Amália

É a obra mais cara do cinema português e o primeiro biopic sobre uma das vozes que cantaram Portugal. Amália, realizado por Carlos Coelho da Silva, está a chegar à meta do período de rodagem. A estreia acontece em Dezembro. E em 2009 a RTP exibe uma série

a Há três dias que a equipa de filmagens de Amália, o primeiro filme biográfico da fadista, ocupa a Casa-Museu Amália Rodrigues, na Rua de São Bento, em Lisboa. Estão a chegar ao fim dois meses e meio de rodagem daquele que é o filme mais caro do cinema português (três milhões de euros, produção da Valentim de Carvalho Filmes com a RTP), realizado por Carlos Coelho da Silva, escrito por Pedro Marta Santos e João Tordo e com um elenco de 40 actores. Depois da Régua, Sintra, Buçaco, Espinho e Aveiro, locais onde foram recriados cenários do Rio de Janeiro e de Nova Iorque, Amália está agora na casa onde morreu a fadista, em 1999. Ontem, o trabalho de filmagens começou às oito da manhã, no primeiro e segundo andares da casa amarela. O plano do dia não foi dos mais fatigantes. Na folha de resumos podiam ler-se as cenas previstas para a manhã, com os respectivos horários: "Amália zangada com Detinha [a irmã mais nova da fadista]"; "Amália acorda com más notícias"; "Amália muito triste"; e "Amália e César [Seabra] despedem-se".
No guião, cuja narrativa decorre entre 1926 e 1974, estes momentos têm datas específicas: 1968 e 1970. Amália usa, então, o cabelo curto. E quando avistamos a sua silhueta, em contraluz, vemos uma mulher magra, envergando um vestido em voga nos anos 50 (justo até à cintura, saia pregueada de linha trapézio). Olhos fitos no chão, a mão a brincar com um fio de ouro que traz ao pescoço, vagueia pela sala, alheada dos movimentos rápidos das poucas pessoas que ali estão, ocupadas com câmaras, cabos, décors, luz. Dirige-se à sala de jantar, onde tudo continua imaculado e, num tom baixo, conversa com Estrela Carvas.
Sandra Barata Belo, a actriz de 30 anos que dá vida a Amália Rodrigues, escolhida num casting em que compareceram 12 actrizes, precisa de silêncio. Só assim consegue uma concentração total. Mas falar com uma das pessoas que melhor conheceu a fadista parece dar-lhe alguma paz de espírito. Faz-lhe perguntas sobre as cenas que vai filmar, sobre o momento em que a cantora aceitou casar-se com César Seabra. Mas também sobre outros fadistas, sobre as amizades, sobre aquilo que se escreveu na imprensa. Estrela responde a tudo, mostrando o mesmo sorriso maternal com que acolhe todos os membros da equipa.
Bisneta de um galego, Estrela Carvas, 66 anos, viveu nesta mesma casa entre 1975 e 1990 e fazia um pouco de tudo (só não cozinhava, conta, porque nunca teve jeito para isso): "Tratava do som nos espectáculos, das aparelhagens, dos vestidos, dos impostos, conduzia carrinhas."
Lembra que viajou, "de propósito", de Angola para conhecer a fadista. "Bati à porta e tive muita sorte porque ela aceitou-me e gostou de mim." Acompanhou-a na sua última digressão e quando Amália abandonou os palcos era visita quase diária na casa da Rua de São Bento. "A minha casa em Lisboa sempre foi esta", diz Estrela, hoje uma das responsáveis pela Fundação Amália Rodrigues.
Enquanto decorrem as filmagens na casa-museu, Estrela não sai dali. É uma espécie de vigilante e guardiã da casa; é a ela que os técnicos recorrem quando precisam de fazer alterações nos espaços interiores; é a ela que Sandra, a actriz "simpática, sem vaidades e agradável", define Estrela, recorre para trocar algumas confidências.
A actriz, que faz aqui a sua estreia cinematográfica depois de uma década de trabalho artístico no teatro, na dança e no circo, já conhece Estrela há vários meses. No período de preparação para o filme, durante o qual leu a biografia de Vítor Pavão dos Santos e diversos artigos da imprensa nacional e internacional, viu o documentário de Bruno de Almeida e visionou entrevistas para televisão (nunca exibidas), foi Estrela quem lhe ensinou como é que a fadista se ria. "Eu precisava de saber isso, se era um riso do diafragma ou não." Sandra ensaiou vários risos diante de Estrela, até alcançar o mais semelhante. Mas ontem de manhã não vimos Amália rir. Nem cantar (a dobragem é feita com a própria voz de Amália, recorrendo à remasterização do som de gravações antigas).
A chávena no sítio certo
São quase 11h15 e estamos em 1968. Sandra está sentada junto a uma mesinha encostada às escadas que dão acesso ao segundo piso da casa. Um candeeiro pousado na mesa ilumina o seu rosto fechado - parece perturbada, escorrega da cadeira, pega no auscultador do telefone. Ensaia-se o primeiro take. Antes de entrar em acção, Sandra pede "um segundo de silêncio" para se concentrar. Mas menos de cinco segundos depois desvia o olhar para a equipa de realização e, num tom irritado mas contido, diz: "Não houve nenhum momento aqui. Quando peço silêncio, preciso mesmo de silêncio."
Dentro da casa só se ouve o eco dos carros que circulam na Rua de São Bento. Em três takes (Amália diz a César que aceita o seu pedido de casamento, "César..., eu aceito"), a cena fica pronta - ouve-se o "muito bem" de Carlos Coelho da Silva vindo da régie improvisada na cozinha.
Mais tarde, já sem o semblante sombrio, Sandra Barata Belo explica que, ao fim de quase dois meses e meio de um trabalho diário e extenuante, continua a não ser fácil interpretar uma mulher "com um leque muito diferente de sentimentos". "Ela era muito intensa. Vivia todas as emoções com muita intensidade. E para mim os momentos mais complicados são aqueles em que tenho de interpretar sentimentos de uma mulher de 44 anos, ou de 54, ou de 64", afirma.
Antes do almoço, Carlos Coelho da Silva decide ainda filmar mais uma cena. Desta vez, na sala de jantar. Sandra tenta equilibrar-se em cima de uma cadeira, junto à mesa, e pede para lhe retocarem o bâton. O momento é só aparentemente simples. Porque exige a precisão de deixar cair, num sítio demarcado, uma chávena de chá. Sandra pede instruções ao realizador sobre como pousar o bule, que segura na outra mão, e olha depois atentamente para o vidro inquebrável que tem quase aos seus pés e sobre o qual tem de cair a chávena, de forma a surtir o efeito sonoro da porcelana a desfazer-se em cacos. O primeiro take é rápido - Sandra ensaia um desmaio, inclinando-se para trás. No segundo take, tremem-lhe as mãos e tudo acontece na perfeição. Não é necessário repetir a cena.
A equipa que está na sala de jantar desmobiliza-se e chegam mais pessoas (entre actores e técnicos, o filme reclama o trabalho diário de 55 pessoas) para carregar todo o material de filmagens para o segundo andar da casa, onde se encontram os quartos.
Aqueles que ficam agora disponíveis preparam-se para o almoço - um self-service instalado numa antiga loja de antiguidades, no rés-do-chão da casa contígua à casa-museu. Há várias mesas dispostas no velho antiquário. O almoço é o momento de descanso por excelência para a equipa. Mas nem todos "desligam" do filme. Sandra tem o guião na mão e aproveita a hora da refeição para reler as cenas que vai filmar durante a tarde.
Alheios à polémica
Carlos Coelho da Silva, autor do sucesso de bilheteira O Crime do Padre Amaro, parece mais descontraído. Entre a verificação dos detalhes e algumas instruções, ainda tem tempo para entrevistas. A montagem de Amália, que terá uma duração próxima de 120 minutos, está já a ser feita, pelo que não é de admirar que a estreia seja Dezembro próximo.
Também em fase de composição está a série que será exibida pela RTP em 2009, ano em que se completam dez anos sobre a morte de Amália Rodrigues. O realizador acredita que Amália poderá ultrapassar o êxito de O Crime do Padre Amaro. Porque "o nome dela suscita muito interesse"; porque o filme revela "histórias que nunca foram contadas"; e porque "ela pode ser vista como um exemplo para as novas gerações".
Sobre a polémica em torno do filme - os herdeiros de Amália reagiram mal à forma como é caracterizada a relação da fadista com a sua irmã, Celeste Rodrigues - Carlos pouco tem para dizer. A produção fez todos os esforços para resguardar as equipas artística e técnica de qualquer elemento perturbador. E parece ter conseguido.

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