As vozes com Tiago Sousa

Foto

Música e palavra fazem política para tempos terríveis no Coro das Vontades. Tiago Sousa e 56 manifestos amanhã no Maria Matos.

São estes os tempos que vivemos. Terríveis tempos de mudança em que a política está presente, hora a hora, no quotidiano das gentes. Isto, curiosamente, depois de tantos anos em que tantos bradaram a inevitabilidade do fim das ideologias, porque no Admirável Mundo Novo apolítico seríamos todos geridos - países, freguesias, pessoas - como empresas. Estes tempos que vivemos, estes tempos de luta ideológica feroz, a dos amanhãs que cantam nenhum outro mundo ser possível para além da economia e a do hoje que tenta gritar que essa canção está gasta e tornou-se intolerável ouvi-la todo o santo dia, talvez tornem inevitáveis manifestações como esta que veremos, amanhã, em Lisboa, no Teatro Maria Matos. Chama-se Coro das Vontades mas não exclama "eu tenho a solução e este é o caminho!" É mais complexo do que isso, como nos dirá Tiago Sousa, pianista de percurso ímpar na música portuguesa recente, autor de Insónia ou Walden"s Pond Monk.

Em palco, Tiago, acompanhado de dois músicos, uma cantora e uma diseur. Ali, os seus manifestos - a música que compõe, instrumental na tangente entre o jazz, a improvisada e a erudita, é em si um manifesto, dirá -, unir-se-ão aos manifestos que o Maria Matos convidou quem quisesse a elaborar. O Coro das Vontades não aponta nenhum caminho Tiago Sousa e Joana Rosa, mulher da palavra escrita que deu estrutura à torrente de vontades, não têm essa arrogância. Pretende ser testemunho de uma necessidade de emancipação. O mundo somos nós. Todos: o público e os músicos. Mostremo-nos. Isto o que nos quer dizer Tiago Sousa.

A ideia não é inédita. Nasceu como Coro de Queixas em 2005, em Birmingham, pelos artistas finlandeses Tellervo Kalleinen e Oliver Kochta-Kalleinen. Mas nem o director artístico do Teatro Maria Matos, Mark Deputter, que pensou transportar a ideia para Lisboa, nem Tiago Sousa, o músico escolhido para a concretizar, quiseram amplificar queixas. Transformaram-nas então em vontades. A música de Tiago Sousa embrenhando-se nas palavras dos que em Janeiro responderam ao repto, enviando desejos e pedidos.

"O que queremos para nós próprios? O que queremos para o nosso prédio, para o nosso bairro? O que queremos dos nossos políticos, artistas, juízes, administradores, cientistas, professores? Quais são as visões de futuro que nos mobilizam?", lia-se no desafio lançando pelo teatro. "Notámos que a maior parte dos textos escondia uma ideia de imposição de uma vontade sobre os outros. Interessava-nos a vontade interior, concretizar aquilo que sentes interiormente, individualmente, como justo", diz Tiago Sousa no palco do Maria Matos, no intervalo de um ensaio com os músicos - Beatriz Nunes na voz, Ulrich Mitzlaff no violoncelo e João Camões na viola de arco (no ensaio não está presente a actriz Inês Nogueira, que também integrará o espectáculo).

A terra treme

Tiago, que acaba de editar Pão, álbum homónimo do projecto que o junta ao saxofonista Pedro Sousa e ao manipulador sonoro Travassos, e que editará no Outono Samsara, o seu novo disco em piano solo, não quer que o concerto seja um dedo erguido apontando o caminho. Quer perceber como a música que criou se pode relacionar com as palavras retiradas dos 56 manifestos recebidos e organizados em guião por Joana Rosa. Quer, e as palavras são agora de Joana, "levantar questões e não responder a questões". Dias mais tarde, ouviremos Tiago dizer-nos ao telefone: "A minha maior preocupação está relacionada com a emancipação e ela só acontecerá quando as pessoas forem senhoras do seu destino. Não conseguimos transcender a lei da gravidade, mas a forma como nos organizamos socialmente deve ser feita sobre a nossa vontade individual e sobre a moralidade que construímos. Interessa que as pessoas sejam mais activas nesse papel e que encontrem formas de o ligar ao seu quotidiano".

O espectáculo, que terá entrada livre até à lotação da sala (os bilhetes levantam-se amanhã a partir das 15h), será dividido em vários momentos que se fundiram num contínuo onde se identificarão seis "vagas". Entre elas estarão leituras do Samsara por editar e de Walden"s Pond Monk, álbum de 2011 inspirado na obra de Henry David Thoreau, influência recorrente em Tiago - Joana sorri: "Estamos sempre a voltar a ele". O autor não é simplesmente o maestro que organiza e dirige o Coro das Vontades. É ele próprio voz do Coro: "A ideia que me guiou desde o início foi colocar os manifestos que nos enviassem em contraponto com o que é a minha música, com o que são os meus próprios manifestos. A música que faço pode ser encarada enquanto tal. Nasce de um contexto específico, tem em si algo de político, é um sobressalto que reforça essa questão".

No ensaio, ouvimos o primeiro momento, entrada em modo hipnótico no ambiente do concerto, com piano e cordas em movimentos ondulantes e a voz de Beatriz Nunes repetindo uma frase: "A terra treme". É o início do sobressalto.

Foi a liberdade da música de Tiago Sousa que Joana Rosa procurou para os textos que organizou e que estarão disponíveis on-line, no site do Maria Matos. Ali encontramos reclamações concretas, proclamações políticas, vozes poéticas, prosa empolgada ou manifestos com Almada Negreiros no horizonte ("plim!"). Os autores pretendem diluir-se num caldo de vozes: "O espectáculo não somos nós", repetem. Este coro é político mas não prega doutrina. "É necessário emanciparmo-nos antes de mudarmos. A vontade vem antes da acção".

Por agora, sem público em quem as palavras e os sons se possam manifestar, a música vai ganhando consistência. Acaba o ensaio de mais uma peça. "Foi fixe?", pergunta Tiago. "Já estamos no bom caminho", responde Ulrich Mitzlaff. O Coro das Vontades começava a erguer-se.

Sugerir correcção