A menina que amou demais

Foto
A matrícula do carro em que foi encontrada morta

Há quase cinco anos, Joana e David cruzaram-se por acaso na rua, sorriram e amaram-se logo. Há uma semana, ela apareceu morta na mala de um carro, na Barragem de Fagilde. Primeiro ele disse que tinham sido raptados, depois admitiu que a matara. Hoje, dia da violência contra as mulheres, contamos a primeira parte de uma história de amor obsessivo. Por Paulo Moura (texto) e Adriano Miranda (fotos)

Joana andava já no Ciclo e ainda acreditava no Pai Natal. O irmão mais novo dizia-lhe: "Olha ali o papel de embrulho em cima do armário. Não vês que é a mãe que compra os presentes?" Mas Joana não olhava. David, o namorado que viria a ter mais tarde, também acreditava em tudo o que lhe diziam. Chegou a andar muito entusiasmado com a ideia de ir para a Madeira trabalhar numa fábrica de encurvar bananas. "Não sabe, sogrinha? Elas nascem direitas e depois é preciso dar-lhes aquela forma", explicava ele a Paula, a mãe de Joana. "Ganham-se fortunas nesse negócio das bananas."

Eram os dois assim, uns totós. Mas inteligentes. Ele, 22 anos, a tirar Engenharia do Ambiente, brilhava em todos os trabalhos que fazia, ela, 20, era excelente aluna e tinha um talento especial para a escrita. Estava no 1.º ano do Curso de Comunicação Social, em Viseu. Quando via a Manuela Moura Guedes na televisão voltava-se para Paula: "Mãezinha, um dia vais ouvir-me dizer, ali naquele ecrã, "Boa noite, eu sou a Joana Fulgêncio"."

Há quase cinco anos, Joana e David cruzaram-se por acaso na rua, sorriram e amaram-se logo. Pouco depois começaram a namorar: no dia 3 de Julho de 2005. O número 03-07-05 tornou-se mágico. Está gravado em capas de cadernos, em fotografias, em quadros, em t-shirts, em sapatilhas. Era com ele que Joana apostava no Euromilhões. Ganhou um valor de símbolo, como todos os objectos que de alguma forma se relacionaram com a sua história de amor. Estão todos no "baú", um grande cesto de verga guardado no quarto de Joana. Postais, cartas, bilhetes que escreveram um ao outro estão no baú. Cadernos com poemas, outros com transcrições completas de SMS, bilhetes de autocarro, de espectáculos, contas de restaurantes, de hotéis de umas certas férias estão no baú. Peças de lingerie que David ofereceu a Joana, ou que foram usadas numa certa noite de núpcias estão no baú. Velas, t-shirts com palavras de amor, jeans usadas, ténis rotos, tickets de portagens, pacotes de açúcar, um pão que sobrou de um certo piquenique, um guardanapo a que David limpou a boca, num jantar romântico, estão no baú.

Paixão e sofrimento

Iam guardando tudo ali, como um património, um relicário. Algo vivo e totémico que, como tal, se transformava consoante a própria realidade ia mudando. "Porque é que o baú se limita a guardar farrapos velhos e não armazena memórias?", escreveu Joana numa das cartas que não enviou a David, em Abril deste ano, quando estavam temporariamente zangados. "Sabes... o vento que em horas más consigo arrasta folhas sem rumo, também ele se encarregará de trazer o que a cada um de nós pertence."

As zangas sempre fizeram parte da relação, mas nunca duraram muito. Durante elas, a paixão era ainda maior. Tão grande como o sofrimento. E como a felicidade da reconciliação. Eram ciclos que dominavam completamente as vidas de ambos, e ficavam gravados por todo o lado. Nas cartas, nas mensagens, nos diários. "A instabilidade foi narrada em vários capítulos, um conto cujo fim permanece tão dissolvido quanto as pegadas que um dia deixámos decalcadas na areia", escreveu Joana, em Março de 2009.

E depois, ela, cujo nome se confundia com as alcunhas carinhosas que ele lhe atribuía (couve, manga, abelha, árvore): "Couve feliz. Couve feliz. Couve feliz. Couve feliiiiz! Por há muito tempo não estar assim... Quero e desejo tanto que isto tenha vindo para ficar."

São centenas de páginas de diários, de cartas, de cadernos. "Digam o que disserem, façam o que fizerem, mudes o que mudares, eu vou estar sempre aqui. Aqui para te fazer sentir o que sofri. Aqui para lutar por ti. Aqui para ficar contigo até ao fim." Toda a história está escrita, do princípio ao fim, com sangue. "Contigo aprendi a amar. É ao teu lado o meu lugar. Além de tudo o que significas, és tudo o que não suporto perder. Um dia que duvides das minhas palavras, guarda para ti esse sentimento, que só a ti pertence. Não me largues de novo." Uma história de amor total. "Tudo mudou desde a entrada dele na minha vida. Porquê? Porque o futuro é ele. Foi o passado, está no presente, está nos sonhos a realizar. Não me interessa o que possam pensar. Interessa-me apenas o meu "eu" e ele. Só nós! É a ele que quero dedicar tudo. É com ele que quero acabar. É com ele que quero dormir na praia, ver jogos de futebol, ir a concertos, fazer compras. É com ele que sempre sonhei ver o pôr-do-sol. É com ele. É com ele. É com ele." É uma história cheia de repetições, de insistências. Tudo começa e acaba com "Amo-te... Amo-te meu amor... O maior amor do mundo... Amo-te como nunca entenderás... Amo-te para sempre, como nunca ninguém julgou ser possível amar... Um dia serão inventadas as palavras para descrever um amor como este... Hoje, ainda é inexplicável."

Os trabalhos da faculdade de Joana, artigos escritos para o jornal da escola, poemas incluídos num trabalho de Português, o tema é sempre o mesmo: o David e o amor dela por ele. No fim de um trabalho do 10.º ano que começava com "encontrei o amor e entrei no caminho dos sonhos", um professor escreveu: "Poesia sentida e sofrida. Vê-se que é uma poesia torrencial, que saiu da tua alma."

Paula, a mãe de Joana, nunca achou normal aquela relação. "Não era um comportamento próprio de quem namora há quase cinco anos. Estavam sempre tão apaixonados, tão obcecados um pelo outro que parecia que tinham acabado de se conhecer." O quarto de Joana, que tem no papel de parede e na colcha da cama o mesmo padrão de listas brancas e pretas, como uma pantera que não existe, é um santuário. Há fotografias de Joana e David nas paredes, há t-shirts com a fotografia deles gravada, idêntica às que Joana imprimiu nas capas dos cadernos escolares, nos abat-jours e nas jarras de flores.

Vida planeada

"A Joana tinha a vida toda planeada. Daqui a dois anos comprar uma casa no Porto, casar com o David e ter dois filhos, chamados Mariana e Bernardo." Joana conheceu David aos 15 anos, nunca teve outro namorado nem seria capaz, diz Paula. "Eu sempre achei que se um dia eles se separassem ela ia para freira."

Apesar disso, David era ciumento. Não deixou a namorada participar nas praxes académicas, afastava-a de amigos e amigas, criticava-a por usar minissaia, e até de perder peso, porque poderia atrair outros homens. Paula apanhou várias vezes Joana a comer Nestum, a mando de David.

Este, apesar de possessivo, teve várias escapadelas, até mesmo relações com outras raparigas. Mas voltava sempre. Joana ficava de novo feliz, e Paula também. Fazia tudo para agradar à filha. Quando ela fez 16 anos, zangou-se porque apanhou um SMS de David que dizia "... agora já tens idade para dar umas quecas". Mas depois aceitou tudo. Deixava a filha, às sextas-feiras, ir dormir a casa de David. E quando ela fez 16 anos ofereceu-lhe uma noite de lua-de-mel no Hotel Ónix. "A melhor forma que encontrei para te proporcionar uma data inesquecível junto de quem tu tanto amas...", escreveu ela.

Era normal mãe e filha trocarem bilhetes e mensagens carinhosas. As de Joana estão carregadas de amor, como sempre. Ela era assim, Paula já o sabia. Por isso apoiava o namoro com David. Achava que ele era um miúdo "que não tinha maneiras", e que se vestia de forma demasiado esquisita, com as calças ao fundo do rabo, cabelo pintado e maquilhagem na cara. "Mas a maluqueira dele até dava alegria à casa. Eu via-o como a um filho." Um dia, Paula sugeriu à filha: "Conheço um sítio muito bonito para ires com o David." E indicou a barragem de Fagilde.

Quando, há uma semana, a filha desapareceu, à noite, dias depois de uma violenta discussão com David, em que ela quis terminar a relação, instintivamente foi procurá-la lá. O Peujeot 306 com que tinham saído, para jantar fora, no centro comercial Palácio do Gelo, estava despenhado num socalco junto ao rio, com o cadáver de Joana na mala, o crânio desfeito e metido num saco de plástico. David, que apareceu ferido, num bar de Fagilde, contou à Polícia uma história de ameaças, carjacking e sequestro. Mas depois confessou que foi ele que a matou com um objecto metálico. Numa das últimas páginas do diário, Joana tinha escrito: "Levarei comigo e cá dentro para sempre o homem que me mudou, as acções que me transformaram e enriqueceram, tudo o que se evaporou num estalar de dedos. Quer queiras ou não, acredites ou não, levo eternamente o teu nome... David."

Sugerir correcção