Ainda não podemos conversar com uma máquina

O mundo usa computadores todos os dias, para as mais complexas tarefas. Mas a inteligência artificial está longe de servir
para tudo. Há um prémio para o cientista que puser um computador a conversar. Este ano, mais uma vez, ninguém conseguiu ganhá-lo

a - Vamos falar de qualquer coisa. Eu gosto de música ao vivo.- Fui este fim-de-semana a um concerto...
- É sempre difícil arranjar bilhetes para os melhores concertos.
- É verdade. Tive de esperar algum tempo na fila.
- A sério? Eu fico chateado sempre que tenho de esperar numa fila.
- Qual foi o último concerto a que foste?
- Qual foi o último concerto a que fui? Fico fascinado com este tipo de coisas.
- Ainda bem... Qual é o teu músico preferido?
- O meu músico preferido? Não sei quem escolher. Qual é o teu músico preferido?
- Não tenho. Vamos mudar de assunto?
- Vamos falar de outra coisa. O que fazes na vida?
- Sou jornalista.

Este diálogo é a tradução de uma conversa em inglês que o P2 teve com o Ultra Hal, um dos programas de computador que no último domingo foram finalistas do Prémio Loebner, um concurso anual que promove o desenvolvimento de inteligência artificial. Como é habitual (o concurso tem 17 anos), nenhum computador conseguiu ter uma conversa suficientemente convincente para arrecadar o primeiro prémio.O Prémio Loebner baseia-se no Teste de Turing, inventado em 1950 pelo matemático britânico Alan Turing. A ideia é que uma pessoa mantenha, por escrito, conversas paralelas com duas entidades. Uma delas é um humano, a outra é uma máquina. No final da conversa, se a pessoa não conseguir determinar qual dos dois interlocutores é a máquina, esta passou no teste.
No concurso, inventado pelo controverso empresário nova-iorquino Hugh Loebner, as conversas duram cinco minutos e podem ser sobre qualquer assunto. Há um prémio de cerca de 1500 euros para o melhor concorrente de cada ano (mesmo que a máquina não passe o teste escrito) e outro de 2200 para quando for capaz de passá-lo - um feito que ainda nenhum programa de computador conseguiu. O primeiro prémio é de 73 mil euros e uma medalha de ouro maciço. "Não é banhada a ouro, como as dos Jogos Olímpicos", faz questão de sublinhar Loebner, cuja efígie aparece numa das faces. O galardão está reservado a uma máquina que se faça passar por um humano numa conversa que não seja apenas escrita, mas que integre também comunicação sonora e visual.
Quando o primeiro prémio for entregue, o concurso será extinto. Mas esta façanha não está para breve, admite o organizador ao P2. "Ainda nem sequer estamos perto de passar no teste escrito. Em 1950, Turing estimou que seriam precisos 100 anos para que uma máquina fosse bem sucedida. Mantenho essa estimativa. Precisamos de mais 40 ou 50 anos."
Críticas e controvérsia
O Prémio Loebner tem fortes críticos entre os estudiosos da inteligência artificial. Os detractores dizem que o concurso é mal organizado, as regras pouco claras e que acaba por ser contraproducente para o avanço científico.
Loebner, que tem um doutoramento em demografia e ganha a vida a produzir estruturas metálicas usadas pela polícia para controlar multidões, explica que o problema não é o prémio, mas o facto de ele próprio ser uma figura "seguramente controversa" (entre outras coisas, por ter admitido publicamente recorrer a prostitutas porque as mulheres novas pelas quais se sente atraído já não querem ter relações com ele).
"Nunca nenhum participante se queixou dos resultados. Nunca houve uma queixa de favoritismo", frisa o empresário. "A minha natureza pessoal faz com que o prémio esteja revestido de controvérsia, devidos àqueles cujo intelecto não é suficiente para distinguir uma coisa da outra."
O próprio Teste de Turing, contudo, não é consensual. Kevin Warwick é professor de cibernética na Universidade de Reading, em Inglaterra, que este ano acolheu o evento (já houve edições realizadas no apartamento de Loebner). Warwick reconhece que o teste tem em consideração "apenas um aspecto da inteligência de uma máquina" e que "há muitas facetas da inteligência que não abrange". No entanto, o cientista (que se tornou o primeiro ciborgue do mundo ao implantar um chip no braço para interagir com computadores e robôs) nota que "será um grande feito" quando alguma máquina passar o teste.
Na mesma linha, Luís Botelho, professor e investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa, aponta limitações no teste concebido pelo matemático britânico: "O teste, além de estar dirigido apenas a um subconjunto daquilo que considero inteligência, não consegue determinar o grau em que essa inteligência se manifestou. Algumas das propriedades ou características da inteligência que não são avaliadas pelo teste de Turing incluem a consciência, a possibilidade de desenvolver significados para os símbolos usados e a inteligência relativa à interacção com o ambiente." Uma crítica frequente ao teste é precisamente o facto de as máquinas poderem ser programadas para conversar, mas de forma automatizada, sem perceberem o significado daquilo que dizem.
Repensar a pesquisa
Luís Botelho observa que a maioria dos investigadores tem direccionado esforços para desenvolver máquinas com uma inteligência diferente da necessária para pôr humanos e computadores a conversar. "Hoje em dia, as equipas de investigação em inteligência artificial estão mais interessadas no comportamento social, na inteligência dos bandos [existente em grupos de animais, como enxames e alcateias] e na adaptação ao meio, por exemplo. Há menos investimento no tipo de inteligência que seria necessária para ultrapassar o teste de Turing."
Para Kevin Warwick, a direcção que a pesquisa académica tem seguido é um problema. O grande desafio na área, considera, é fazer com que os cientistas repensem aquilo que estão a fazer e deixem de tentar imitar nas máquinas as formas de pensamento humano. "As máquinas tendem a fazer melhor as coisas à maneira delas. Por exemplo, os aviões não voam como os pássaros, nem os construímos para isso. Da mesma forma, as máquinas não podem pensar como os humanos."

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