"A crise cultural pode levar-nos à ditadura"

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Mario Vargas Llosa - Natural do Peru, onde nasceu em 1936 numa cidade aos pés de um vulcão, Arequipa, Mario Vargas Llosa publicou o seu primeiro romance, A Cidade e os Cães, em 1963. Os títulos que se seguiram, A Casa Verde (1965) e Conversa n"A Catedral (1969), confirmaram-no como um dos mais fulgurantes ficcionistas da América Latina. Foi Nobel da Literatura em 2010. O seu último livro, o ensaio A Civilização do Espectáculo, acaba de sair SUSANA VERA/REUTERS

À primeira vista, o último livro de Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo, poderá parecer um desabafo amargo sobre estado das coisas - não fosse o Nobel da Literatura ainda acreditar no poder da literatura para mudar o mundo, como diz nesta entrevista.

A cultura pode dar resposta a estes desafios, a estas crises súbitas que nos angustiam e nos fazem duvidar da segurança do mundo em que vivemos", escreve Mario Vargas Llosa em A Civilização do Espectáculo, livro-alerta (que a Quetzal acaba de publicar entre nós) sobre o estado preocupante da cultura actual que não pretende ser mais do que "um testemunho" de um escritor de 76 anos, reconhecido, admirado, Nobel da Literatura em 2010.

A trabalhar há mais de um ano no seu novo romance, El Héroe Discreto, sucessor de O Sonho do Celta (2010), o escritor atendeu o telefonema do Ípsilon em Lima, a capital peruana. O novo livro, explica, passa-se "no Peru de hoje, uma sociedade que está a passar por grandes mudanças". Neste que é o seu primeiro livro de ficção escrito depois do Nobel, Vargas Llosa quer dar conta da forma como no seu país se acentuou o contraste entre, "as novas classes médias" e esse "sector da sociedade que vive, se não na idade da pedra, num passado muito enraizado". São, nota o escritor, conflitos próprios de uma sociedade em evolução e não problemas importados. "Normalmente, quando a Europa ou os EUA tinham uma crise, na América Latina essa crise multiplicava-se. Agora acontece exactamente o contrário. Países como o Peru, o Chile, o Brasil vivem um período de enorme desenvolvimento - com muitos problemas, muita violência social, corrupção, delinquência e narcotráfico, é certo, mas com crescimento económico."

Este é um livro muito pessoal, um desabafo amargo sobre o estado da cultura. Só deixa de ser negro quando chega o último texto, esse discurso que leu quando aceitou o Prémio da Paz na Alemanha, em 1996.

Tem razão, é uma espécie de protesto, de lamento, e também um esforço para compreender o curioso rumo que tomou a cultura nestes dias. Tudo isso visto desde uma experiência muito pessoal; não há no livro nenhuma intenção de especular, de desenvolver teorias. É um livro de quem desfrutou muito, de quem aprendeu muito e encontrou na cultura uma fonte riquíssima de experiências e também um instrumento para se conduzir no bosque complicado da história contemporânea; um livro de quem fez do exercício da vocação literária, da vocação cultural, praticamente toda a sua vida. Expressa uma angústia e uma incerteza sobre o que poderá acontecer no futuro se este processo se aprofundar. É efectivamente um livro muito pessoal, quase uma autobiografia intelectual.

Mas porque é que colocou esse texto a acabar o livro?

Porque é um tema muito actual, o da presença quase hegemónica do audiovisual no campo da cultura e do entretenimento e a razão pela qual as fronteiras entre os dois têm vindo a desaparecer. Hoje a televisão, o ecrã do computador, a Internet estão a ocupar o lugar que era tradicionalmente do livro; por isso, acho essa reflexão muito actual, se calhar muito mais do que há 15 anos quando li o texto na Alemanha.

Mas é um texto muito romântico, de alguém que acredita que a literatura pode salvar o mundo.

Eu penso que a literatura cumpriu uma função nevrálgica na evolução da humanidade. É difícil prová-lo, porque a literatura opera de forma muito subjectiva na intimidade das pessoas, mas eu acho que a fantasia, a sensibilidade, o espírito crítico desenvolveram-se extraordinariamente graças às fábulas, às lendas, aos mitos e, logo, aos continuadores desses géneros que são a poesia, o romance. O mundo é mais livre, mais crítico devido ao desassossego em relação ao mundo real, atiçado por esse olhar crítico perante o mundo que é a literatura. A cultura, em geral, e a literatura, em particular, estão sempre a expor-nos às ideias da perfeição, da beleza, da coerência, de uma ordem que não existe no mundo real; nesse sentido, têm servido como o motor do progresso da civilização. Pode ser uma ideia romântica, mas não acho que seja desmerecida pela realidade.

Acha que a única forma de evitar a evolução da cultura para o entretenimento puro é a literatura?

A única não, há muitas outras formas, mas acho que a literatura joga um papel fundamental nisso. Podemos dizer que a literatura - vista em sentido mais amplo, a leitura, o conhecimento da língua como instrumento de comunicação e de criação - é fundamental. Se os tablets e os ecrãs roubarem todo o protagonismo ao livro, assistiremos a um extraordinário empobrecimento da linguagem, haverá uma deterioração da comunicação e da racionalidade, as máquinas passarão a pensar por nossa conta e isso poderá trazer consequências gravíssimas, nomeadamente o desaparecimento da liberdade. Porque dá um extraordinário instrumento ao poder para controlar os cidadãos, um pouco como no conto de Borges Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, sendo o triunfo de Tlön o do ecrã, dos computadores, o que abre a possibilidade do pesadelo orwelliano.

Portanto, acredita que a liberdade de hoje é consequência da literatura?

Com a literatura, a imaginação pôde desenvolver-se, criando sociedades e mundos melhores, mais justos, mais livres dos que o que tínhamos. As grandes mudanças que experimentou a humanidade teriam tardado muitíssimo mais se não fosse a literatura.

Com este livro, e tendo em conta o título desse último texto, sente-se um pouco como um dinossauro face ao mundo actual?

Um pouco, sim. Sinto-me muito identificado com uma tradição - embora não creia que ler Shakespeare, Cervantes, Dostoiévski, Proust é opor-se à modernidade, pois nesses livros encontramos chaves para entender o mundo em que vivemos. Não se trata de negar a imagem - eu gosto muito de cinema, vejo muitos programas de televisão com muito prazer -, mas acho que se isso substituir a tradição do livro, haverá um empobrecimento da atitude crítica face ao mundo. A cultura do ecrã é muito mais conformista, mais letárgica, desmobilizando muito mais o espírito crítico, é quase como o sacrifício da racionalidade.

Este livro é também um canto pelo desaparecimento do intelectual, do crítico, do aristocrata da cultura...

Do crítico, sobretudo. O crítico cumpria uma função, mantinha uma ordem de prioridades, um certo cânone de valores estéticos e isso praticamente, desapareceu. Por isso, vivemos numa confusão em que podem surgir certos trapaceiros entronizados como grandes artistas, contribuindo ainda mais para esta confusão que vivemos no domínio da arte.

Não se deve mais ao facto de, com tanta criação, com tanta informação, ser impossível a uma só pessoa, a um só crítico, conseguir estar a par de tudo para servir como farol?

Uma só pessoa sim, mas a crítica no seu todo servia como um grupo de exploradores, de pioneiros, que iam avançando, desbravando o caminho. Agora já não há caminhos, é a selva pura. É perigoso termos chegado a um estádio onde é impossível saber o que é belo e o que é feio, porque essas categorias já não fazem sentido. Hoje em dia, classificar alguma coisa de belo é quase uma aberração. Há que inquietar-se quando em Inglaterra a Tate dedica uma retrospectiva a Damien Hirst como se fosse um grande artista.

Será isso a consequência da democratização cultural, de que é grande crítico?

A democratização no pior sentido da palavra, apelando ao mais baixo da identidade humana, a ideia de que aquele que chega ao maior número de pessoas é o mais valioso. É uma aberração perigosa, a confusão total entre preço e valor, em resultado da banalização da cultura, com o mercado a ditar a categoria estética.

Não será difícil à alta cultura sobreviver em sociedade liberais, tendo em conta que é feita para minorias e, como tal, não vende?

Se pensarmos no factor mercantil como o decisivo - eu não acho que seja assim. Há 50 anos, ninguém pensaria que Joyce ou Proust se tornariam best-sellers; no entanto, era claro que ambos representavam um grande avanço na literatura e que as suas obras, embora minoritárias, iriam ter enorme influência. Actualmente, isso já não está claro.

Mas isto não decorre do liberalismo económico e político que defende?

O liberalismo não está contra a cultura, isso é uma caricatura do que é o liberalismo.

No centro do liberalismo não está essa ideia de que o mercado tudo corrige?

O mercado é uma redistribuição dos recursos, de nenhuma maneira representa a banalização da cultura. Antes pelo contrário, o mercado reconhece a grande diversidade que compõe uma sociedade e que há pessoas que atingem um tal grau de especialização - não só na ciência e na técnica, também nas ciências humanas - que não pode ser acessível a toda a gente da mesma maneira. O que permite a democracia é que essas oportunidades se abram a toda a gente e que a selecção não seja feita por razões de poder, de raça, de estatuto, mas pela concorrência. É esse o sentido liberal da democracia, que não implica o desaparecimento de uma certa ordem no campo do conhecimento e da criatividade.

Mas o talento numa economia liberal mede-se pela capacidade de chegar a um público.

Sim, mas isso fixa o preço das coisas e não o seu valor. O valor das coisas é fixado por certos padrões culturais, estéticos, e é isso que hoje está muito ameaçado pela banalização da cultura. Há um factor que tem a ver com a educação, no sentido mais amplo da palavra - não só com o professor e a escola, também com a família, com a imprensa, com a informação que chega aos cidadãos, tudo isso marca uma certa orientação na maneira como se formam os cidadãos. E é a formação que hoje está muito estragada pela decadência de uma cultura que procura apenas entreter, divertir, muito mais do que preocupar, formar. Uma cultura que responde pela existência hoje de uma prática de avestruz: não ver, não entender.

Num momento em que o dinheiro é o valor central na sociedade, não é normal que também passe a ser um valor central na cultura que reflecte essa sociedade?

Não. Isso é uma deformação da ideia de mercado, nenhum dos grandes pensadores liberais o defendeu. Os grandes pensadores liberais foram, por um lado, moralistas, com grande preocupação pela dimensão moral da vida, e, por outro, muito respeitosos e impregnados de cultura, de interesses que iam além do puramente económico. O liberalismo não está em guerra com a cultura, nem está por trás da banalização da cultura. Isso é uma derivação perversa que também não tem nada a ver com a democracia. Nesta sociedade, onde a ordem religiosa passou praticamente a segundo plano, a cultura deveria ser a fonte principal da espiritualidade, do intelectualismo, da sensibilidade, do espírito, da fantasia, da imaginação; e isso não acontece porque a cultura tomou um rumo daninho. E, curiosamente, isso aconteceu nos países mais cultos, estendendo-se ao resto do mundo. Com excepção de alguns países do Terceiro Mundo, onde - quiçá por uma atitude romântica e um certo respeito pela cultura -, em certos sectores, logicamente muito minoritários, se mantêm determinados padrões culturais, determinada ordem de prioridades, determinados cânones que nos grandes centros civilizacionais se perderam. É esta ideia que está mais ou menos dispersa nos capítulos do livro, de maneira resumida porque não aspira a ser nenhum tratado, mas um testemunho pessoal.

No entanto, não é a cultura um reflexo da sociedade, não estão os criadores condicionados pelo mundo em que vivem?

Eu não sou marxista, não acho que a cultura seja um epifenómeno das relações sociais de produção; acho que essas teses se tornaram obsoletas e que hoje ninguém sério pode defender isso. Há muitas ideias sobre o que é a cultura, mas eu acho que a cultura tem uma influência muito grande sobre a marcha da sociedade e, inclusivamente, sobre a sua vida económica. E não ao contrário, como defendiam os marxistas. São as ideias que fazem funcionar uma sociedade e que estão por trás das instituições, incluindo as instituições económicas. Acho que esta crise terrível, cívica, moral, por trás da grande crise financeira e económica que vive o Ocidente deriva, em parte, da crise da cultura.

Tem medo daquilo que poderá acontecer se continuarmos assim?

Sim, isto poderá levar-nos à ditadura. Não serão ditaduras do tipo estalinista ou nazi, mas muito mais dissimuladas, mais discretas - formas de controlo da sociedade através dos grandes meios audiovisuais de comunicação que podem cumprir uma função muito letárgica e conformista. Por que razão a democracia se deteriorou tanto? Porque não há fé, não há confiança nas instituições democráticas; há um grande desprezo pela política, por se acreditar que é corrupta, medíocre. Ora, isso não é um problema social, é um problema cultural. A cultura não é só a arte, a literatura, a cultura, é a vida inteira de uma sociedade - não está apenas na espuma, mas nas raízes da problemática social.

É um grande crítico da democratização cultural?

É preciso ver o que se entende por democratização cultural. A democratização deve consistir em que todos tenham acesso à cultura e possam, de acordo com o seu talento, a sua vocação, a sua estima, o seu esforço, poder desenvolver-se, progredir e alcançar o reconhecimento de uma sociedade. A democratização não pode significar o nivelamento de uma sociedade através de certos parâmetros, porque isso significa o desaparecimento da cultura. O triunfo da tira de banda desenhada sobre a poesia ou o romance, isso não. Há teóricos que acreditam nisso - a minha discussão com Lipovetsky anda à volta disso, ele acha que a democratização consiste nesse nivelamento, desaparecendo, a partir daí, as elites, responsáveis por muitos estragos. Eu acho que se apenas lermos tiras cómicas, no futuro deixaremos de conseguir ler Shakespeare. A mente deixará de ter capacidade para compreender Macbeth ou Dom Quixote. E é para esse fenómeno que apontamos cada vez mais: as novas gerações já não estão em condições de fazer um esforço para ler um livro mais complexo exactamente porque o seu alimento intelectual se reduziu a essa coisa mínima e têm as imagens que pensam por eles.

Se a cultura não pode ser apenas divertimento...

Mas eu creio que a cultura é divertida, ler Shakespeare é maravilhoso. Porém, há divertimentos e divertimentos. Eu gosto muito de circo e acho que o circo é divertido; ler Nietzsche pode dizer-se que é divertido, mas exige esforço intelectual e certos conhecimentos básicos. Exige um certo tipo de sensibilidade, de imaginação, que precisam de ser educadas. Hoje há uma grande deficiência nesse domínio, partilhada pelos países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Estou a falar de uma tendência, não falo de um pesadelo sinistro que já está a ocorrer - tendo a História como exemplo, pode ser que não venha a ocorrer.

Não será isto consequência de a sociedade, tendo resolvido que a humanidade é apenas um acaso cósmico, reduzido à existência terrena, ter decidido entreter-se o mais que pode no tempo de vida que tem?

É preciso ver o que significa entreter-se: aceder a sistemas de pensamentos ricos, originais, complexos também é uma forma de entretenimento. Podemos brincar às avestruzes e dizer que os problemas não existem, mas eles existem. Veja-se a situação de Portugal hoje: não é terrível que haja esse nível de desemprego, que haja uma queda atroz dos níveis de vida? Porque é que isto aconteceu? O que se passou? Quem está por trás disto? O Ocidente está a sentir de forma muito dramática problemas que nem sequer sabia que existiam, porque a sua cultura não os preparou para enfrentá-los.

A nossa orientação para o entretenimento não derivará também dessa enorme angústia de viver numa época em que a mudança tecnológica se tornou tão rápida que é difícil acompanhá-la?

Em parte, sim, sem qualquer dúvida. O desenvolvimento tecnológico tem sido tão extraordinário que nos apanhou desprevenidos, sem preparação para reorganizar a vida de forma criativa em função dessas mudanças. Um desenvolvimento que está muito para lá do nosso desenvolvimento psicológico, dos nossos conhecimentos, das nossas instituições.

Acha que a actual crise económica poderá ser boa para inverter a tendência?

Depende do que fizermos com ela. Se aproveitamos a experiência e corrigimos o que anda mal ou se repetimos os mesmos erros. Felizmente, a cultura ocidental tem uma forte tradição autocrítica que lhe permitiu superar muitas crises no passado, o que lhe dá uma flexibilidade e uma possibilidade de renovação que não existe noutras culturas mais ortodoxas, mais dogmáticas. Nesse sentido, esta crise poderá ser um renascimento.

Ver crítica de livros pág. 34 e segs.

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