais por e-mail.

Após a divulgação do seu sucesso, não recebeu centenas de pedidos de ajuda?

Muitos mesmo. E de algumas pessoas que não tinham leucemia. Ainda hoje, todos os dias recebo pelo menos um e-mail. Muitos deles dizem-me que apanham o próximo avião para a Alemanha. É muito difícil dizer-lhes que têm de esperar, que estamos a fazer experiências, que têm de ser pacientes. Alguns escreveram cartas. Mas a resposta é sempre a mesma: este tratamento não é para toda a gente.

Sugerir correcção