Como se olha a arte (e a vida) quando se tem 101 anos

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O filósofo fotografado em Lisboa quando veio dar uma palestra organizada pelo IADE Rui Soares

O filósofo italiano Gillo Dorfles, autor de Oscilações do Gosto, obra de referência para várias gerações de estudantes de arte, já viveu um século. Não tem paciência para perguntas que acha "absurdas", mas mantém intacta uma imensa curiosidade. E o sentido de humor

Gillo Dorfles, italiano, designer, artista, escritor, crítico de arte, filósofo, tem 101 anos, viu imensas coisas ao longo de um século, assistiu ao nascimento e desaparecimento de artistas, escolas, tendências, modas, gostos. Ouviu muitas perguntas e deu muitas respostas. O que lhe permite, inquestionavelmente, ter uma paciência limitada para as perguntas de uma jornalista portuguesa num final de tarde de sexta-feira, no Chiado. No dia seguinte de manhã daria no Tribunal da Boa-Hora uma palestra, integrada na conferência Senses & Sensibility in Lisbon, organizada pelo Iade (Instituto de Artes, Design e Marketing).

"Faz perguntas absurdas", diz, a certa altura da nossa conversa. Não o diz de forma desagradável. Apenas como a constatação de uma evidência, que parece deixá-lo ligeiramente perplexo. Olhando para a lista de perguntas, decidimos mudar de estratégia. "O que seria para si uma pergunta interessante?", desafiamos. "Consigo pensar em cinco mil exemplos de perguntas interessantes", responde, rápido. Apenas uma, insistimos.

Dorfles não nega o pedido. "Como é que hoje temos um predomínio da arte não figurativa, ao contrário do que aconteceu nos séculos anteriores? Esta é uma pergunta à qual podemos responder que hoje a reprodução da realidade é feita a partir de fotografias, do cinema, etc., por isso a pintura já não tem a necessidade de fazer aquilo que faz a natureza, por isso volta-se para a abstracção ou a deformação da realidade." E, sempre com delicadeza, conclui: "Isto é uma pergunta. Banalíssima, mas uma pergunta."

A pergunta com a qual tínhamos tentado começar a conversa era se, apesar de ao longo das décadas as formas de expressão artística terem mudado, as grandes questões existenciais colocadas pelos artistas permaneciam as mesmas. E, apesar de perplexo, Dorfles acabou por responder. "Se muda a arte, mudam as questões. A arte muda continuamente, nunca é a mesma. Como é possível haver um modelo único quando tudo muda - a arte, a vida, tudo? Não há uma lei que sirva para todos os tempos. O que era belo no século XV já não o é no século XVII, e o que era belo no século XVIII já não o é no século XX. O gosto muda como muda a arte. A arte muda segundo o gosto."

A partir daqui a conversa decorreu sem contratempos, alargando-se aos outros presentes: Aldo Colonetti, director da revista italiana Ottagono, discípulo de Dorfles e organizador do mais recente livro do pensador, Itinerario Estetico; e António da Cruz Rodrigues, professor do Iade. Com vários livros traduzidos em português - entre os quais A Arquitectura Moderna e Introdução ao Desenho Industrial - Dorfles é conhecido por várias gerações de alunos de Design em Portugal, sobretudo pela obra Oscilações do Gosto.

É também por aí, pelas oscilações do gosto ao longo dos tempos, que a conversa passa. A arquitectura, por exemplo, "tem mudado conforme as épocas, dialogando com a sociedade e com a situação social e económica do momento".

E é mais interessante a arquitectura que se faz hoje do que a que se fez no passado? "Estamos numa época em que a arquitectura teve um desenvolvimento importantíssimo, criou novas formas, como no passado aconteceu com a escultura."

E significa isso que se faz arquitectura de forma mais livre? "Os novos materiais tornaram possível aquilo que antes não era possível. O betão armado, o aço, o vidro, as grandes superfícies transparentes, no passado não eram possíveis."

Haverá sempre vanguardas

Falamos então do peso do passado, da forma como este está presente nas formas que fazemos hoje, e de como é indispensável - esta é uma das ideias centrais do pensamento de Dorfles - conhecê-lo. Para se criar "não basta a inventiva natural, é fundamental ter uma preparação sobre o passado". Mas não para ficarmos agarrados a ele, a repetir fórmulas. "Há o que se destaca do passado e o que fica no passado. Um verdadeiro artista não deve ser condicionado pelas formas passadas", sublinha.

Aldo Colonetti vem em nosso auxílio para traduzir a ideia de Dorfles: "Se um artista ou designer é condicionado pela memória, não conseguirá nunca fazer nada de original. Mas, por outro lado, para ser novo tem que conhecer o que aconteceu antes. O futuro está no conhecer o passado, mas sem o imitar. Só tendo memória se pode avançar de modo original."

E depois é ele próprio quem faz uma pergunta ao mestre. "Ainda há vanguardas?" "A vanguarda existe sempre", responde Dorfles. "E continuará sempre a haver vanguardas?", insiste Colonetti. "As formas mudarão necessariamente", acredita o filósofo. "Se não for por nenhum outro motivo, mudarão por aborrecimento. A certa altura deixa-se para trás estas coisas para fazer outras novas."

Arriscamos nova pergunta: e estará a criatividade em crise no Ocidente e a crescer o resto do mundo? "Não me parece", diz Dorfles, já entusiasmado. "Naturalmente que hoje a China e amanhã a Índia começam a criar novas formas que não faziam antes. Mas não me parece que a Europa esteja em decadência. Basta pensar nos grandes músicos do nosso tempo - são quase todos europeus, de Stockhausen [Karlheinz Stockhausen, 1928-2007], a Luigi Nono [1924-1990]. Pintores, basta dizer Picasso [1881-1973] e Mondrian [1872-1944], só para citar os mais conhecidos. Creio que a Europa é ainda a origem da civilização. Da China não sei nada. Pode ser que a próxima grande civilização seja a chinesa, mas não acredito."

Percebe-se, ao ouvi-lo, que ter 100 anos fá-lo olhar para o mundo numa perspectiva mais longa. Não está a citar artistas vivos, nem a pensar no que aconteceu nos últimos 12 meses. Está a dar uma perspectiva histórica, uma profundidade de campo.

A ausência de pausa

O que preocupa Dorfles quando olha para o mundo hoje é a ausência de pausa, de tempo, de silêncio. Escreveu até um livro sobre o assunto, L"Intervallo Perduto. "A falta de pausas não só na arte, na sociedade, na cultura, na cidade, a falta de um espaço livre - o between, dos ingleses -, estas são as coisas que me interessam." E depois, pensando em arquitectura, acrescenta aquilo que pode ser entendido literalmente mas também como metáfora: "O espaço entre as colunas é mais importante do que as colunas."

Eternamente curioso - "sem curiosidade não haveria progresso nem cultura, um homem que não seja curioso já está morto, e espero que nós não estejamos mortos" -, Dorfles é, acima de tudo, um homem com humor. Perguntamos-lhe sobre o seu mais recente livro, Itinerario Estetico, um conjunto de ensaios sobre estética que escreveu nas últimas décadas.

Pega na cópia que está em cima da mesa e diz que o mérito é de Colonetti por ter encontrado um editor "para um livro do qual se vão vender cinco cópias, dez no máximo". E, de repente, lembra-se de uma história, divertido: "Fui a uma livraria em Itália e perguntei: "Já receberam o meu último livro?" Disseram-me logo que sim e que já estava esgotado. Fiquei muito admirado: "Já esgotado? Nunca me tinha acontecido. Quantas cópias tinham?" E a senhora respondeu: "Duas."" "Duas!", repete. E dá uma gargalhada.

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