A corrida ao urádio

A realização desta primeira história aos quadradinhos e o sucesso que ela registou vão levar decididamente o artista belga ao seu território específico: a banda desenhada

Amanhã 18º
e último álbum
O Raio "U"
Por mais
7,90 ?
Aventura em estado puro
As empolgantes histórias protagonizadas por Blake e Mortimer em 18 álbuns. Todas as quartas

Os terríveis acontecimentos político-militares que marcaram a Europa durante a Segunda Guerra Mundial nunca interessaram muito Edgar Pierre Jacobs, mais preocupado com questões triviais de sobrevivência material. Por recomendação do seu amigo Jacques Laudy, Jacobs começa a colaborar no semanário Bravo!, em Agosto de 1941. Beneficiando da relativa tolerância dos ocupantes nazis, a publicação incluía maioritariamente bandas desenhadas americanas de aventuras, sem a menor referência à actualidade. Uma delas era Flash Gordon, de Alex Raymond.
Em Novembro de 1942 o material deixa de chegar dos Estados Unidos e a situação começa a complicar-se. No caso de Flash Gordon, a solução encontrada para evitar tensões com os leitores é pedir a Jacobs que dê seguimento às aventuras. O desafio é grande, mas o artista belga passa com distinção, adoptando a técnica de Raymond que consiste em inserir junto ao desenho de cada um dos quadradinhos um texto de comentário e diálogos não inseridos em balões.
Ao estilo nervoso de Raymond contrapõe-se agora uma "forma de rigor marmóreo" (Benoît Mouchart e François Rivière em La Damnation de Edgar P. Jacobs). É o estilo denso e "enfático" do artista belga que começa a emergir, anunciando de alguma forma o adeus a uma carreira de cantor lírico que quase não tinha começado.
Com a experiência adquirida no desenvolvimento de Flash Gordon, Jacobs estará perfeitamente à vontade para desenvolver, a partir de 1943, uma história inteiramente sua. Chamar-se-á O Raio "U".

a O anúncio da "nova grande narrativa de aventuras de Edgar P. Jacobs" nas páginas de Bravo! foi feito com grande destaque, a confirmar a aposta forte daquela publicação em O Raio "U". A preocupação de afastar qualquer associação à realidade envolvente - corria o ano de 1943 e uma parte significativa do planeta estava em guerra - é ilustrada pelo tema da história: poderes rivais de países imaginários, num planeta desconhecido, disputam a hegemonia.
Feita a apresentação do que estará em jogo numa nota introdutória explicativa, Jacobs mergulha os leitores no enredo da história, onde a acção desempenha um papel determinante. Os heróis lembram vivamente outros protagonistas. Marduk é uma recriação do professor Zarkof criado pelo americano Alex Raymond na série Flash Gordon e Calder assume o lugar do herói que dava o nome ao clássico norte-americano, enquanto Sylvia remete de imediato para Dale Arden... Mas há outros sinais de semelhança; a arquitectura doa lugares e o vestuário dos personagens mostram claramente a influência do mestre americano.
Seria muito injusto considerar que O Raio "U" limita-se a ser uma réplica de Flash Gordon. Com efeito, passadas as primeiras pranchas, é já o imaginário próprio de Jacobs que ocupa todo o espaço da narrativa, a começar pelas referências culturais que marcaram o artista belga desde a juventude, de H. G. Wells a Jules Verne e Edgar Allan Pöe, assim como os homens do cinema expressionista alemão, como Fritz Lang e Murnau. "Esta síntese pessoal constitui a própria essência da sua concepção, consciente ou inconsciente, do imaginário: cada uma das suas ficções impor-se-á a partir daí como uma reapropriação original dos mitos e dos arquétipos da tradição popular ao serviço de uma estética barroca e maneirista", escrevem Benoît Mouchart e François Rivière na biografia de Jacobs (La Damnation d'Edgar P. Jacobs).
A corrida ao urádio, um metal precioso que está na base de uma invenção que tem como destino revolucionar a ciência moderna e dar um poder ilimitado a quem o detenha, propicia uma sequência vibrante de acontecimentos, onde se destacam cenas de combate naval ou aéreo. Marduk, Calder, Sylvia e os demais companheiros de aventura vivem e superam todas as provações, para se imporem como vencedores, um fio condutor que Jacobs voltará a explorar em O Segredo do Espadão, primeiro título das aventuras de Blake e Mortimer.
A realização desta banda desenhada e o sucesso que ela registou vão levar decididamente o artista belga para aquele que foi o seu território específico: a banda desenhada. É em O Raio "U" que o artista descobre, também, a importância crucial da cor na criação de atmosferas. Para Mouchart e Rivière, Jacobs é mesmo "o primeiro desenhador na Bélgica a ter compreendido os efeitos dramáticos que podem nascer da cor".
Pensada para ser a primeira de uma série de histórias, O Raio "U" não teve continuação, dado o compromisso assumido por Jacobs de trabalhar a tempo parcial com Hergé e ainda a participação no arranque da revista Tintin, em 1946.
A história só voltaria a ser notícia em 1974, quando o desenhador e argumentista Michel Greg desafiou Jacobs a regressar a ela com vista à publicação em álbum. A modernização e reformatação desta banda desenhada, que foi colorida de novo, traduziu-se nomeadamente na introdução de balões e na eliminação de imperfeições técnicas. É essa versão, extirpada da "ingenuidade de expressão" e da "beleza selvagem" tão apreciada pelos citados especialistas, que os leitores podem agora apreciar, no encerramento da colecção Blake e Mortimer do PÚBLICO.

Calder e Marduk
Na senda de Flash Gordon e Zarkov (criações do americano Alex Raymond), a dupla Calder-Marduk antecipa os heróis de referência Blake e Mortimer que o artista belga irá criar mais tarde. A coragem de um e a inteligência do outro estão mais próximas dos personagens de Raymond do que dos protagonistas britânicos de Jacobs, mas a fórmula e o efeito pretendidos são muito semelhantes. Em vez de um, há dois heróis que se complementam, alimentando de forma eficaz o enredo de uma história clássica, entre a ficção científica e a heroic fantasy.

Sugerir correcção