A história sem princípio nem fim da obra de José de Guimarães

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VASCO CELIO

A partir das colecções reunidas por José de Guimarães durante meio século, Nuno Faria concebeu uma exposição que altera completamente o sentido linear da História aprendida nos manuais.

Se quiséssemos encontrar em Para além da história um objecto que condensasse o seu conceito, teríamos de escolher um anel disposto bem longe do início da visita. Trata-se de um grande aro feito em tripa de porco seca através do qual se tem de passar para aceder a uma das últimas salas do primeiro piso do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), na cidade que ainda é, por mais uns dias, Capital Europeia da Cultura.

O anel de Catarina de f. marquespenteado, brasileiro que tem trabalhado questões ligadas à identidade, integra a exposição inaugural da instituição que albergará as colecções do artista José de Guimarães. Actualizando um pormenor da lenda de Santa Catarina de Siena, traz o que inicialmente seria uma relíquia sagrada para o plano do profano. E obrigando-nos a atravessar este símbolo fortíssimo de uma ligação indissolúvel, conduz-nos a um patamar onde a História, a antropologia, a lenda e a actualidade se contaminam mutuamente.

Nuno Faria, o comissário de Para além da história, confessa que o seu intuito, quando concebeu a montagem, foi o de contrariar o sentido da história como narrativa linear que se processa sem sobressaltos deste a Antiguidade até, supomos nós todos, ao futuro mais longínquo. Ao considerar as colecções pessoais do artista que dá o nome ao centro e a sua obra, reflectiu sobre como todos os objectos interagem com a produção artística de José de Guimarães. Mesmo que essa não seja uma acção totalmente consciente, é notável como o artista capta a essência das máscaras africanas, da arte popular mexicana ou dos bronzes chineses, artefactos com séculos de idade, nas diferentes fases do seu trabalho e em séries específicas que desenvolveu em momentos particulares da sua carreira. Para José de Guimarães, artista do século XX, a história e os objectos que os homens foram inventando para se protegerem, para agradecerem, para se divertirem ou para usarem, quando não apenas porque lhes traziam uma ideia efémera de beleza, não deixam de ter sentido por perderem o contexto temporal ou geográfico. Apenas se transformam.

Consequentemente, Para além da história, que o comissário nota ter colhido inspiração de outras exposições - Les Musées sont des mondes, no Louvre, Les Maîtres du Désordre, no museu do Quai Branly, e a montagem original da Sala de Pintura do Museu de Arte de São Paulo, projectada por Lina Bo Bardi -, foi dividida em diferentes núcleos (por vezes de delimitação vaga, mas mesmo isso poderá ser consequência do conceito adoptado,) com títulos que vão desde A origem até Festa, passando por um Núcleo Mole e por um outro, o mais surpreendente de todos, Emergência/Aliança. Em todos eles se marca a vontade de imbricação entre obras, épocas, estilos, classes, ordens, gerações. Foi de facto escolhido um elenco de artistas diversificado - em que figuram, além do já citado f. marquespenteado (que aqui efectuou uma residência artística), Filipa César, Mattia Denisse, Hugo Canoilas ou a dupla José Maria Gusmão e Pedro Paiva, entre outros - para interagir com a obra de Guimarães e o acervo do CIAJG. O resultado é com frequência surpreendente, mas com uma constante: a presença daquilo a que poderíamos chamar uma agudíssima consciência histórica.

Como e quando aparece

É uma constante que também existiu sempre na obra de José de Guimarães. A visita começa com um Alfabeto Africano, de formas desenhadas, que o artista criou nos anos 70. Guimarães é um autodidacta, embora, como sublinha Nuno Faria, tenha integrado o grupo de artistas que fez a sua aproximação à arte contemporânea pela via da gravura, como Fernando Calhau e Julião Sarmento, por exemplo. Um pouco antes, a cumprir serviço militar em África, tinha realizado uma exposição em Luanda que é reproduzida numa das salas iniciais da montagem: sobre telas de juta, caixotes serigrafados e outros suportes nada convencionais anunciavam já a linguagem própria que o artista desenvolveria nos anos subsequentes.

A esta introdução seguem-se as salas de arte africana: dezenas e dezenas de peças, entre máscaras, feitiços e diversos objectos mágicos que atestam o cuidado na pesquisa e na aquisição de cada obra. Faria assinala, aliás, que Guimarães sabe sempre o que pretende comprar, e que todas as peças da sua colecção possuem certificado de autenticidade. Estas são salas surpreendentes, e as suas colecções com poucos paralelos, decerto, em território português. Um gabinete de desenho, que se lhes segue imediatamente, estabelece leituras múltiplas com as peças antropológicas e precede-lhes mesmo o significado, como é o caso do paralelismo estabelecido com os pequeníssimos formatos assinados pelo poeta Teixeira de Pascoaes.

Emergência, o núcleo seguinte, é também um dos mais espectaculares, e aquele onde o curador criou a montagem mais ousada. Placas de jade e vasos de bronze chineses, terracotas pré-colombianas, ex-votos, santas vindas dos museus de arte sacra da região, têxteis da Mesoamérica e imagens religiosas vindas do Extremo Oriente provocam a surpresa e deixam entrever o processo criativo de José de Guimarães. A emergência de que o nome do núcleo fala, mais do que urgência, significa aquilo que emerge - como numa escavação arqueológica, salienta o comissário. É de formas primordiais e do nascer de uma figura na obra de um artista - nascimento esse que, aliás, é tratado autonomamente num dos espaços deste núcleo - que se trata aqui.

Do Núcleo Mole, que como o nome indica se concentra em peças realizadas em tecido, entre capas de honras, paramentos de igreja e outros bordados de f. marquespenteado, à Festa, que actualmente inclui o Serviço Pedagógico da instituição, ficamos com uma exposição que apresenta a obra do artista titular do CIAJG na perspectiva do seu processo, de algo que se constrói captando a história quando e como ela aparece, e frutificando no trabalho das gerações que se seguem. É decerto uma das exposições mais surpreendentes do ano, e que também, com muita certeza, irá marcar de futuro o modo de apresentar a obra de um único artista.

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