Dulce Maria Cardoso: arrumar o império num quarto de hotel

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Em "O Retorno", Dulce Maria Cardoso traz pela primeira vez para a literatura portuguesa a reflexão séria sobre o tema da tragédia das dezenas de milhar de retornados que foram alojados em hotéis e pensões de Lisboa e arredores aquando da "ponte aérea" de Luanda,em 1975 - tragédia que a autora e a família também viveram RUI GAUDÊNCIO

Dulce Maria Cardoso, provavelmente a mais importante escritora da sua geração, publica "O Retorno", o primeiro caso sério de reflexão literária sobre os 500 mil retornados que aterraram em Portugal em 1975. Embora a escritora, vinda de Angola, fosse um deles, isto não é "um ajuste de contas" com o passado. Mas talvez seja um ajuste de contas com a obra dela.

Dulce Maria Cardoso (n. 1964) é, provavelmente, a mais importante escritora da sua geração. Autora de três romances (o quarto, "O Retorno", vai hoje para as livrarias) e de uma antologia de contos ("Até Nós", ASA, 2008), as suas obras estão publicadas em mais de uma dezena de países e em línguas como o grego, o búlgaro, o servo-croata, o neerlandês, entre outras mais comuns. Com elogiosas referências na imprensa internacional, em publicações como a francesa "Lire", por exemplo, tem recebido igualmente a atenção de autores estrangeiros (incluindo académicos), tendo sido eleita "Key Note Speaker" no Congresso Europeu de Escritores, realizado em Bruxelas em 2010. Estranhamente (ou talvez não), a receptividade da crítica e do público em Portugal tem sido pouco mais do que modesta, apesar de o seu último livro, "O Chão dos Pardais" (ASA, 2009), ter recebido o Prémio Pen Club e ter sido finalista do Prémio APE para o melhor romance. Anteriormente, "Os Meus Sentimentos" (ASA, 2005) fora já distinguido com o Prémio da União Europeia para a Literatura, entre concorrentes de todos os países membros.

Em "O Retorno", Dulce Maria Cardoso traz pela primeira vez para a literatura portuguesa a reflexão séria sobre o tema da tragédia das dezenas de milhar de retornados que foram alojados em hotéis e pensões de Lisboa e arredores aquando da "ponte aérea" de Luanda, em 1975 - tragédia que a autora e a família também viveram. Mas este romance não é, longe disso, um "ajuste de contas" com um passado doloroso, não há bons nem maus no livro, é antes uma narração terna (por vezes desapiedada, outras vezes bem humorada) feita pela voz de um rapaz de 15/16 anos que foi obrigado, com a mãe e a irmã, a viver de maneira bizarra num hotel de cinco estrelas no Estoril, no meio de famílias de retornados completamente na miséria, e que espera o regresso de Angola de um pai que tarda em chegar.

Mais uma vez, como é comum na escrita de Dulce Maria Cardoso, o estilo é aquele que se adequa à voz da personagem, e diferente do dos livros anteriores, como que a sublinhar uma "descontinuidade". Não correndo o risco de manter um "estilo próprio" (que se poderia transformar numa fórmula que se esvazia), a marca de Dulce Maria Cardoso é a observação em detalhe da personagem posta numa determinada situação. E isso é evidente em "O Retorno", onde até o vocabulário do jovem Rui foi escolhido para caber na sua pouca idade.

O romance foi escrito na sua quase totalidade na Alemanha, em Bamberg, graças a uma bolsa de criação artística oferecida pelo governo do estado da Baviera e pela organização Internationales Künstlerhaus Villa Concordia. O período de bolsas que mediou entre Abril de 2010 e Março de 2011 foi dedicado a artistas portugueses. Para isso, júris das várias artes escolheram os convidados: Filipa César e João Leonardo (Artes Plásticas), Luís Antunes Pena (Música Erudita), Dulce Maria Cardoso e o autor destas linhas (Literatura). Instalados em várias dependências de um palácio do século XVIII, a Villa Concordia, cada um procurou usar as singulares condições oferecidas e a oportunidade. Foi na função de testemunha ocasional do processo criativo que conduziu a "O Retorno" que entrevistei a autora. Falámos sobre Angola, sobre a memória da infância, sobre os retornados, sobre Deus, sobre o livro... Assim:

O facto de teres mudado de ambiente, de país, de amigos e de clima durante quase um ano alterou-te o processo de escrita do romance?

Alguma coisa há-de ter mudado. Mas não posso saber exactamente o quê. De qualquer maneira não acho que a mudança seja significativa. A escrita é em mim um processo tão de dentro para fora que a paisagem e o clima acabam por não ter grande relevância. Talvez a maior diferença tenha sido a língua. O facto de não ouvir falar português muda a minha relação com as palavras e consequentemente com a escrita. Já me tinha acontecido o mesmo quando estive meio ano nos EUA. Quando passo muito tempo sem ouvir a nossa língua dou por mim a ler em voz alta e a soletrar as palavras porque tenho saudades de as ouvir. Acho que fora do país o meu amor pelas palavras portuguesas é maior. Talvez por isso tenha estado tão atenta ao espanto que a personagem principal de "O Retorno" sentiu quando em 1975 chegou a Portugal, à metrópole, e ouviu palavras que desconhecia. Até mesmo a palavra que acabou por o rotular... a ele e a mim, e a mais de meio milhão de pessoas, uma palavra que ainda demorou a ser inventada, a palavra "retornado". Em casa escrevo virada para uma parede e na residência alemã escrevia voltada para o rio e para os cisnes, para aquela paisagem deslumbrante. A beleza pode ter um efeito paralisante; quando testemunhamos tanta beleza, assim ali tão disponível, arriscamo-nos a sentir como inútil a tentativa de criar seja o que for. Mas felizmente não me deu para pensar nisso e trabalhei muito.

Apesar de tudo tiveste condicionantes que te obrigaram a ter um ritmo diferente, estou-me a lembrar das muitas horas de sol no Verão, que te baralharam o sono...

É verdade, quando fui para a residência tinha tanto medo do frio que poderia vir a ter no Inverno... Mas, estranhamente, o Verão foi o que me custou mais, acima de tudo por causa da estrutura da casa, em vidro, sem cortinas nem persianas. Amanhecia muito cedo e não havia venda nos olhos que conseguisse impedir que aquela luz toda me acordasse cedíssimo. Eu gosto de escrever durante a noite, por isso houve dias em que não consegui dormir... parecia um zombie. Mas essas condicionantes acabaram por não ser assim tão importantes. O mais relevante foi ter estado sozinha. Mas foi isso mesmo que procurei quando aceitei fazer a residência. Como estava a escrever "O Retorno", queria, de alguma maneira, voltar a experimentar esse sentimento de não pertença. Claro que sabia que podia voltar a casa quando quisesse. Ter a garantia do regresso fazia com que o sentimento de não pertença fosse acima de tudo lúdico... muito diferente do que senti quando cheguei a Portugal, em 1975, vinda de Angola. Nessa altura não tinha maneira de voltar para casa... E isso muda tudo. Mas acho que o desconforto de estar longe de casa, que senti na Alemanha, me ajudou a convocar todo esse passado, e sobretudo a reflectir de forma mais incisiva sobre o tema da perda.

Um desconforto bastante confortável...

É verdade [risos], mas até isso acabou por me ser útil para a escrita do romance. É que quando cheguei a Portugal em 1975, eu e a minha família, tal como a família do Rui [o protagonista de "O Retorno"], ficámos instalados, durante mais de um ano, num hotel de cinco estrelas, no Estoril. Tal como na residência alemã [Villa Concordia], em que eu estava também longe de casa e num ambiente luxuoso. Há sempre qualquer coisa de falso num ambiente desses - talvez porque a miséria ronda sempre, não sei, e é preciso estar-se bastante desatento para aceitar aquilo como qualquer coisa a que possamos ter direito.

Mas ao contrário da Villa Concordia, havia muita ironia nesse ambiente luxuoso de 1975... Eram pessoas que, literalmente, tinham perdido tudo, e chegavam a um hotel de cinco estrelas, apenas com a roupa que vestiam, para uma longa estada...

Era uma espécie de farsa. Fomos despejados, postos a monte, num ambiente a que não pertencíamos. A ironia era que iríamos assistir, e ser parte, da degradação de todo aquele luxo, da mesma maneira que tínhamos acabado de assistir ao fim de um império. Na residência, em Bamberg, também estivemos de alguma maneira emprestados àquele luxo, mas evidentemente que não se comparam as condições em que o tivemos nem a legitimidade com que éramos olhados [risos] - chegámos a ter fotografias enormes na principal livraria da cidade, como estrelas "pop" - se isso tivesse acontecido em 1975, estou convencida de que por baixo teriam escrito "procura-se" [risos].

As circunstâncias em que se passa pelos sítios são determinantes?

Claro, são determinantes na forma como somos marcados por eles, ou na forma como os marcamos, em alguns casos. Se somos marcados por eles, nunca sabemos a importância que isso poderá ter.

Escrever sobre África, sobretudo sobre o chamado "regresso" dos retornados a Lisboa, e estando tu tão longe desses lugares e dessas pessoas, foi uma vantagem? Ou foi sobretudo uma desvantagem?

Não vejo nem como uma vantagem nem como uma desvantagem. O tal sentimento de não pertença, ainda que completamente controlado, ajudou-me a lembrar-me do que senti quando cheguei a Lisboa, isto é, ajudou-me a relembrar a sensação do que é sentir a falta de tudo outra vez. Isso pode ter sido uma vantagem, no sentido de estar mais de acordo com o que estava a escrever, de me dar uma certa ambiência interior. Por outro lado, tinha de gastar muita energia a esquecer-me das saudades da minha família e dos meus amigos...

E não podias voltar ao que resta do hotel no Estoril... ou de outros lugares onde o romance decorre...

O romance foi feito com o que tinha na minha cabeça, e a maior parte das coisas estão guardadas desde o período em que aconteceram, em 1975 e 76. A grande "recolha" - chamemos-lhe assim - foi feita nessa altura. Lembro-me de então pensar, muitas vezes, "tenho de decorar isto, disto não me posso esquecer". Nesse sentido não necessitava de conferir nada, só precisava de me lembrar e de me manter disponível para o que aparecesse de novo.

O facto de te obrigares àqueles longos passeios na floresta alemã servia-te como um exercício de equilíbrio mental?

Andava todos os dias mais de uma hora por lá. A princípio, achei que no Inverno não iria conseguir andar por causa do frio e da neve, mas ainda gostei mais. Acho que o Inverno alemão fez com que deixasse de ter medo do frio. Curioso, tinha medo do frio desde que cheguei a Portugal em 1975. Mas acho que agora esse medo acabou. Os passeios ajudaram-me. Como me ajudava também ao meu equilíbrio ler os livros que me emprestavas. Nunca tive tão boa selecção de livros [risos]. Na verdade, a grande vantagem de ter feito a residência foi ter tido oportunidade de me tornar amiga de pessoas que seria improvável conhecer. Falo dos nossos colegas alemães, mas também dos portugueses, de ti, da Filipa César e do Luís Antunes Pena [vivem ambos na Alemanha], e do João Leonardo [que há anos vive em Malmö, Suécia]. Não sendo a entreajuda tão necessária, é difícil sairmos das nossas rotinas. E uma nova amizade requer acima de tudo disponibilidade.

E por coincidência (ou não) Filipa César andava a trabalhar materiais do colonialismo e da memória de África. E agora está a fazer um pequeno filme de promoção do teu romance... Coisa que qualquer autor desejaria...

A Filipa e eu somos acima de tudo amigas. E é muito bom trabalhar com os amigos.

Este é um romance que tinhas para escrever há muito tempo. Porquê só agora?

Tem a ver, exactamente, com a questão anterior. Era-me muito doloroso visitar o passado. Eu vivi parte dos acontecimentos que a personagem principal narra, portanto tive de revisitar esse passado, e também o outro que ia descobrindo. E isso magoava-me. Mas não era isso que me impedia de escrever. O que me impedia era não ter encontrado uma proposta de reflexão. Foi um tempo de muito sofrimento para muita gente, e eu não queria usar o sofrimento sem que a ele estivesse associada uma proposta de reflexão. O sofrimento dos outros é uma máquina poderosíssima de criar emoções, mas expô-lo, assim sem mais, é um aproveitamento indigno que considero que não deve ser feito. Por isso, em relação a "O Retorno", ainda que eu também tenha sido uma das vítimas, precisava de encontrar uma proposta de reflexão que legitimasse a utilização e a visitação desses sofrimentos. Nem sequer queria ajustar contas com eventuais "agressores", nem tão-pouco com o passado...

Precisavas de uma grande distância temporal...

Sim, para isso tinha de esperar. Percebi que o romance devia ser sobre a perda e a possibilidade do recomeço, sobre o fim do império e o princípio de uma outra identidade. Por isso a personagem principal deveria ser um adolescente. Nesses anos, Portugal vivia também uma espécie de adolescência, naquele sentido em que a adolescência é um tempo de possível redefinição da personalidade, um tempo em que o corpo está a mudar e em que tudo o resto pode mudar, e por isso um tempo em que a esperança é possível, ainda que seja um tempo doloroso. Uma revolução pode transformar um país velho e cansado num adolescente cheio de força e futuro. Uma revolução, ou uma crise como a que vivemos. Assim haja sabedoria e vontade.

Sei que escreveste várias versões de "O Retorno". O que é que esta versão tem que as outras não tinham?

Faz parte do meu método de trabalho que não recomendo a ninguém (risos). Aliás acho que nunca chegaria a tão obtuso método se não tivesse perdido um romance inteiro por causa de um vírus no computador... Mas neste romance não foi fácil ser um rapaz de 16 anos... Deu muito trabalho, de tentar e tentar lá chegar... O género tem mais implicações do que eu suspeitava e a adolescência é uma montanha russa de emoções. Ainda mais para um adolescente desenraizado, que vive durante um período revolucionário num hotel de cinco estrelas a abarrotar de gente desesperada. Também queria que o Rui fosse crescendo ao longo do romance. O crescimento nunca é linear e isso teria de notar-se no romance, queria que as hesitações do processo de crescimento fossem perceptíveis. Depois havia a tal vontade de reflectir sobre a perda, o luto, a decisão de continuar, a necessidade de exorcizar o passado no sentido de recomeçar. Ah, e havia o problema de ter de usar um vocabulário um pouco básico para que o discurso não soasse falso, visto que a voz do romance é a voz do Rui.

Um romance sobre a perda, sobre várias perdas: a infância, uma certa ingenuidade, Angola. Foi uma escrita dolorosa?

Nem sempre. Também me diverti muito. Crescer é doloroso mas também é divertido mesmo que as circunstâncias sejam trágicas. Sei disso porque cresci assim. Há sempre qualquer coisa de ridículo quando se vivem tempos agitados, como é o caso de períodos revolucionários, e isso também tinha de estar no romance, por isso acaba por haver muito humor no meio de tanta desgraça e desespero. Mas talvez o que tenha sido mais doloroso foi ter-me apercebido de que já resta pouco do ideal revolucionário. E que muitos dos problemas abordados no romance continuam por resolver, isso sim. Também é doloroso saber que Portugal é outra vez um país intervencionado.

Falaste aliás numa estranha coincidência...

Sim. Acabou por acontecer uma coincidência perversa com a escrita deste romance. Quando o comecei a escrever, quando fomos para a Alemanha, Portugal era um país diferente do de hoje. Foi estranha a sensação quando regressámos... quando "retornámos"... a crise estava instalada e vivia-se, vive-se, outra vez, o fim de um ciclo. Desta vez não é o fim do império, mas da quimera europeia. E como acontece no romance, também agora é preciso inventar de novo a esperança. Tal como em 1975 vivem-se tempos de indefinição. Isso é doloroso mas pode também ser gerador de esperança se a disponibilidade para a mudança, que agora existe, for aproveitada para se criar um futuro melhor e mais justo.

"O Retorno" foi para ti um acto de apaziguamento com a memória do passado?

Não encaro a escrita como uma forma de terapia. Também o pode ser, mas no meu caso não o é de maneira significativa. Acho que fiz as pazes com o passado, que agora me sinto em casa, mas isso deve-se mais ao facto de ter vivido muito tempo fora do país do que à escrita do romance. O mais significativo na vontade de escrever "O Retorno" era falar daquele período em que dezenas de milhar de pessoas viveram em hotéis. Foi uma solução tão bizarra. A ponte aérea foi a maior do mundo até hoje, mas o alojamento em hotéis não deve ter paralelo. Os hotéis estavam a falir, pois os turistas tendem a não gostar de países à beira de uma guerra civil. Por muito que tenham estragado os hotéis (e admiro-me como, nas condições em que vivíamos, não os estragaram mais) os retornados também serviram para salvar os hotéis. Mas sempre ouvi as pessoas dizerem, "ah, andaram lá a explorar os pretos - dantes toda a gente dizia pretos e não era necessariamente pejorativo - e depois ainda os puseram em hotéis". Não acredito que haja um único retornado que tenha gostado de ter vivido num hotel. Quando não se tem uma casa não se tem nada. Nem dignidade. Eu quis devolver um pouco de dignidade a quem foi obrigado a estar nessa situação. Houve vítimas, independentemente da cor da pele. De um lado e do outro. Cá e lá. Mais grave, continua a haver vítimas. Cá e lá.

No romance não se pode dizer que haja bons e maus, foi propositado?

Na vida também não há. Todos nós vamos sendo bons e maus à vez. E a maior parte das vezes nem sequer nos apercebemos. Porque nem sempre é fácil saber o que nos motiva ou as verdadeiras razões por que fazemos determinadas coisas ou tomamos determinadas opções. E se isso é válido em relação a nós próprios, que temos a presunção de nos conhecermos, então em relação aos outros nem se fala. Por isso, deparamo-nos muitas vezes com a surpresa de reconhecer um agressor em alguém que tomámos por vítima, e vice-versa. Apercebi-me disso de uma forma mais intensa em relação às personagens deste romance. Nem mesmo a paixão da Silvana pelo Rui fica a salvo das dúvidas. Claro que só conseguimos relacionar-nos com os outros se encontrarmos uma utilidade nesse relacionamento. Mas muitas vezes é preciso mascarar essa utilidade, e isso faz com que a vítima e o agressor, o bom e o mau, não sejam mais do que máscaras. Resta sempre saber qual a legitimidade para utilizarmos os outros quando eles não sabem, ao certo, para que é que estão a ser utilizados.

Será por isso que Deus está sempre presente nos teus romances?

Inevitavelmente. Porque todos perseguimos Deus, ou uma ideia qualquer de bem. Deus é a maior invenção da Humanidade. Espero que se tenha tornado real à força de ter sido tão inventado. As razões por que é inventado e reinventado são muitas, mas penso que o desespero será a mais frequente. É, pelo menos, a razão do Rui, a personagem principal do romance. Desespero no sentido de o sofrimento de se esperar por aquilo que pode nunca vir a acontecer se tornar insuportável. Então é preciso inventar alguém com quem negociar. Ninguém melhor do que Deus para isso. Acho que a Humanidade inventa Deus para tornar a espera menos insuportável. Para a maior parte das pessoas essa espera que se quer tornar menos dolorosa é a espera da morte ou a da felicidade.

No caso da personagem Rui é a espera do pai e da idade adulta...

Sim. Mas para o Rui acaba por ser menos doloroso aceitar que Deus existe, e que o pai morreu, do que continuar a viver uma espera desesperada. Passa-se o mesmo com a maioria das pessoas, e por isso, e para isso, Deus existe. Neste sentido, este é também um romance sobre a espera. Não só a de Rui pelo pai, mas também a espera por aquilo que Portugal viria a ser.

Como explicas que depois de tantos prémios [Prémio da União Europeia para a Literatura, Prémio do Pen Club, entre outros] e traduções haja ainda muita gente, mesmo daquela que lê muito, que nunca tenha ouvido o teu nome?

Já me fizeram algumas vezes essa pergunta mas não é a mim que a pergunta deve ser feita, mas sim às pessoas que não quiseram ler os meus livros, ou que não quiseram falar deles. Acho que a relação que se estabelece entre quem escreve e quem lê também é uma relação de sedução, e como as mulheres lêem mais do que os homens talvez prefiram ler autores masculinos. Quanto aos críticos, penso que haverá algum preconceito quando lêem uma mulher. O género ainda tem muita relevância, quando não devia ter. Ainda temos a visão preconceituosa dos papéis da mulher e do homem na sociedade. Mas a sociedade também impõe aos homens coisas terríveis. Ou impunha. Um homem não chora, um homem tem de providenciar o sustento para a família. Em Angola, tive um vizinho cujo pai tinha sido assassinado. Além dessa tragédia, ainda foi obrigado a tornar-se o "chefe de família". Foi um adolescente tão tristonho também por ter de desempenhar aquele papel. Apesar de tudo evoluiu-se muito e estamos hoje bastante melhores. Mas continuamos a discriminar em função do género, da cor da pele, das opções sexuais, etc., etc.

Qual é hoje a tua relação com Angola?

Penso muitas vezes em Angola, ou melhor, na memória que tenho de Angola. Identifico felicidade com Angola, mas eu vim na véspera de fazer 11 anos, portanto acho que o que faço é identificar infância com felicidade, como acontece quase sempre. E depois há a outra parte, que são as noticias que me chegam de Angola e que me dão conta de um povo quase escravizado por um poder altamente corrupto. Um poder que o Estado português cauciona há anos e anos, e com o qual tem cada vez mais intrincadas relações económicas. Tenho vergonha por isso enquanto cidadã portuguesa.

Gostarias de lá voltar?

Acho que não conseguiria voltar lá. Na verdade, nunca se volta verdadeiramente a sítio nenhum. Seja como for, há as razões de que já te falei. Mas ainda que Angola fosse um estado democrático, com um poder legitimo, acho que também não seria capaz de voltar. Não gostaria de ver os restos físicos do meu passado sem ter ao meu lado uma das pessoas que mais amava nesse passado, o meu pai, que já não pode voltar comigo. Mas por outro lado, África é muito sedutora. Acho que África é o lugar onde todos fomos um dia crianças. Mesmo quem só lá chegou na idade adulta ou mesmo os que nunca lá estiveram. Em África o tempo dilata-se como o tempo da infância. Ou eu imagino que seja assim. Deve ser por causa das paisagens largas, das cores saturadas, da natureza tão excessiva. Não sei.

Ver crítica de livros pág. 42 e segs.

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