Doris Taylor "A ideia nasceu numa conversa de corredor"

Doris Taylor espantou o mundo ao anunciar que tinha conseguido fazer no laboratório, pela primeira vez, corações de rato com a forma certa e capazes de bombear sangue. O P2 quis saber quem é esta cientista, que acredita em "ideias malucas" e que de repente ficou famosa

a No espaço de uns dias, as fotografias de um pequeno coração pendurado no ar, que parece desaparecer, morre e ressuscita tornaram-se um ícone. Vieram da Universidade do Minnesota, nos EUA, onde uma equipa de investigadores anunciou há uma semana ter conseguido fazer algo de extraordinário: começaram por pegar num coração de rato, lavá-lo com detergentes para o despir de todas as suas células, deixando apenas o seu "esqueleto", a sua translúcida estrutura extracelular, e "semearam" em seguida nessa estrutura milhões de células cardíacas imaturas. Passado pouco tempo, obtiveram um coração novinho em folha dentro de uma incubadora, que começou a bater. O resultado pode abrir o caminho ao fabrico de órgãos bioartificiais, feitos à medida de cada doente e que não provocam reacções de rejeição - nomeadamente, utilizando o "esqueleto" de corações de porco, os mais próximos do coração humano.Enviámos a Doris Taylor, a líder da equipa, perguntas por email - sobre a sua vida, as suas paixões, sobre como tinha nascido a ideia de gerar um novo coração daquela maneira. Ela respondeu-nos longamente, falando de si própria com uma candura desarmante - e contou também as últimas novidades do trabalho que prossegue no seu laboratório.
Por que decidiu dedicar-se à investigação biomédica?
Tem a ver com a minha história pessoal. Nasci em São Francisco, na então base militar de Presidio, porque o meu pai era militar. Digamos apenas que foi há mais de 40 anos (a minha idade faz-me um bocado de impressão neste momento...). Tenho um irmão gémeo. Fomos prematuros e ninguém esperava que sobrevivêssemos. Mas sobrevivemos. Só que passámos muitas semanas numa incubadora e o meu irmão esteve numa situação mais difícil do que eu. Na sequência do oxigénio da incubadora, ficou com ligeiras sequelas de paralisia cerebral - e ambos temos, até hoje, problemas com a matemática. Essa experiência inicial e o facto de ter acompanhado todas as dificuldades que Dan atravessou ao longo da vida - faziam troça dele por causa da sua deficiência e por ser diferente (embora ele seja mais esperto do que eu) -, fez com que eu desejasse fazer alguma coisa pelas pessoas que sofrem de doenças.
A seguir, fomos para a Alemanha, para Heidelberg, onde vivi até aos seis anos. A minha irmã mais nova nasceu lá e é cinco anos mais nova do que nós. O nosso amor por ela foi imediato e, até ao dia de hoje, Juliana é a minha melhor amiga. Mas isso não significa que não lhe tenha feito por vezes a vida negra quando era pequena e se lhe perguntassem, teria com certeza qualquer coisa a dizer das duas vezes em que a pus realmente em perigo...
Quando eu tinha seis anos, o meu pai morreu, o que mudou totalmente o nosso mundo. A dor que senti por causa dessa perda foi outra das razões que me fizeram desejar fazer qualquer coisa pelas pessoas doentes. Queria poupar essa dor aos outros, se fosse possível.
De que maneira é que isso mudou a sua vida?
Mudou muito. Como a família da minha mãe vinha do Mississipi, mudámo-nos para lá e vivi lá até aos 21 anos. Não fazemos ideia de quão difícil é a vida de uma mãe obrigada a criar três filhos sozinha. Mas a nossa mãe sempre nos disse que podíamos fazer o que quiséssemos na vida e sempre nos encorajou a concretizar os nossos sonhos. Incitou-nos a viajar, a estudar e simplesmente a ir ver o mundo e tudo o que ele tinha para dar - para percebermos por nós próprios que havia vida para além do Mississipi. Mais tarde, soubemos que ela tinha conhecido o meu pai no Japão, porque tinha lá arranjado um emprego!
Para dar um exemplo do tipo de pessoa que era a minha mãe, quando éramos miúdos pegava no carro no Verão, ano sim, ano não, e fazia mais de 600 quilómetros de estrada para nos levar a casa dos irmãos e irmãs do meu pai, para não esquecermos esse lado da família. Imagine conduzir esses quilómetros todos, com três crianças pequenas no carro, com aquele calor e com pouco dinheiro, só porque ela pensava que era importante que os seus filhos conhecessem a família do pai.
Ainda tem uma relação estreita com a sua família?
Ao longo da minha vida adulta, tenho continuado a ser muito chegada à minha família. Tenho um sobrinho, Taylor, que amo como um filho. E durante quase toda a vida, desejei que a minha mãe e os meus tios e as minhas tias (de ambos os lados) ficassem orgulhosos de mim. Quando surgiu todo este fenómeno mediático, foi um grande momento para mim por causa deles. Infelizmente, a minha mãe morreu em 2006, mas as vicissitudes do artigo que agora publicámos fizeram com que os resultados fossem tornados públicos (ou seja, que o embargo sobre o artigo fosse levantado) no dia de anos da minha mãe. Foi tudo perfeito.
E para além da família e da ciência?
Adoro política e conseguir mudar alguma coisa no mundo. Adoro ler nos meus tempos livres e ouvir boa música. Odeio preconceitos e falta de justiça e compreensão.
Ser mulher fez alguma diferença na sua vida profissional?
Acho que o facto de ser mulher fez uma enorme diferença. Penso mais nas pessoas do que nas coisas. Penso que somos uma comunidade, que estamos todos no mesmo barco. Podemos vencer juntos ou afundar-nos cada um pelo nosso lado. Por vezes, isso prejudicou-me na minha vida científica, porque mais do que uma vez as minhas ideias malucas foram utilizadas por outros contra mim. Contudo, continuo a achar que fazer ciência consiste em partilhar ideias para tornar o mundo melhor. E prefiro acreditar nisso do que tornar-me cínica.
Mas aprendi que nem toda a gente sente isso - talvez a maioria das pessoas não pense assim. Trabalho numa área dominada pelos homens e principalmente com colegas homens. Mas tive como mentoras algumas mulheres fantásticas e algumas figuras de referência femininas maravilhosas.
De facto, acho que se fosse um homem, algumas portas que ficaram fechadas ter-se-iam aberto. Mas estou orgulhosa por ser quem sou e por ter feito o que fiz. É verdade que por vezes penso que o facto de ser mulher faz com que, se fizermos ouvir a nossa voz, há quem não reaja da mesma maneira que se fôssemos um homem na mesma posição. Mas no fundo, o que quero é marcar uma diferença e espero tê-lo conseguido.
O New York Times descreveu-a como uma "recém-chegada" à área da regeneração de tecidos. O que é que fazia antes e quando é que mudou de especialidade?
Não mudei de especialidade. Passei os 20 últimos anos da minha vida a trabalhar nas terapias celulares na área das doenças cardiovasculares. Fomos mesmo o primeiro grupo, em 1998, a transplantar células no coração de um animal e a mostrar que era possível restaurar a função cardíaca após uma lesão. Começámos por utilizar mioblastos [precursores das células dos músculos], depois passámos para as células estaminais [capazes de dar origem a vários tipos de tecidos] e temo-nos dedicado a usar células e genes para reparar os danos provocados por uma crise cardíaca. Só que é provável que a terapia celular funcione nalgumas pessoas, mas não em todas. Portanto, para tentar encontrar uma solução para os doentes cardíacos terminais, escolhemos tentar reconstruir um novo órgão desta nova maneira.
De onde veio a ideia de recriar um coração a partir da sua matriz extracelular?
O meu mantra científico dos últimos 20 anos tem sido "dar as ferramentas à Natureza e deixá-la seguir o seu curso". O coração é um órgão belíssimo e complexo com quatro câmaras, válvulas e uma estrutura vascular omnipresente - e todos esses componentes são essenciais ao seu correcto funcionamento. Para mim, era claro que não conseguiríamos construir uma coisa destas de raiz. Falei disso com um jovem investigador do meu laboratório, e ambos concluímos que seria fantástico se fosse possível pegar num coração, retirar-lhe as células e colocar lá dentro células novas. E voilà, a ideia nasceu numa conversa de corredor, há uns três a quatro anos.
Quanto tempo demorou a amadurecer a ideia?
Com esse colega, falámos muito, começámos a planear o que iríamos fazer e ele voltou para o laboratório e meteu mãos à obra. Vimos o primeiro coração começar a bater cerca de um ano mais tarde.
Estavam à espera de obter resultados tão excitantes com os corações de rato?
Tudo fazia perfeitamente sentido: pegar num coração, tirar as células, repor outras novas e deixá-las bater. Portanto, tínhamos muitas esperanças. Mas na realidade, tínhamos também muitas hipóteses de nos enganar a cada etapa... Cada passo foi difícil. No entanto, tudo bateu certo e as coisas funcionaram maravilhosamente bem!
Como reagiram quando viram os corações começarem a bater e a bombear sangue?
Ficámos extasiados. Foi fabuloso.
Como perceberam que tinha funcionado?
Vimo-los mesmo a bater.
Abriram logo uma garrafa de champanhe para celebrar?
Não, nada de champanhe naquela altura, continuámos simplesmente com o nosso trabalho. Como disse, isto aconteceu mais ou menos um ano depois de termos começado, mas demorámos mais dois anos a convencer os revisores científicos [da Nature Medicine, onde os resultados foram publicados há uma semana] de que os nossos resultados eram razoáveis, novos e importantes. Como não éramos especialistas da engenharia de tecidos, ainda tivemos de aprender algumas coisas, mas acho que conseguimos e que estamos a avançar.
Quais são as próximas etapas? O que estão a fazer neste momento?
Além de tentar responder a todas as perguntas que me fazem e atender telefonemas, estamos a tentar fabricar corações aptos para transplantes - primeiro no animal e depois no ser humano.
Já fizeram as mesmas experiências com corações de outros animais, como os de porco, que são mais parecidos com o coração humano?
Sim, estamos a trabalhar também com corações de porco. É fácil "descelularizar" corações de porco. Já estamos a fazê-lo.
Com a sua equipa, mostrou que os corações bio-artificiais de rato funcionam in vitro. Mas o que acontece in vivo?
Esse trabalho também já está em curso. Já transplantámos vários corações para o abdómen de ratos e os dados preliminares são encorajadores.
Tencionam também fazer outros órgãos no seu laboratório? Quais são os próximos e quando é que isso vai acontecer? Alguns órgãos são mais fáceis - ou têm uma prioridade mais alta?
Já "descelularizámos" praticamente todos os órgãos no laboratório. E estamos de facto a avançar com a geração de outros órgãos - em parte através de colaborações com outros laboratórios. Não há prioridades: para um doente, o seu órgão tem prioridade máxima. Como nós trabalhávamos nas doenças cardiovasculares, começámos pelo coração, mas juntamente com outros colegas do mundo inteiro também queremos contribuir para mudar a vida de muitos outros doentes crónicos.
A ideia por detrás do seu trabalho parece tão simples... mas com certeza que "regenerar" corações dentro de um bioreactor foi uma árdua tarefa.
Pois foi. As pessoas no meu laboratório podem falar das noites que dormiram lá, das vezes que só conseguiam pensar no trabalho e em mais nada - e das vezes em que todos retínhamos a respiração à espera que funcionasse. Foi um fantástico trabalho de equipa e uma fantástica aventura.
Quais são os grandes obstáculos que ainda vão ter de ultrapassar?
Temos de reconstruir este órgão que é o coração complexo na sua totalidade. As coisas estão apenas a dar os primeiros passos e ainda nem sequer sabemos quais serão os obstáculos que vão surgir. Acho que conseguir que as células certas fiquem nos sítios certos vai demorar algum tempo. Mas, mais uma vez, tencionamos deixar a natureza fazer uma parte do trabalho por nós.
Que tipos de células dos doentes acha que poderão vir a ser utilizadas para gerar órgãos feitos à sua medida?
As células do sangue do cordão umbilical têm algumas potencialidades. As células estaminais adultas [da pele, por exemplo] também representam uma opção importante.
Como é que as pessoas à sua volta reagiram ao anúncio dos resultados? E os seus colegas de especialidade?
Na sua maioria, os meus colegas ficaram excitados com as potencialidades destes resultados.
O facto de haver tanta gente em todo o mundo interessada em colaborar connosco leva-me a pensar que eles gostaram dos resultados quase tanto como nós. Claro que há sempre os que não acreditam - e os que dizem, e bem, que ainda temos muito caminho pela frente. Temos de facto. Mas eu e a minha equipa esperamos ter inaugurado algo que irá fazer avançar a criação de órgãos bio-artificiais.

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