A maior tragédia da exploração polar continua por explicar

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Dois navios, 129 homens, toda uma expedição varrida da superfície da Terra numa sucessão de acontecimentos que, ainda hoje, 160 anos depois, ninguém consegue explicar. Foi a maior tragédia da história da exploração das zonas polares. Mas quase não se fala dela

Em 1845, dois navios britânicos, transportando 129 homens e equipados com a mais moderna tecnologia da época, lançaram-se na missão de descobrir a Passagem Noroeste, a ligação por via marítima entre o Atlântico e o Pacífico, contornando o continente americano pelos mares boreais. Nunca completaram a rota e ainda hoje, 160 anos e incontáveis expedições de busca depois, o seu destino final mantém-se um mistério. Foi a maior tragédia da história da exploração polar.

A missão assumida pelo comandante britânico Sir John Franklin mobilizou os melhores recursos da nação. Não era a primeira a buscar a passagem que poderia abrir uma nova rota ao comércio mundial e já estavam identificados os riscos de avançar por águas não cartografadas numa zona remota, gelada e praticamente estéril. Recrutaram-se os melhores marinheiros, equiparam-se os dois navios, o HMS Erebus e o HMS Terror, com protecções em aço, caldeiras a vapor e despensas recheadas com provisões para três anos.

O orgulho britânico saía novamente para o mar em busca de novas fronteiras para a humanidade. Mas, tal como veio a suceder anos mais tarde, em 1912, com a fatídica expedição de Scott e dos seus quatro companheiros ao Pólo Sul, a história terminou em tragédia. Com proporções totalmente diferentes: a equipa de Franklin contava 129 homens. De uma maneira ou de outra, todos pereceram. E nunca se encontraram os barcos.

Presos no gelo

Um rosário de pequenas descobertas permite, apesar de tudo, obter algumas pistas sobre o que sucedeu aos marinheiros britânicos nas inóspitas paragens do extremo Norte da América, esse arquipélago de ilhas canadianas que ora estão isoladas, ora se encaixam em desertos de gelo.

A última tentativa de varrer o denso nevoeiro que ainda encobre a verdade sobre a expedição de 1845 terminou há um mês. Sem resultados palpáveis. Por isso, o que se sabe continua a depender de pequenas peças de um complicado puzzle. Peças que apontam para um cocktail fatal de erros humanos, meteorologia inclemente, doenças, hesitações, canibalismo.

O que se sabe é que os navios britânicos zarparam de Inglaterra a 19 de Maio de 1845 e se dirigiram para a costa oeste da Gronelândia, de onde depois rumaram às ilhas do Canadá, já na rota da tão sonhada Passagem Noroeste. Passaram o Inverno na ilha de Beechey e no ano seguinte rumaram a sul buscando um caminho aberto até ao Pacífico. Mas em Setembro de 1846 o Erebus e o Terror ficaram presos no gelo. Nunca mais voltaram a navegar.

Os britânicos terão passado esse Inverno na ilha do Rei Guilherme e por lá foram ficando, talvez à espera que o gelo libertasse os navios. Uma nota deixada num monte de pedras em 1847 e assinada pelo comandante garantia que estava "tudo bem" - apenas duas semanas depois, Franklin morreu. Sabemo-lo porque os seus oficiais voltaram ao local e actualizaram a mensagem: a 25 de Abril de 1848, relataram a morte do comandante, os dois Invernos passados naquele local e a decisão de, no dia seguinte, encetarem a viagem a pé para tentarem chegar ao Rio Negro, no território continental do Canadá.

Por esta altura, nove oficiais e 15 marinheiros já tinham morrido. Os restantes foram sucumbindo ao longo da penosa viagem ou já após a chegada à costa norte do continente, ainda a centenas de quilómetros de qualquer ajuda humana. O tamanho do grupo - dezenas e dezenas de pessoas para alimentar numa área onde é quase impossível encontrar meios de subsistência -, e o orgulho dos britânicos - que se recusaram a aprender os truques de sobrevivência do povo inuit, com o qual foram esporadicamente contactando - são apontados como causas maiores do fracasso desta tentativa desesperada. Mas algumas descobertas feitas depois lançam outras pistas.

Canibalismo

Doenças como a pneumonia, a tuberculose e o escorbuto dizimaram a tripulação dos navios britânicos. Mas por trás da vulnerabilidade a estas doenças pode estar outro factor: o envenenamento por chumbo. O sistema de isolamento das latas de conservas punha os alimentos em contacto directo com o chumbo, uma substância que se acumula no organismo e produz uma paleta de disfunções fisiológicas e mentais - o que também poderia explicar o clima geral de depressão que se vivia a bordo.

Mas as conservas, por si só, não explicavam as altas concentrações de chumbo detectadas nos dois esqueletos e três cadáveres bem conservados que foram encontrados na ilha do Rei Guilherme. A verdadeira fonte da contaminação deverá ter sido a canalização utilizada para derreter gelo nas caldeiras dos navios e fornecer água doce durante a expedição.

Desesperados, os marinheiros ingleses terão recorrido ao canibalismo nalguma fase do seu calvário. A hipótese foi levantada logo no século XIX e há vestígios disso em ossos encontrados por expedições recentes. Relatos recolhidos juntos dos inuit permitem pensar que alguns dos sobreviventes se arrastaram pela região durante mais três ou quatro anos. Depois, desapareceram completamente. "É como se a Apollo 13 tivesse dado a volta à Lua e nunca mais voltasse", desabafa um investigador ouvido pela BBC online.

Mais de um século e meio depois da tragédia, o Canadá continua à procura dos navios e de explicações para o destino dos seus tripulantes. É o único sítio histórico do país que não tem uma localização no mapa... E se os meios do século XXI não se mostram capazes de resolver o mistério, facilmente se percebe como foram infrutíferas as sucessivas missões de salvamento lançadas ainda no século XIX. Como os navios tinham mantimentos para três anos, só passado esse período as autoridades assumiram que havia razões para lançar buscas. Foi tudo em vão.

Entre 1903 e 1906, o norueguês Roald Amundsen (o mesmo que bateria depois Scott na corrida ao Pólo Sul) descobriu finalmente uma passagem a norte entre o Atlântico e o Pacífico. Ironicamente, as muitas missões de busca lançadas para encontrar o Erebus e o Terror acabaram por contribuir bem mais para o conhecimento da zona do que a expedição comandada por Franklin. E, mais irónico ainda, o aquecimento global das últimas décadas provocado pela queima de combustíveis fósseis (como o carvão que alimentava as fornalhas dos dois navios) facilitou drasticamente a navegação através da Passagem Noroeste...

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