Kurt Vonnegut, o escritor deprimido

Foi em 1969 que chegou a consagração de Vonnegut como herói da contracultura americana

a Kurt Vonnegut, escritor norte-americano, autor nos anos 60 e 70 de best-sellers/livros de culto de ficção científica que misturam pessimismo, sátira social e humanismo - tais como Slaughterhouse-Five (Matadouro Cinco, Ed. Caminho) ou Cat"s Cradle (O Berço do Gato) - morreu na quarta-feira em Nova Iorque aos 84 anos.Vonnegut disse um dia, num discurso perante a Associação Americana de Psiquiatria, que "não é possível ser-se um bom escritor de ficção a sério sem se estar deprimido". Ele sabia do que estava a falar: ao longo da sua vida, teve amplas razões, em repetidas ocasiões, para ficar profundamente traumatizado e deprimido.
Terá sido essa a origem do corrosivo humor negro que destila nas suas histórias enquanto os seus personagens mergulham em situações pelo menos tão bizarras e inquietantes como eles próprios. Quando lhe perguntavam quem eram os seus modelos literários, Vonnegut costumava evocar eminentes escritores como Mark Twain, Jonathan Swift e James Joyce, lembrava ontem o diário The Los Angeles Times. Mas em 1972, escreveu, a propósito das suas referências literárias: "A verdade é que sou um bárbaro, cujas dívidas culturais mais profundas são para com Laurel e Hardy [...], Buster Keaton, Fred Allen, Jack Benny, Charles Chaplin [...] e por aí fora. Eles fizeram-me rir à gargalhada durante a Grande Depressão e durante todas as outras depressões menores que se seguiram."
Alguns cataclismos do seu percurso: a Grande Depressão, efectivamente, que deixou a família de Vonnegut, até então próspera, na miséria; o suicídio da mãe, Edith, por overdose de barbitúricos, no Dia da Mãe de 1944, na sequência de vários episódios depressivos; a sua experiência traumatizante durante e após o bombardeamento pelos Aliados, em 1945, da cidade alemã de Dresden, onde Vonnegut se encontrava prisioneiro dos nazis; a morte devido a um cancro da irmã, em 1958 (cujos três filhos Vonnegut adoptou). Ele próprio tentou suicidar-se, em 1984, ingerindos doses maciças de álcool e comprimidos, tendo ido parar, durante um mês, a um hospital psiquiátrico...
Vonnegut nasceu em Indianápolis a 11 de Novembro de 1922 numa família de ascendência alemã. Estudou Química na Universidade Cornell a partir de 1940. Em 1943 alistou-se no exército americano e uns meses depois foi enviado para a Inglaterra. Em 1944, foi capturado pelos alemães e enviado para Dresden - onde pensou, conta ainda o L.A. Times, que ficaria em segurança até ao fim da guerra, uma vez que aquela cidade-museu nunca seria alvo de bombardeamentos. Estava enganado.
Em Fevereiro do ano seguinte, Dresden foi literalmente apagada do mapa pelos aviões britânicos e americanos, numa série de bombardeamentos que vitimaram pelo menos 60 mil pessoas. Vonnegut escapou ao massacre porque ele e os seus camaradas se encontravam fechados dentro de um autêntico bunker subterrâneo. Mas nos dias seguintes fez parte das equipas encarregadas de retirar os cadáveres das vítimas dos escombros para serem empilhados e cremados. O horror da situação, que Vonnegut revisitaria no seu clássico Slaughterhouse-Five, publicado 25 anos mais tarde, em 1969, perseguiu-o durante toda a vida.
Para sublinhar o lado absurdo "daquela coisa má que fizemos às piores pessoas imagináveis, os nazis", Vonnegut disse um dia, falando do seu best-seller, num discurso também citado pelo L.A. Times: "Nem um único soldado Aliado conseguiu avançar nem que fosse uma polegada após o bombardeamento de Dresden. Nem um único prisioneiro dos nazis foi libertado um microsegundo mais cedo. Apenas uma pessoa na Terra beneficiou claramente do sucedido, e essa pessoa sou eu. Ganhei uns cinco dólares por cada cadáver, sem contar o meu cachet desta noite." Uma pérola do humor negro de Vonnegut...
Quando regressou da guerra, em 1945, Vonnegut casou com a sua primeira mulher (de quem se divorciaria, tendo mais tarde casado com a fotógrafa Jill Krementz, a sua última mulher). Voltou para a Universidade onde estudou Antropologia e tornou-se ao mesmo tempo repórter do Chicago City News Bureau. Em 1947 abandonou o jornalismo e foi recrutado como assessor de imprensa pela General Electrics. Entretanto, começou a escrever contos e a publicá-los em revistas e, a partir dos anos 1950, passou a ganhar o suficiente para poder demitir-se do seu emprego e dedicar-se totalmente à sua escrita.
Ponto e vírgula
Vonnegut escreveu ao todo 14 romances, mas também contos, peças de teatro, ensaios. O seu primeiro livro Player Piano, publicado em 1952, evoca uma sociedade mecanizada e desumana. Seguiram-se The Sirens of Titan (1959), Mother Night (1962) e Cat"s Cradle (1963), que marcou o início da sua notoriedade. É a história de uma comunidade que vive numa ilha e que desenvolve uma nova religião, baseada em "fomas" (a palavra é de Vonnegut e significa "falsidades inócuas") face à ameaça de uma substância mortal descoberta por um cientista: o Ice-9, que congela tudo o que toca. Mas a consagração de Vonnegut como herói da contracultura americana chegaria indubitavelmente em 1969, em plena guerra do Vietname, com Slaughterhouse-Five, a história de um optometrista de Illium, Nova Iorque, que, "desligado do tempo", navega entre o passado (a II Guerra Mundial), o presente e o futuro (um planeta chamado Trafalmadore).
O seu último romance seria Timequake, em 1997. Mas Vonnegut continuaria a escrever depois disso - e a dizer o que pensava. O Guardian de ontem fazia notar que, no seu livro de ensaios A Man Without a Country, de 2005, não escondia o seu desprezo pela administração Bush, descrevendo-a como um bando de "estudantes medíocres da alta que não sabem nada de História nem de Geografia".
Numa entrevista à AP no mesmo ano, diz o Guardian, Vonnegut brincava com as dificuldades da velhice no seu habitual registo jocoso, declarando que "quando Hemingway se matou pôs um ponto final no fim da sua vida", e contrapondo logo que "a velhice é mais parecida com um ponto e vírgula". Vonnegut morreu vítima de lesões cerebrais provocadas por uma queda há umas semanas.

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