Algarve Os novos produtores de sal saíram do laboratório

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Cientistas tomaram conta das salinas abandonadas na costa algarvia, mas onde as técnicas continuam a ser as tradicionais NUNO FERREIRA SANTOS

São doutores, mas trabalham com métodos tradicionais. Da ria Formosa, ameaçada pela expansão urbanística, extrai-se mais de 90 por cento do sal marinho tradicional português. As salinas abandonadas voltaram a fazer dinheiro. Por Idálio Revez

a Que fazer com uma salina? Obviamente, sal - de preferência, flor de sal. Nem sempre assim aconteceu. "Tens de nos ensinar a fazer sal, Maximino!", foi o desafio que quatro investigadores lançaram ao velho guardião de uma salina abandonada em Olhão. "Vocês estão loucos", respondeu o homem. "O quê, querem mesmo voltar a puxar o sal à mão?"

Hoje, decorrida uma década, doutores e marnoto (designação tradicional do operário) riem, quando recordam esse momento decisivo para a viragem de uma actividade que estava em decadência. Quase ao mesmo tempo, em Tavira, Andrea Siebert, bióloga, preparava-se para lançar no mercado alemão a flor do sal. Eles fazem parte da equipa de doutores que impulsionou o Algarve a produzir mais de 90 por cento da flor de sal e sal marinho tradicional que se produz em Portugal.

João Navalho saiu do laboratório depois de ter protagonizado uma experiência inédita - durante cinco anos a produzir microalgas em salinas, para cosmética e medicina - e foi trabalhar para o sapal, suportando temperaturas na casa dos 30 graus. Maximino não esconde a satisfação de ter sido o "mestre" do doutor. "O João tinha jeito", diz, referindo-se ao patrão. Agora, quando se cruzam percebe-se a cumplicidade.

Sérgio Serhiy, ucraniano, a trabalhar nas salinas em Vale Caranguejo, Tavira, faz parte da legião de imigrantes que veio para Portugal. Não estava habituado a suportar temperaturas tão elevadas como as do Verão algarvio. "O sol é que é pior, queima a pele e a alma da gente", diz. O encarregado, António Gonçalves, lembra que no ano passado os homens "bebiam mais de cinco litros de água por dia, quando o calor bateu forte". Só esta semana é que as temperaturas começaram a atingir valores normais para a época, e a faina ainda é suave.

Na primeira fase do processo de fabrico, a água sai da ria Formosa e entra nos tanques evaporadores. Lá para o fim do mês, o manto de cristais começa a formar-se - os mais finos, que flutuam à superfície, são designados por flor de sal, e têm de ser recolhidos todos os dias.

Segundo os dados da Direcção-Geral das Pescas, referentes a 2008, é do Algarve que sai mais de 90 por cento do "tempero" que aperfeiçoa o paladar dos pratos confeccionados pelos grandes chefs. Portugal produz 69.244 mil toneladas de sal marinho, dos quais 64.486 toneladas são provenientes do Algarve. No que diz respeito à flor de sal, a região contribui com 140 toneladas, numa produção nacional que atinge as 145 toneladas.

Democratizar o produto

O grupo de quatro investigadores que formou a Necton, liderada por João Navalho, não estava a brincar quando pediram a Maximino Guerreiro para lhes ensinar a fazer sal marinho pelo método tradicional. "Então, agora que já se trabalha com máquinas, querem regressar aos carrinhos de mão?", perguntou o marnoto. Não dava para entender, mas a verdade é que nasceu assim a maior empresa de produção de flor de sal em Portugal.

Desta salina, com a área de 23 hectares, em Olhão, produz-se o sal que vai à mão dos chefs mais famosos, desde a Suíça até à Alemanha, passando pela Dinamarca. Porém, João Navalho evita usar a palavra gourmet. "Temos um objectivo traçado desde há anos - tornar o produto democrático. Achamos que o sal marinho tradicional e a flor de sal devem ser suficientemente baratos para toda a pessoa o poder consumir". Qual a diferença? "A diferença está na utilização - o sal marinho tem cristais grossos, a flor tem os cristais finos, separam-se com os dedos". Já quando se fala em "sal comum", sublinha, a diferença é abissal: "Dois ovos iguais - um temperado com sal refinado e o outro com sal tradicional - vão parecer de galinhas diferentes".

Andrea Siebert juntou-se a um outro sócio alemão "com alma algarvia", que vive na região há mais de três décadas, e fundou a marca Marisol, tendo como principal objectivo atingir o mercado germânico. Começou a actividade em Tavira, no fim dos anos de 1990. "Não percebia por que é que o melhor da salina - a flor do sal - não era aproveitado", salienta. Maximino Guerreiro tem uma explicação simples: "Não davam valor a isso. Agora chamam-lhe flor de sal, mas sempre conheci por coalho". O nome, explica, deriva da semelhança com a nata do leite, na fase de formação do queijo.

O conceito foi criado pelos franceses há muito tempo, pelo facto de existir uma grande diferença, naquele país, na tonalidade da cor entre a primeira camada de formação dos cristais à superfície, brancos, e os mais profundos, cinzentos. Devido às condições climáticas, diz João Navalho, "Portugal, um país de sol, sempre teve bom sal, e não valorizava o que tinha de melhor".

A legislação que protege a produção portuguesa é de Janeiro de 2008 - fazendo a diferença entre sal marinho tradicional e flor de sal. "Somos o único país na Europa que tem esta legislação", lembra João Navalho. "Nem a França protegeu, e assim sendo é muito fácil fazer asneira", conclui. Andrea Siebert vai mais longe: "O Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) deveria proteger as salinas da especulação imobiliária - isto é muito importante para o Algarve", observa.

Não será por acaso que a extracção do sal se mantém na zona do Sotavento, a metade do Algarve menos desenvolvida do ponto de vista turístico. A maior salina do país encontra-se no Cerro do Bufo, em Castro Marim. Rui Semião, em Tavira, é outro dos produtores de sal pelo método tradicional, com larga experiência, que reivindica para si o estatuto de "pioneiro" na extracção da flor de sal.

À conquista da América

O mercado está em franco crescimento. Mas há quem se mostre céptico. O empresário Fernando Lázaro, um histórico salinicultor em Tavira, observa: "A flor do sal surgiu como moda há pouco mais de meia dúzia de anos - sempre existiu, mas não se aproveitava porque todo o processo de extracção tem de ser manual, e atira os custos para valores muito elevados".

Apesar das reservas que coloca nos projectos que estão a ser desenvolvidos por universitários, cedeu uma parte da sua salina, em Vale Caranguejo, cerca de dez hectares, à produção de sal marinho tradicional e flor de sal - produto comercializado pela Marisol - uma empresa que só se dedica à exportação, gerida pela bióloga Andrea Siebert. O controlo de produção e a gestão ambiental é feito directamente por esta bióloga, que se diz "apaixonada" pelo Algarve.

A criação do selo de Denominação de Origem Protegida (DOP) é o passo que falta dar: "A DOP é muito valorizada nos EUA, é muito importante que se criem as condições para que possa ser atribuída" aquela certificação, sublinha, adiantando que este mercado será o próximo passo a dar, depois de já estar presente em boa parte dos supermercados europeus.

Sérgio Serhiy, de 34 anos, veste um pólo de manga curta, mas daqui por uns dias, muda de vestuário. Ao fim de oito anos a trabalhar nesta actividade, diz que sabe bem "o que custa o sol". A bióloga alemã elogia o trabalho deste e dos outros colaboradores: "São muito dedicados, portugueses e imigrantes, e gostam de ensinar a quem se mostre interessado em aprender. "A rapaziada do Leste é excepcional, basta dizer uma vez como se faz, aprende logo", diz Maximino. Quanto ganha? "Não sei, trabalha-se à hora." Deixa subentendido que não será grande ordenado. Não há espaço para grandes conversas.

De momento, cinco homens e uma mulher formam a equipa em Vale Caranguejo. Manuela desempenha o mesmo serviço que os colegas, mas não mostra interesse em falar. "Até há um ano trabalhava no campo para o patrão, agora estou aqui [nas salinas]". Usa óculos escuros para se proteger do sol, e a grossa aliança dourada sobressai nos dedos de mãos fortes. António Gonçalves pede-lhe ajuda para carregar o motor que bombeia a água dos tanques, a resposta dela é imediata.

irevez@publico.pt

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