"Bem, então acabou-se"

Esteve 32 anos no poder, exerceu-o com mão de ferro e quando saiu foi parco nas despedidas. Suharto foi considerado um dos líderes mais corruptos do mundo, mas conseguiu sempre evitar sentar-se no banco dos réus. Alguns indonésios têm saudades dele

a Suharto morreu ontem, aos 86 anos. Mas o seu obituário, ainda que apenas político, já tinha sido escrito na Primavera de 1998. Foi este o ponto de viragem da Indonésia, o país que o ditador governou com mão-de-ferro durante 32 anos. Um recuo até à noite de 20 de Maio de 1998 leva-nos a uma sala onde Suharto, sozinho, se depara com uma situação política irreparável. A Indonésia está em convulsão. Uma semana antes, os soldados abateram quatro estudantes universitários na Universidade de Jacarta. O aumento dos preços da gasolina inflamou os ânimos e ajudou a dar coragem a milhares de pessoas para sair à rua em protesto. O que se seguiu foram três dias de tumultos intensos com 1200 mortos. Nas ruas desafiava-se o regime e gritava-se "Abaixo Suharto!".
À porta, preparando-se para entrar, está o secretário da Presidência, Saadilah Mursjid. É ele quem terá de anunciar ao ditador que ficou isolado, recorda Adam Shwarz no seu livro A Nation in Waiting (Allen and Unwin, 1999). "Quem está no Executivo?", pergunta Suharto. Mursjid fez uma pausa antes de responder: "Só nós dois." Catorze ministros recusaram-se a fazer parte de mais um Governo. Suharto reflecte ainda algum tempo antes de admitir: "Bem, então acabou-se."
Na manhã seguinte, bastaram alguns minutos para o ditador dar como extinto o seu longo reinado - até aí o mais longo de um líder asiático. Nomeou o seu vice, B. J. Habibie, para o substituir; o general Wiranto foi mantido na chefia das Forças Armadas. Pensava, talvez, que seria ainda possível manter os pilares do regime intactos. Enganava-se. Habibie prometeu um corte com o passado, tal como Suharto fizera depois do golpe que derrubou o primeiro Presidente indonésio, Sukarno.
Um militar obscuro
A história de Haji Mohamed Suharto é também a história recente da Indonésia e uma não se conta sem a outra.
Nascido a 8 de Junho de 1921, numa pequena casa com paredes de bambu de Kemusuk, no Centro de Java, a infância de Suharto não foi vulgar mesmo para os padrões javaneses. Viu os pais divorciarem-se pouco depois de nascer; entrou para a escola com quatro anos, o que também era invulgar. O pai mudou de nome três vezes e casou outras tantas. A mãe entrou em profunda depressão depois do seu nascimento. Voltou a casar mais tarde e teve sete filhos. A custódia de Suharto foi disputada e o resultado foi que o rapaz acabou por viver durante vários períodos com uma tia, ou com uma meia-irmã. Talvez esta instabilidade possa ajudar a explicar a forma cega como instalava familiares e amigos em posições-chave, como os favorecia, a ponto de o seu governo ser para sempre lembrado pelo nepotismo.
A sua origem rural seria muitas vezes invocada para se aproximar da população. Teve de abandonar a escola preparatória porque a família não lhe podia comprar os calções e sapatos que faziam parte da farda. Acabou os estudos aos 18 anos em Yogyakarta, numa escola islâmica. "Na minha infância tive de passar por tanto sofrimento que as pessoas não podem imaginar. (...) Mas foi por causa deste sofrimento que me tornei em quem sou hoje. Sou uma pessoa que pode realmente pensar e sentir o que significa a privação", escreveu na sua autobiografia, Pirakan.
Disse também que foi por falta de dinheiro para comprar um fato novo que teve de abandonar o seu primeiro trabalho, num banco. Começou a usar uniforme aos 19 anos, quando o seu país era ainda um território administrado pela Holanda, integrando o exército colonial (KNIL) em 1940. Enquanto sargento, rendeu-se sem combater contra o invasor nipónico, dois anos depois. Em 1943 juntou-se ao Exército Voluntário dos Defensores da Pátria, formado pelos japoneses, ficando com o comando de uma companhia. Em 45, depois da derrota do Japão na II Guerra Mundial, alistou-se no recém formado Exército da República Indonésia e subiu rapidamente na hierarquia. Em 1947 casou-se com Siti Hartinah, de quem teve seis filhos (três rapazes e três raparigas).
Assim como não se conheciam pensamentos políticos a Suharto, também não era evidente que a sua estadia no Exército tivesse fundamentos puramente militares. Efectivamente, Suharto foi muito hábil a levar a cabo o que era já uma prática entre os oficiais: aproveitar o seu posto para fazer negócios com os comerciantes locais. Foi na década de 50 que estreitou relações com Bob Hasan e Liem Sioe Liong, ambos de etnia chinesa, que viriam a ser dois dos empresários mais ricos da Indonésia.
Chegou a ser acusado de contrabando, mudado de posto (1959), mas reabilitou-se a ponto de ser promovido a general. Em 1962 liderou a operação de anexação da Papua Ocidental; um ano depois chefiava o comando estratégico do Exército, Kostrad.
O misterioso golpe
Houve duas ideias fundamentais que o jovem Suharto foi buscar aos épicos hindus apresentados pelo wayang, o teatro de sombras de Java, lembrava o Sydney Morning Herald quando fez o perfil do ditador após a sua queda: um líder deve ser sereno, reservado paciente; um líder deve procurar vencer sem se exibir e sem humilhar o vencido.
É possível que se tenha esquecido destas máximas quando começou a sua governação com uma caça às bruxas contra os comunistas. As circunstâncias em que Sukarno foi obrigado a demitir-se justificavam, na opinião de Suharto, uma guerra sem tréguas e muito sangue contra o Partido Comunista - então o segundo maior do mundo, a seguir ao chinês.
Ainda hoje o derrube de Sukarno mantém alguns enigmas. A 30 de Setembro de 1965, seis generais foram sequestrados por um grupo de militares. Antes de anoitecer, sete raptores foram abatidos e os seus corpos lançados a um poço. Foi o então desconhecido general Suharto, chefe da Kostrad, quem liderou esta contra-ofensiva, chamada Movimento 30 de Setembro. E foi ele quem assumiu o controlo do Exército no dia seguinte.
O 30 de Setembro defendeu que a acção visava impedir um golpe por parte de um grupo de generais de alta patente contra o Presidente Sukarno, apesar de nunca terem sido encontrados quaisquer planos nesse sentido. As Forças Armadas acusaram imediatamente o Partido Comunista (PKI) de estar por trás da operação.
O executivo de Sukarno não conseguiu manter-se unido; os estudantes saíram à rua a exigir a sua demissão, e o primeiro Presidente da história do país não teve outra alternativa senão passar o testemunho.
Suharto passou à chefia em Março de 1966 com um inimigo bem definido: em poucos meses, o PKI, um partido com dois milhões de filiados e um número muito mais elevado de simpatizantes, foi totalmente erradicado com um banho de sangue. A CIA considerou-o "um dos piores massacres em massa do século XX". Os números oficiais apontam para meio milhão mortos, a Amnistia Internacional falou em milhão e meio. Até 1978, 36 mil pessoas estavam ainda em campos de trabalho, como o prestigiado escritor Pramoedya Ananta Toer.
Os militares começaram por causar a queda de Sukarno; Suharto procurou garantir que tinha o Exército do seu lado ao longo de três décadas. Foi ali que fez as primeiras purgas eliminando elementos mais à esquerda. O papel dos militares alterou-se: não se restringia à manutenção da ordem e à defesa, também receberam postos no aparelho burocrático, a chamada "dupla função".
A Nova Ordem
A primeira missão do novo chefe de Estado, dizia, era trazer a ordem a um país de 17 mil ilhas e mais de 200 milhões de habitantes. O regime recebeu o cognome de Nova Ordem. Os resultados das democracias de Sukarno, parlamentar, na década de 50, e "orientada", nos anos seguintes, levaram o Governo Suharto a defender a necessidade de um pulso mais forte. A união de facções do Exército anticomunistas deu origem aos Grupos Funcionais, uma organização que se tornou num partido político com o nome de Golkar - seria este o braço do regime no parlamento. Com ele, Suharto cumpria o ritual das eleições, o "festival da democracia", dizia.
Para se atingir progressos económicos, era necessária ordem política. Não foi só a democracia que foi superada; foram também esmagados os antagonismos étnicos, religiosos e geográficos. A 7 de Dezembro de 1975, as tropas indonésias invadiam Timor Leste para o tornar na 27ª província do país (uma acção nunca reconhecida pela ONU); a ocupação fez entre 100 mil e 200 mil mortos. Foi preciso Suharto cair para que se realizasse um referendo sobre a independência de Timor; e para que um diálogo com o GAM acabasse com a guerra em Aceh. Por todo o arquipélago, movimentos independentistas e separatistas foram sendo duramente perseguidos, mas muitos resistiram.
Do Governo de Sukarno, o novo regime manteve a Pancasila, a base do nacionalismo indonésio, composta por cinco pilares: crença num Deus supremo, humanismo, justiça social, unidade da nação e democracia consensual. A cartilha era ensinada nas escolas e todas as crianças poderiam garantir que era fundamental para assegurar a unidade nacional. "As pessoas podem criticar o Governo sem restrições. O que é importante é como a crítica é feita. Deve ser válida, não deve ir contra os interesses da nação e não deve ser inconsistente com os princípios da Pancasila", afirmou Suharto numa rara entrevista à Time em Abril de 1991. "De acordo com a democracia da Pancasila, a liberdade deve estar ligada à responsabilidade - responsabilidade perante a nação, o Estado, o país e os seus interesses prioritários."
Muitos grupos da sociedade indonésia apoiaram as intenções do novo Presidente - nomeado oficialmente em 1967 pela Assembleia Consultiva Popular (MPR). Nas eleições de 1971, o Golkar recebeu 63 por cento dos votos. Antes das legislativas seguintes, o regime tratou de travar os partidos da oposição - sobretudo o Partido Democrático Indonésio (PDI, que se tornou no partido da ex-Presidente Megawati Sukarnoputri, filha de Sukarno), e a união de partidos muçulmanos, Partido Popular do Desenvolvimento. As listas de candidatos eram vetadas pelo Governo antes e depois dos escrutínios.
A Pancasila foi usada para calar as críticas e impedir oposições. Quem esperava por democracia ficou a saber, com a brutal repressão das manifestações de 1974, que não a veria sob o regime de Suharto. Os jornais mais críticos foram encerrados, e vários opositores detidos. E o nacionalismo serviu de apoio.
Os "príncipes" da Indonésia
Na década de 60 a economia estava de rastos, a Indonésia era um dos países mais pobres do mundo, e Suharto acabou por lucrar com isso. Apoiou-se numa equipa de tecnocratas formados no Ocidente que tentou conter a inflação, estabilizar a rupia, atrair investimento estrangeiro. Conseguiu.
Em poucos anos, o país tinha um crescimento de sete por cento, e os indonésios que viviam abaixo do limiar da pobreza passaram de 60 por cento em meados dos anos 60 para 16 por cento em 1990, segundo o Banco Mundial. Mas também há quem defenda que o Presidente estabeleceu a linha de pobreza artificialmente baixa, e que o crescimento económico não melhorou a vida de tantos indonésios como o regime defendia.
Ontem, muitos lembravam os seus êxitos económicos. "Perdi a pessoa mais importante para a Indonésia, ele fez muito por nós", chorou à AFP Suparto Soejatmo, que conheceu vários dos seus filhos.
Apesar da concentração de empresas nas mãos da família e amigos, os dados mostram que a distribuição da riqueza praticamente não se alterou durante a Nova Ordem e que foi "razoavelmente igualitária segundo os padrões internacionais", escreve Adam Schwarz. Isto foi principalmente visível nos fundos para o desenvolvimento agrícola e cultivo do arroz, gastos consideráveis no ensino primário, subsídios para a saúde. O Presidente começou a ser conhecido como "o pai do desenvolvimento" e os seus "filhos" puderam passar de principais importadores de arroz para consumidores auto-suficientes.
A base industrial expandiu-se, o comércio externo foi liberalizado. Os lucros da produção de petróleo também ajudaram. Os empresários locais tiveram de competir com empresas de capitais estrangeiros; muitos investidores privilegiavam os empresários de etnia chinesa, ou responsáveis militares bem relacionados.
Mas entre o grupo que mais beneficiou com as privatizações está sem dúvida a prole do próprio Presidente. Ao longo de três décadas, todas as empresas mais importantes e lucrativas do país iam parar às mãos do clã. A família Suharto tornou-se numa das mais ricas do mundo, com uma fortuna avaliada em 40 mil milhões de dólares - o equivalente a metade do Produto Interno Bruto no ano em que o ditador caiu.
Cada um dos seus seis filhos era a face de uma empresa lucrativa. Apenas a mais velha, Siti Hardiyanti Rukumana, conhecida por Tutut (todos têm diminutivos), se interessou por política e ocupou a pasta da Segurança Social no Governo do pai. Mas corria-lhe também na veia a mesma voragem para o negócio: controlava um terço do Banco Central da Ásia, o maior banco privado do país; tinha investimentos nas ligações ferroviárias, centrais eléctricas, exploração da cana-de-açúcar, e detinha duas cadeias televisivas. O filho mais novo, Tommy, era o patrão do Timor, um carro nacional (foi condenado a 15 anos de prisão por ter mandado matar o juiz que o acusara de corrupção). Entre companhias aéreas, exploração de gás líquido, fábricas petroquímicas, hotéis... o império da família não tinha fim.
Os investidores estrangeiros sabiam que estavam a lançar milhões de dólares para as contas do clã. O Fundo Monetário Internacional também não ignorava a situação quando concedia os seus avultados empréstimos, mas Suharto nunca pagou por isso. Mantinha boas relações com os líderes europeus, e sobretudo com os EUA.
A queda
A corrupção - que todos os analistas dizem ser endémica - colocava a Indonésia no topo dos rankings asiáticos e era uma das mais elevadas do mundo. Do topo à base do aparelho do Estado, os funcionários limitavam-se a seguir o exemplo do "pai", apenas numa escala inferior. A imprensa, silenciada pelo regime, não serviu de contrapeso.
"Apesar de ter aberto a Indonésia ao mundo e reduzido as barreiras proteccionistas, ele nunca entendeu as consequências políticas dos seus actos", continua Schwarz. "Continuava a exercer o poder como um chefe de aldeia."
A crise económica de 1997 - um ano de terrível seca - foi um gatilho para a queda do ditador, mas só porque Suharto já estava politicamente enfraquecido. Os desafios começaram a crescer no início dos anos 90. A geração mais nova ansiava por mais liberdade de expressão. Mas Suharto fez exactamente o contrário do que estava a ser exigido e tentou silenciar ainda mais as vozes de descontentamento. Em Junho de 1994 fechou três publicações, Tempo (a mais importante do país), Editor e Detik. A oposição radicalizou-se.
O fim de Suharto também se anunciou com a morte da sua mulher, em Abril de 1996, depois de 48 anos de casamento. Tien não era apenas o árbitro das disputas entre os seis filhos, era também a principal confidente do Presidente. Dois meses depois, o próprio Suharto foi receber tratamento médico na Alemanha. A saúde frágil do ditador fez nascer uma questão: a sua sucessão. Mas o tema foi tabu para o Presidente, que se fez reeleger pela Assembleia apenas dois meses antes de não ter outra saída a não ser demitir-se.
A tentativa de remodelação da liderança das forças armadas (Abri) também acabou por criar alguma instabilidade. Ficaram visíveis as linhas que separavam a ala mais secular e nacionalista - liderada pelo general Wiranto, comandante das Abri quando o regime caiu, e o general Susilo Bambang Yudhoyono, actual Presidente da República -, e outra mais próxima dos muçulmanos "modernistas", do genro de Suharto, general Prabowo Subianto.
Havia um role de problemas internos, mas o rastilho foi aceso pela queda da moeda tailandesa. O preço da gasolina disparou e a resposta saiu à rua. Suharto foi parco nas palavras de despedida.
Já depois da sua demissão, conseguiu evitar sentar-se no banco dos réus para responder por três décadas de um regime corrupto - um juiz considerou-o demasiado doente para o fazer. Também não lhe foi exigido que explicasse as sucessivas violações aos direitos humanos. Mas em Maio do ano passado, a Procuradoria Geral anunciou que iria mover um processo civil para reaver os fundos desviados pela família - que sempre negou as irregularidades. E ainda agora há quem tenha ido para a rua para exigir que o ditador responda à justiça.
A maior parte dos analistas não acreditava que Suharto pudesse passar os seus últimos anos afastado da política, depois de 32 anos no poder. Mas a verdade é que só a morte o faz regressar às primeiras páginas dos jornais.

Sugerir correcção