Frente Nacional ainda é uma empresa familiar e isso trava marine de chegar ao poder

Não assusta como o pai, Jean-Marie, e tem um discurso moderno, embora lá por baixo estejam todos os demónios da extrema-direita europeia de hoje. Ela tem a ambição do poder e dentro de alguns anos isso pode não ser impossível numa França que cada vez mais mostra que não tem medo da direita mais radical

Marine Le Pen no poder em França é mesmo algo com que teremos de contar mais cedo ou mais tarde? A líder da Frente Nacional (FN) não está hoje no boletim de voto da segunda volta das presidenciais mas as suas ideias marcaram a campanha até ao último momento. "Quando temos 15 a 20% dos votos, eles [candidatos] falam como nós. Quando tivermos 30 a 35% ou 40%, as nossas ideias chegarão ao poder", lançou a líder da FN no seu discurso na praça da Ópera, no 1.º de Maio, quando o partido anti-imigrantes e anti-islão comemorava Joana D"Arc, a heroína nacional que simboliza a defesa da nação contra os invasores.

"A Frente Nacional é um partido que está numa lógica de conquista do poder. Marine Le Pen quer mesmo o poder. No congresso de Tours, quando assumiu a liderança do partido, em Janeiro de 2011, disse várias vezes a palavra "poder". Isso é muito importante", comenta à 2 Claire Checcaglini, jornalista que se infiltrou na FN, como militante de base, de Julho de 2011 a Janeiro deste ano, e contou a sua experiência no livro Bienvenue ao Front: Journal d"une Infiltrée (Éditions Jacob-Duvernet).

Jean-Marie Le Pen, o pai e fundador da FN, famoso por tiradas como aquela em que disse que as câmaras de gás nazis na Segunda Guerra Mundial eram um ""detalhe" na história do mundo", era outra coisa. "Diria que o seu pai não queria aceder verdadeiramente ao poder. Gosta demasiado da provocação, em todas as eleições diz coisas que fazem fugir os eleitores. Marine Le Pen é diferente", diz Claire Checcaglini.

"Com Jean-Marie Le Pen a dirigir a FN, entre 43% e 63% dos seus eleitores não queriam que ele se tornasse Presidente da República", diz o sociólogo Sylvain Crépon, investigador do Laboratório Sophiapol da Universidade de Paris Oeste-Nanterre e especialista na Frente Nacional. Quem votava em Le Pen pai para Presidente mas mesmo assim não queria que ele chegasse ao mais alto cargo da nação tinha dois argumentos: "Ele não tinha competência para ser chefe de Estado e representava um perigo para a democracia. Estávamos verdadeiramente no arquétipo do voto de protesto." Jean-Marie Le Pen, explicou Sylvain Crépon à 2 por telefone, "mantinha a FN como um partido anti-sistema".

Mas a filha mais nova de Jean-Marie, a loura advogada de 43 anos, com voz rouca e possante, que só se envolveu na militância a partir de 1998, "compreendeu os limites da estratégia do pai e contrariamente ao seu pai quer mesmo exercer o poder", diz Crépon, que muito recentemente publicou um livro de investigação sobre o partido recriado por Marine Le Pen, Enquête au Coeur du Nouveau Front National (Nouveau Monde Éditions).

"Ela inspirou-se nos movimentos neopopulistas europeus, como o PVV de Geert Wilders, na Holanda, ou a UDC suíça. São partidos que se opõem ao islão em nome da defesa dos valores liberais. É algo que funciona muito bem eleitoralmente, porque permite avançar com uma xenofobia laica", diz Sylvain Crépon, que chama a este fenómeno uma "democratização da xenofobia".

"É algo muito eficaz. Passa por defender os valores seculares republicanos, diz que há uma religião incompatível com o secularismo, que é o islão; daí que se lhe oponha, em nome da defesa dos valores laicos. No entanto, o seu próprio discurso é incompatível com o secularismo, que ela diz que é de essência cristã, é completamente contraditório. Mas, ideologicamente, funciona e permite-lhe captar um novo eleitorado. É uma nova forma de xenofobia, que se inspira nos valores da modernidade."

Com mais inspiração na modernidade do que verdadeira modernidade, Marine Le Pen permite-se dizer, por exemplo, que defende os direitos das mulheres e dos homossexuais. Mas nos comícios faz diatribes contra o casamento gay, que o candidato socialista François Hollande defende. Mas o que ela quer dizer é que defenderá as mulheres e os homossexuais que se sintam ameaçados pelos muçulmanos. "No seu programa não há nada para defesa dos direitos das mulheres e dos homossexuais. Ao contrário, Geert Wilders não se opõe ao casamento homossexual ou à adopção por casais homossexuais. Marine Le Pen sim, opõe-se. É preciso sempre distinguir o discurso do programa na FN", diz Sylvain Crépon.

Para mostrar um novo rosto da Frente Nacional, Marine Le Pen iniciou a "normalização" do partido. "A desdiabolização, a limpeza da imagem da Frente Nacional, que passa por querer mostrar que o partido não é assim tão extremista como dizem, desligar-se de certas provocações do seu pai sobre a Segunda Guerra Mundial, sobre o Holocausto", explica Crépon. Em seguida, tentou adquirir credibilidade em matérias económicas e sociais. "Isto era o calcanhar de Aquiles da FN, que não tinha programa credível, coerente", sublinha.

"Tentou ter um discurso mais social, centrando-se no proteccionismo, a crise na Europa e na Grécia", diz Claire Checcaglini. Disse que a França tinha de sair do euro, centrou a "preferência nacional" no discurso económico e menos no ponto de vista étnico e racial.

Mas, entre Janeiro e Março, desceu nas sondagens com este discurso tecnocrático, dizendo que a FN era um partido como os outros. Por isso recentrou-se nos temas clássicos da FN: imigração e insegurança. "E em Março tivemos os homicídios de Mohamed Merah [jovem de ascendência argelina que matou quatro judeus, sendo que três eram crianças, e mais três soldados, dizendo que pertencia à Al-Qaeda], em Toulouse e Montauban, e ela aproveitou-se disso. Fez um discurso muito duro, dizendo "quantos Mohamed Merah virão nos barcos que chegam a França". Jogou com o medo, e isso funcionou", diz Checcaglini.

Os eleitores da FN têm uma visão profundamente etnocêntrica e autoritária e, segundo um estudo coordenado pela socióloga Nonna Mayer, do Centro de Estudos Europeus do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) divulgado online, esse perfil tem-se vindo a acentuar desde 1988. A defesa do regresso da pena de morte e a opinião de que há demasiados imigrantes em França servem de balizas para as avaliações da socióloga.

"O que une verdadeiramente a imensa maioria dos militantes da Frente Nacional é o medo do islão, dos muçulmanos. O anti-semitismo é muito menos importante do que no tempo de Jean-Marie Le Pen - no entanto, não perturba ninguém na FN, apesar de haver menos anti-semitas", diz a jornalista que se infiltrou na FN como militante, para "compreender como alguém podia chegar a votar pela FN, sem ouvir palavras formatadas".

"Falei com um conselheiro de Marine Le Pen, que a ajudou a escrever o programa presidencial, que adere às teses de Robert Faurisson, um historiador revisionista [nega vários aspectos do Holocausto, como as câmaras de gás e até o diário de Anne Frank]. Esta pessoa não é um militante de base e isso não perturba ninguém", relata Claire Checcaglini.

"Mas o que me marcou mais foi o medo do islão. É um medo irracional, desarmante. Não é possível lutar contra os fantasmas destas pessoas. Recordo-me de estar com um militante de 50 anos no meu bairro, ao pé de um talho halal [carne abatida segundo os rituais muçulmanos], e ninguém estava a ser agressivo, mas ele estava aterrorizado. Muitos nem sequer estão conscientes de que são racistas, dizem "eu não racista, mas não gosto dos negros!"", recorda a jornalista.

Se Marine Le Pen pôs em prática uma estratégia de limpeza de fachada do partido, afastando skinheads, apostando na aparência de um partido normal e frequentável, rodeando-se de um círculo de jovens reformadores, alguns ex-colaboradores de Bruno Mégret - que saiu da FN em 1999, por defender alianças com a direita clássica -, continua a existir um fundo de paranóia potencialmente violento. "O meu secretário departamental, que foi meu chefe durante oito meses, pregava que ia haver uma guerra civil em França, para nos desembaraçarmos dos muçulmanos", recorda Claire Checcaglini.

A jornalista apresentou-se na FN não com o seu apelido, que evoca uma origem de imigração italiana, mas com o nome bem francês da avó, Gabrielle Picard. Em Julho de 2011 estava envolvida na FN de Hauts-de-Seine - o departamento mais rico de França, mas onde existem muitas zonas pobres. A experiência dela foi entre as classes médias que votam pela Frente Nacional. E, entre as pessoas que conheceu, não encontrou quem se arrepiasse por se ver reflectido nos ataques terroristas cometidos em Julho do ano passado em Oslo por Anders Breivik - em nome da guerra cultural contra o islão, que ele considera que ameaça a Europa.

"Para eles, não lhes dizia respeito. Não viam qualquer relação entre o que defendiam e o que tinha acontecido na Noruega", conta Claire Checcaglini. "Achavam escandaloso que falassem da extrema-direita quando se estava perante um assassino. Para eles, não havia ali a dimensão do ódio do outro, do racismo. Não reflectiram em nada disso. Era alucinante."

Mas na Frente Nacional, diz, as pessoas não se interessam muito pelo que se passa no estrangeiro. A "preferência nacional" de que fala Marine Le Pen é toda uma forma de estar na vida. "Concentram-se muito sobre si próprios, sobre a família próxima, o seu círculo de amigos, o bairro, a cidade onde vivem, mas pára aí. É muito notório", explica Claire Checcaglini. "Marine Le Pen fala sobre a Europa, a soberania da França, mas esse nem é um tema que lhes interessa muito. Os temas que os militantes mais abordam é a imigração, a insegurança, o que vêem no seu bairro. É desarmante estar na FN."

"Em geral, o eleitorado da Frente Nacional é o mesmo desde a década de 1990. É o primeiro partido entre os operários (mais de 30%), tem bons resultados entre os assalariados, nos desempregados, entre as pessoas que não têm formação superior. Por exemplo, entre os que não acabam o ensino secundário, 30% votam FN. Mas só 15% dos que vão para além deste nível de ensino votam FN. É forte no eleitorado da precariedade, o eleitorado pouco preparado para a mundialização, que não tem um diploma, que não fala uma língua estrangeira, aqueles a quem se chama os "perdedores da mundialização". É um eleitorado muito pouco politizado, que frequentemente se desinteressa das eleições. Sociologicamente está muito próximo dos abstencionistas", explica o sociólogo Sylvain Crépon.

A jornalista Claire Checcaglini observa aquilo a que é mais sensível: "Falei disto com uma militante católica integrista. Ela dizia que, graças à Internet, deixou até de ver o telejornal da TF1, que é muito visto em França. Informava-se essencialmente pelos sites de informação ligados à FN. A Internet tinha-lhe permitido fechar-se mais sobre si própria."

Isto acontecia entre pessoas da baixa classe média, que estudaram um pouco mas não muito. Assalariados, vendedores, pessoas que não vivem com grande desafogo, por vezes com algumas dificuldades.

"Jean-Marie Le Pen conseguiu conquistar a classe operária. Marine Le Pen está a conseguir agora conquistar a baixa classe média, a que está imediatamente a seguir. A que perdeu poder de compra, que tem dificuldades de habitação, receia perder o seu conforto. Não vivem no centro das cidades, onde a habitação é muito cara, vivem nos subúrbios, longe do centro, ou nos campos, onde houve uma grande votação em Marine", continua Checcaglini.

Só na região de Île-de-France, onde se integra Paris, os resultados de Marine Le Pen se mostram estáveis ou em recuo, escreveu no Libération a geógrafa Béatrice Giblin, do Instituto Francês de Geopolítica, na Universidade Paris 8 e directora da revista Hedoto, cujo último número é dedicado ao avanço da extrema-direita na Europa. No plano global, Marine Le Pen obteve mais de 20% em 43 departamentos (a unidade mais pequena das divisões administrativas do território em França), quando o seu pai conseguiu igual feito em apenas 25 departamentos em 2002.

As zonas de crescimento da Frente Nacional são o Midi mediterrânico, a região do Rhône-Alpes, o Norte e o Leste. O Gard, no Sul, é o único departamento em que Marine Le Pen ganhou a todos os outros candidatos da primeira volta, mas a FN já estava a crescer ali nos anos 1980. E em Marselha, que foi um dos primeiros bastiões da FN, Marine Le Pen teve 21,2%, mas o apoio ao partido deixou de crescer. O seu pai, em 2002, tinha tido naquela cidade do Sul 27% dos votos.

Tirar o rosto mais assustador da Frente Nacional ajudou Marine Le Pen a conquistar eleitores - ela consegue projectar uma imagem até maternal, e de mulher moderna, apelativa para os jovens (quase 19% dos menores de 25 anos votaram nela, um ponto acima da média nacional, diz Crépon) e para as mulheres, que antes evitavam o pai Jean-Marie, e agora votam em Marine praticamente como em qualquer outro candidato. "A normalização permitiu-lhe ganhar alguns votos - nas entrevistas que fiz [para a investigação do último livro], algumas pessoas disseram-me que nunca teriam votado FN com Jean-Marie Le Pen, mas agora que é a filha dele, podem votar, porque com as ideias sempre simpatizaram", diz Sylvain Crépon.

Mas, paradoxalmente, isso também não lhe foi assim tão favorável, porque ela começou a descer nas sondagens. "No final da campanha, e isto é muito interessante, ela mudou o discurso, voltou aos fundamentos da FN, a luta contra a imigração e a insegurança, a denúncia das elites e a vontade de fazer a França sair da Europa." A partir daí, voltou a subir. "Ela gritou muito alto que a Frente Nacional é um partido anti-sistema e isso permitiu-lhe ter 17,9%, ficar acima do que as sondagens previam", sintetiza Crépon.

"Isto mostra que a Frente Nacional progride quando joga a carta do partido anti-sistema, quando atrai o voto de protesto. Quando tenta ser um partido normal, como os outros, interessa menos aos eleitores." Por isso, conclui, não tem muito futuro como um partido normalizado: "É o que me faz dizer que continua a serum partido de protesto, que atrai o voto de contestação. Mas, na minha opinião, não tem futuro fora do voto de protesto e anti-sistema."

No entanto, a FN tem tido um crescimento sustentado em algumas zonas, por vezes inesperadas - como Hénin-Beaumont, em Pas de Calais, no Norte, uma antiga zona mineira, onde havia uma forte implantação comunista e socialista. Ali o sentimento de abandono dos habitantes que de facto foram afectados pela globalização, pelo encerramento das minas, pela perda de referências provocada pelo ruir do comunismo, pelos casos de corrupção da câmara socialista - o ex-presidente da câmara Gérad Dalongeville está preso - foram aproveitados pela Frente Nacional para implantar ali Marine Le Pen. O contacto de perto com os populares, sempre pronta a ouvir os seus problemas e a defendê-los, com um discurso reminescente do velho partido comunista, conquistou o coração de muitos ex-militantes comunistas e socialistas, de uma forma desconcertante para quem chega de fora. Dois elementos do círculo próximo de Marine vêm de Hénin-Beaumont, Steeve Briois e Laurent Brice.

Épor Hénin-Beaumont que Marine Le Pen se tem apresentado às várias eleições locais e às últimas legislativas - e deve ser por lá que se apresentará às legislativas de Junho, com fortes possibilidades de ser eleita. Aliás, a FN deve voltar a ter um grupo parlamentar na Assembleia Nacional. "Num primeiro tempo, isso será bom para a FN, pois dar-lhe-á uma grande visibilidade, sobretudo se Marine Le Pen for eleita. Vai contribuir para difundir a sua imagem no jogo político e mediático", diz Sylvain Crépon. "O que é arriscado para eles é se nos tempos mais próximos estiverem associados a um governo UMP [a direita gaulista, o partido de Nicolas Sarkozy]."

Se a lógica do voto na Frente Nacional é de facto a do voto de protesto, ir para o Governo, aliar-se ao sistema "UMPS", como lhe chama Marine, agrupando numa única sigla o Partido Socialista e a União para um Movimento Popular, perde provavelmente a sua base de voto contestário. "Foi o que vimos na Áustria com o FPÖ de Jörg Haider, quando se associou ao governo conservador de Schlüssel. Perdeu o seu potencial de voto de protesto e afundou-se completamente para a opinião pública. Daí para cá reconstruiu-se, mas nesses anos afundou-se."

Mas por muito que Marine Le Pen deseje o poder, ela terá consciência de que ainda não é o momento. "Entrevistei muita gente da FN, e quando lhes perguntava se Marine estaria pronta para exercer o poder, respondiam-me "não". E, quando lhes perguntava quem veriam num governo da FN como ministro, a maior parte dizia "não estamos prontos"", conta Crépon.

É que a Frente Nacional tem um complicado problema: falta de quadros qualificados, pessoas aptas a exercer o poder, a apresentar-se como candidatos, a gerir militantes. "Não têm gente formada, têm muito poucas pessoas competentes, com experiência de gestão. É uma falha enorme. Em comparação com a UMP, que é uma máquina de guerra temível, que tem exércitos de tecnocratas, juristas, economistas, comunicadores, nada disso existe na FN. É, pode-se dizer, uma pequena empresa familiar. No círculo em torno de Le Pen há pessoas competentes, mas é extremamente limitado", diz Sylvain Crépon. "É por isso que se amanhã a FN chegasse ao poder, se Marine Le Pen tivesse sido eleita Presidente da República, não poderia constituir um governo com o seu partido. Não tem gente competente suficiente."

Apesar destes calcanhares de Aquiles, Marine Le Pen é perigosa, mais perigosa que o seu pai. "Ela não abdicou de nada do que é extrema-direita e é mais sedutora. Oferece um rosto mais respeitável, faz menos medo do que o seu pai, mais pessoas votam por ela, mas o programa que defende é como o do Jean-Marie Le Pen", diz Claire Checcaglini. "Ela tem boas ligações à extrema-direita austríaca, a Itália, e não me admirava que nos próximos anos se tornasse num catalisador da extrema-direita na Europa", conclui Sylvain Crépon.

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