Belíssima volta a dançar no baile de Aldara Bizarro

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PAULO PIMENTA

Belíssima já foi "uma bailarina profissional". Outros tempos, outros bailes. Este que viemos ver como é, em mais uma tarde de ensaios na Junta de Freguesia de Miragaia, Porto, não é igual "aos verdadeiros", aqueles em que Belíssima, a D. Maria da Glória, a D. Adelaide, a Manuela, a Clara, a Anatilde e o senhor António se fizeram gente, nas madrugadas maiores do que a vida do S. João no Largo da Praia. Numa coisa vai dar ao mesmo, reconhece Belíssima: aqui toda a gente dança, novos e velhos, mesmo sem par, mesmo sem pernas capazes, mesmo sem sapatos como os das bailarinas - daqueles "um bocadinho de festa" que Manuela tem debaixo de olho e talvez ainda venha a experimentar com as outras numa tarde de compras.

É hoje, O Baile. Às 19h, num palco ali mesmo em Miragaia, com vista para a casa onde moram alguns destes idosos que Aldara Bizarro convidou a dançar com os seus cinco bailarinos profissionais e mais uns quantos miúdos do bairro. O título, diz a coreógrafa, vem do filme homónimo de Ettore Scola (1983), mas sobretudo do ADN desta comunidade que faz do baile de S. João a sua grande prova de vida anual. "Por coincidência, tinha revisto o filme na televisão quando a Fundação de Serralves e o Manobras no Porto me desafiaram a assumir este projecto com Miragaia. Achei muito produtiva a ideia de um baile que conta a história de uma comunidade ao longo de várias décadas. Porque a verdade é que as pessoas que aqui vim encontram adoram dançar - sobretudo a dois. Mesmo as que coxeiam", explica Aldara ao Ípsilon.

Como num salão de baile, há cadeiras a toda a volta, sapatos de tacão e fivela, roupas elegantes - e aqueles sorrisos vencedores, braço esticado, pose perfeita para os flashes e os aplausos no final de cada número. Mas como este salão de baile é em Miragaia (ainda que amanhã e depois se transfira para a Fundação de Serralves, onde integra a maratona do Serralves em Festa, respectivamente às 19h e às 18h30), também há histórias de bairro - histórias antigas, do tempo em que o gigantesco edifício da Alfândega ali se instalou, esmagando o pequeno casario de Miragaia, e histórias mais recentes, do tempo em que "o Delfim Del Castro" (sic) passou pelo bairro a caminho da Cibeira Ibero-Americana de 1998 e parou para dar um beijo ("e acho que um rebuçado também, mas já não me lembro") ao neto da Clara.

Os de baixo

É a memória de um lugar, de uma comunidade, que aqui se trabalha, como noutro filme italiano, o Amarcord de Federico Fellini. É das coisas do bairro que Belíssima, a Clara, a Manuela e o senhor António ficam a falar no fim do ensaio: das casas degradadas (mesmo que a fachada, pintada em 1998 para ibero-americano ver, disfarce) em que as gerações mais novas já não querem viver, mesmo que isso signifique migrar para os subúrbios; e das casas recuperadas que "os de baixo", que ali viveram a vida toda, agora não têm dinheiro para alugar.

Degradação, desertificação, gentrificação - e uma coreógrafa, ainda por cima forasteira, no meio disto.

De certa forma, diz Aldara Bizarro, O Baile é a continuação, ainda que por outros meios, da experiência desenvolvida em trabalhos anteriores como A Casa ou o Projecto Respira. Aqui, finalmente, a comunidade não esteve só nos bastidores do processo de criação: "Andava há muito com vontade de pôr as pessoas com que trabalho no palco. Quando cheguei ao Porto, fui às colectividades de Miragaia apresentar-me, explicar como trabalho e convidar as pessoas a participarem nisto - houve altos e baixos, nem sempre todos apareciam nos ensaios. As pessoas têm as suas vidas, os seus filhos, os seus netos...". Os anos que já leva de trabalho comunitário dizem-lhe que o que as pessoas tiram disto "é ficarem a conhecer-se um bocadinho melhor", continua: "O processo de criação é muito revelador. E para mim a concentração, o interesse genuíno, a motivação perante uma tarefa são objectos artísticos".

Enquanto andou por Miragaia, Aldara viu coisas "caídas em desuso" - como se aquele fosse um lugar fora do tempo, fora do Porto até (da Alfândega, não é fácil ver o Largo da Praia: está "demasiado abaixo", como se se tivesse afundado na barriga da cidade). "Os rapazes a fazerem peitaça, as memórias daquelas profissões da Alfândega, que se perderam, as histórias do contrabando... Quis que tudo isso estivesse nesse baile. Estou a fazer um trabalho verdadeiramente popular e não funciona se as pessoas não sentirem que é delas". Ou seja nosso - como os bailes de S. João em Miragaia.

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