Cão da Morte vai lamber-nos os ouvidos

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O primeiro contacto deste Cão com a música deu-se cedo, "aos cinco anos", quando o puseram nas aulas de piano. Depois fez "um ano de guitarra clássica, mas disseram-lhe que não tinha jeito JOANA FREITAS

A surpresa nacional deste ano: um puto de 19 anos lança o seu segundo disco online. Canções românticas e decadentes e oh tão boas. João Bonifácio

Era segunda-feira e num subúrbio de Lisboa chamado Casal do Chapim, Odivelas, um rapaz magro, o seu amigo barbudo, um jornalista muito bonito e uma fotógrafa com tatuagens estavam à mesa do café do centro comercial Casal do Chapim quando o rapaz magro pergunta ao tipo que escreve:

"Qual é o teu rapper português favorito?".

"Valete, claro".

"Eu não te disse?", riposta o barbudo.

"Ah não, Halloween", atira a fotógrafa das tatuagens para alegria do rapaz magro.

"Não é?", diz ele.

Os subúrbios são importantes para o rapaz magro, que quando faz canções denomina-se Cão da Morte. "Os subúrbios... Quando penso na história que quero contar [numa canção] a história é passada cá", diz, no registo pára-arranca que marca a sua forma de falar. "Mas não estou a forçar um conceito quase hip-hop, só falo porque é o assunto que conheço melhor".

Sim, Luís Gravito, aka Cão da Morte, conta histórias dos subúrbios mas não no registo que nos habituámos a ouvir. Compare-se qualquer letra de Cão da Morte com essa magnífica canção que é "Subúrbios", de Valete, e a diferença lírica é abissal. Valete fala dos subúrbios como o lugar "Onde a tua mãe aos 14 engravidou/Onde o teu pai semeou e não ficou" enquanto Cão da Morte fala do amor de forma lírica. Valete rapa "Manos em desespero gritam/Que safoda os empregos/ Há sempre trabalho nas esquinas do Getto" enquanto Cão da Morte diz, num registo quase juvenil, que ali naquela esquina Halloween costumava estar à noite com os amigos e acolá naquela esplanada os putos reuniam-se e depois iam para aquele bar ali. "Acho", acrescenta, "porque na altura em que era assim não me deixavam sair à noite".

A distância que vai de Luís Gravito a Cão da Morte é admirável: em disco as palavras são escolhidas meticulosamente, a voz assume contornos de bardo ébrio, vivido; em conversa gagueja um pouco, dispara em todos os sentidos, fala alto, tem o entusiasmo de quem tem 19 anos. E já fez um EP e dois discos. "Ainda Sem Nome" é o mais recente e dista muito do álbum de estreia, "Canções Intravenosas". É um disco tremendo, de canções hiper-românticas, com guitarras definidas e órgãos à roda e impressiona a precisão de cada arranjo.

Há uma energia rara que irradia do rapaz. O ano passado vimo-lo a tocar com o amigo Coelho Radioactivo e com João Coração na Faculdade de Letras e ele abeirou-se e entregou-nos o primeiro disco. Da mesma forma tenta marcar os seus concertos, reúne os músicos e sobe ao palco sozinho sem medos. "Em 2011 devo ter dado quatro concertos por mês. Quase sempre sou eu a agendá-los. O que implica quase pedir para tocar. É um bocado naquela: se não conseguir também não perco nada. Não é auto-confiança. É o oposto. Porque eu tenho que tocar".

Com ou sem auto-confiança a velocidade a que tem criado nome é admirável: num par de anos conseguiu criar um mini-culto. "Achas que sim, tenho mesmo um mini-culto?", pergunta, irradiando um sorriso. Há uma honestidade em relação ao que faz e a como é recebido que lhe fica bem.

"No outro dia, ia no metro, estava meio chateado, e apareceu um tipo com os auscultadores nos ouvidos, chegou ao pé de mim, passou-me os auscultadores e disse "Toma, ouve". E era a minha música".

O tédio e a inventividade

O primeiro contacto deste Cão com a música deu-se cedo, "aos cinco anos", nas aulas de piano. Depois fez "um ano de guitarra clássica, mas disseram-me que não tinha jeito". Nos anos seguintes foi "fazendo uns acordes, tocando o que sabia, inventando o que não sabia". Mas na realidade a relação com a música tem âncoras mais fundas. Ele dá uma explicação, talvez a grande explicação: "Na realidade nunca tive muito para fazer". Grosso modo há uma relação entre o tédio e a inventividade: Cão cria para se entreter.

Algures pelo caminho as coisas tornaram-se mais sérias. Isso aconteceu quando descobriu a Flor Caveira. "Eu já fazia canções quando os descobri. A coisa que mais me marcou foi a falta de pudor, o à vontade. Para um puto que está a começar é importante ver que há gajos mais velhos a cantar o que lhes apetece".

Importante também por causa da língua, o português, na qual Gravito se safa admiravelmente. "Não é como se acordasse de manhã e pensasse "Hoje apetece-me honrar a pátria". Só me dá mais jeito. E gosto de bandas portuguesas que cantam em inglês, como o Belarmino".

Tão fã de Nick Cave como de Fausto, de Cohen como de Coração, criou um disco que honra os seus mestres. Estranhamente, não há uma editora por trás. "Concluí que o que ganho a pôr o disco na net é mais do que o dinheiro que gastei".

O dinheiro que gastou, note-se, foi o da gasolina nas idas para "uma quinta abandonada na Chamusca", mais "as refeições", todo um complexo processo de gravação que juntou meia-dúzia de músicos durante sete dias. Depois foi adicionar os arranjos (e que arranjos).

A ideia, claro, é conseguir dar mais concertos, fazer mais discos com arranjos cada vez melhores. "Há uma canção do Nick cave, que é "Let Love In"... Quando a ouço, penso: "Se eu conseguir ter aquela densidade sonora, aquele pesar, estou no bom caminho"".

Apostamos que este Cão tem faro.

Ver crítica de discos págs. 32 e segs.

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