A chuva chegou, mas não esquecemos a seca

Francisco, em Beja, sorri. Tal como João, em Vila Nova de Foz Côa. No jogo do "como enganar a seca", parecem sair-se bem. Ambrósio, na Serra da Estrela, chora. E José, em Beja, impressiona-se - ver as vacas à luta por comida é inusitado. Retratos de um país que tem a seca no seu ADN. E onde às vezes se lida de forma estranha com a água

Esta é uma viagem de Bragança a Olhão, no início de uma Primavera que trouxe aos campos as cores das papoilas, das giestas, das margaças e do rosmaninho mas que não consegue remediar o mal feito por um Inverno seco. Vamos parar várias vezes e constatá-lo. Na Serra da Estrela, onde um pastor de voz ríspida perde a compostura e chora - prefere vender as ovelhas a vê-las tombar à fome. Na aridez desmesurada das terras de Mértola. No Campo Branco, no Alentejo - "um campo de golfe tem mais relva do que isto", diz um vaqueiro, com um sentido de humor à prova de seca, enquanto olha para 40 hectares de aveia.

Paragem também nos pomares do Sul da Serra da Gardunha, onde os produtores de fruta "andam à bulha com a água". Em Vila Nova de Foz Côa, onde uma conhecida casa de vinho do Porto faz o que ainda não é consensual fazer: regar a vinha. E ainda em Silves. E em Olhão... Uma viagem para ver como um país em seca e com secas frequentes se relaciona com a água.

No final de Março, 57% do território continental estava em seca meteorológica extrema, segundo a comissão de acompanhamento e avaliação dos impactos da seca de 2012. Entre 1 de Outubro e 31 de Março, choveu menos 48% do que é normal. Mas nada disto é assim tão novo. Temos aprendido com as secas - as de 1981, 1992, 1995, 1999, 2004, 2005? Ou com a chuva esquecemos tudo?

A 2 encontrou vários autarcas, empresários e agricultores que nos últimos anos procuraram preparar-se. E outros que reclamam um maior empenho do Estado e mais apoios. Mas ainda há muita sobreexploração de recursos hídricos, diz a geógrafa Maria José Roxo, especialista em desertificação da Universidade Nova de Lisboa. E desperdício. Este é o relato de uma incursão que começou nos últimos dias de Março, quando as nuvens começaram a chegar e, com elas, uma chuva miudinha.

De boca vazia nas terras altas

O sol já vai baixo, está um vento frio na serra e Júlio Ambrósio, 62 anos, não traz boa cara. É um homem grande, de ombros largos, boina verde na cabeça, um tom de voz ríspido. Olha para a nuvem densa de poeira provocada pelas patas das ovelhas que regressam à quinta apressadas, depois de um dia inteiro a pastar, e comenta irritado: "Nem no Verão levantam tanto pó, nem no Verão isto está tão seco!" O que se vai passar de seguida só serve para o deixar ainda mais maldisposto.

Os animais estiveram desde manhã nos campos, à cata de mato e pequenas ervas. Mas nem a mais persistente das ovelhas tem grande sorte por estes dias em pleno parque natural da Serra da Estrela, na freguesia de Prados, concelho de Celorico da Beira. "Nesta altura do ano, era para andarem aí aos saltos, nas serras altas, a encher a boca. Agora, nem nas serras altas nem nas baixas." Com a falta de água, nada cresceu.

Quando elas e a sua nuvem de pó chegam à loja, conduzidas pelo filho de Ambrósio, atropelam-se umas às outras para apanhar o feno e a ração que já foram espalhados pelo chão. Trazem fome. E comem, comem, comem até que alguém as conduza, aos grupos de 24, para a sala de ordenha mecânica.

Estamos na Quinta da Póvoa, um negócio de três famílias que produzem queijo Serra da Estrela e exploram 300 hectares de pastagens temporárias e permanentes, centeio, aveia com grão, feno bravo - de onde saem 10 mil a 12 mil fardos por ano que é suposto garantirem que nunca falta alimento a 600 ovelhas de cornos rugosos e lã espessa. "Este ano não estou a ver como vá cortar sequer mil." E o que guardou do ano passado está a esgotar-se.

De cada grupo de 24, Ambrósio costumava extrair cinco litros de leite, o equivalente a um quilo de queijo. Mas isso é o que é costume. Por estes dias é diferente. "Já vai ver o que fica no depósito quando acabarmos." E no final da ordenha mostra o depósito transparente, para onde corre o leite. Marca menos de dois litros. "Como é que se pode andar de cabeça erguida?"

Dez minutos depois de receber a 2, com a sua voz ríspida, não contém as lágrimas. "Viu a viatura que passou aí, não viu? Vêm para comprar algumas ovelhas. É melhor vender barato do que vê-las a morrer à fome."

Afinal, não estava maldisposto este homem grande, de ombros largos, quando nos apareceu com má cara. Estava desesperado.

Segundo a comissão de acompanhamento e avaliação dos impactos da seca de 2012, a região Centro foi uma das mais afectadas pela seca extrema. Num ano normal regista-se em Março uma precipitação de 55 mmna região; este ano foram 14.

O impacto no abastecimento urbano já se fez sentir nas cidades. A Águas da Covilhã accionou um plano de contingência. "Consiste no aproveitamento de águas de particulares e de águas com baixa qualidade que, em situação de ano normal, não são aproveitadas. A rega de espaços verdes foi interrompida", informa a empresa municipal.

Mas é na pecuária que as consequências são mais visíveis. O relatório publicado pelo Governo na primeira semana de Abril falava de quebras que vão dos 40% aos 80% na produção de culturas forrageiras (destinadas a alimentar os animais), de uma redução de valor idêntico nos cereais de Outono/Inverno, como o centeio, e de uma ainda maior nas chamadas "pastagens permanentes". A "escassez de alimentos grosseiros para o gado" e o "esgotamento das reservas" fez disparar o preço de fenos e palhas - nalgumas zonas registaram-se aumentos de 75%.

O pior pode estar para vir. Não haverá reservas para o próximo ano. E o desalento toma conta de muitos criadores. O Governo já prometeu ajudas e também há autarquias a acenar com apoios. Em Março, a Câmara Municipal de Oliveira do Hospital anunciou 30 mil euros para distribuir pelos pastores e produtores de queijo. Vítor Rodrigues, na freguesia de Nogueira do Cravo, é um dos contemplados.

Ao longe podem parecer verdes os diferentes talhões da propriedade arrendada, onde semeia. Contudo, ao perto, é fácil constatar o desastre. Pára o jipe num rectângulo de terra: "Aqui semeei aveia, azevém, serradelas, trevos...", uma mistura pensada para que as suas 100 ovelhas dessem mais leite. Mas os trevos mal despontaram e as espigas surgiram antes do tempo - e se o cereal espiga com um palmo de altura, não cresce mais.

Rodrigues é um dos que dizem que também não vão conseguir fazer feno. E já está a ter de comprar. "Quatro euros o fardo de 12 quilos, quando costuma ser a 2,5 euros." Há pastores a recorrer à banca e a pedir emprestado. Ele ainda não chegou aí, mas não falta muito.

Encolhe os ombros, constrangido. "Para já, não posso dizer que os animais estão a passar mal." Há ovelhas magras, uma ou outra. Como aquela que mastiga erva rente ao chão, junto a um dos filhos do pastor - Daniel, o mais novo da família, está a estudar Teologia em Coimbra e nas férias ajuda a tomar conta do rebanho. Mas não é porque estejam esfaimadas, continua, quase constrangido. É das parasitoses, que são mais comuns em tempo de seca. "Mas, de facto, não posso dizer que estão como nos outros anos, fortes, valentes. Uma ovelha, que podia produzir 800ml a um litro de leite, está a produzir 200, 300ml e não passa dali... No mês passado, não consegui tirar sequer para pagar à Segurança Social."

Perguntar a estes pastores o que fazer para, da próxima vez, na próxima seca, estarem mais prevenidos suscita invariavelmente um esgar de angústia. Reduzir o tamanho dos rebanhos é a resposta. A única. Nenhum deles se vê a fazer outra coisa que não alimentar um negócio que já veio de avós, de pais e que, nalguns casos, já passou para filhos e em que, apesar de tudo, acreditam: o da produção do famoso queijo Serra da Estrela.

Qualquer um defende, de resto, que era impossível estar preparado para o que se passou este ano - por exemplo, com reservas maiores de alimento nos armazéns. "Esta seca foi muito pior do que a de 2005. Foi a pior de que me lembro." Virão mais destas?

O sueco que queimou o laranjal

Detlev von Rosen, um sueco muito alto, de corpo delgado, precisou de apanhar um susto para tomar medidas drásticas. No final dos anos 60, tinha escolhido Moncarapacho, concelho de Olhão, para montar um negócio de viveiros de plantas ornamentais. Até que um dia o vizinho, que produzia laranjas, quis vender a propriedade que fazia fronteira com a sua e foi ter com ele. "Disse-me: "O melhor é comprar-me isto porque a água que você usa vem da minha terra"."

O argumento da água convenceu-o e viu-se a braços com um laranjal enorme. O país vivia a revolução de Abril e Detlev preparava-se para uma reviravolta na sua vida. "Perguntei-lhe: "Mas como é que vou fazer isto se não sei nada de laranjas?" E ele disse: "Ah, isto é fácil! Muita água, rega de rojo, ou seja, abrir a água e deixá-la correr."

Durante 20 anos, foi o que fez (na chamada "técnica de alagamento", apenas 50% da água usada na rega é, efectivamente, consumida pela planta; o resto vai para o subsolo ou evapora-se). Até que no final da década de 1990 o Algarve atravessou uma seca que ficou para a história. A água faltou nas torneiras e o sueco começou a fazer contas quando viu os seus furos falharem um após o outro.

Não sabia - como hoje ninguém sabe - se viriam mais secas daquelas. Mas decidiu que não voltaria a viver um momento de pânico como aquele. "Fizemos um estudo e as conclusões a que chegámos eram catastróficas: estávamos a usar quase toda a nossa água nas laranjas. Não sei se está certo, mas calculámos que para produzir um copo de sumo precisávamos de mil copos de água. Por isso, arrancámos tudo e queimámos."

Começou a procurar árvores que tivessem menos sede. Optou pela oliveira quase por acaso, conta a sorrir. De facto, também não sabia nada sobre olivais - não era sequer consumidor de azeite.

Foi aprender. Contactou os melhores especialistas portugueses e começou a seguir a par e passo um projecto de olival que estava a nascer na Califórnia, desenvolvido pela Universidade de Davis (UD). O azeite estava a entrar na moda fora do Sul da Europa, muito graças aos estudos que ressaltavam os efeitos benéficos do seu consumo na saúde humana. E sentiu que tinha apostado bem.

Investiu - 100 mil euros na plantação das oliveiras, 100 mil na recuperação de um lagar romano que existia naquele local e onde montou o seu, outros 100 mil no equipamento. Depois, foi preciso sustentar as oliveiras durante sete anos, sem que elas lhe dessem nada em troca. E pôr em prática as técnicas que estavam a ser seguidas pela UD e que, supostamente, lhe iriam permitir chegar ao topo - 90% do azeite que se produz vai para a refinaria, diz, e o seu preço é regulado internacionalmente "por uma espécie de bolsa do azeite, sediada em Madrid", que dita que neste momento cada quilo (no azeite fala-se de quilos e não de litros) custa 1,5 euros. Detlev não queria entrar nesse mercado. Queria ter um azeite extra virgem. E é isso que tem hoje. Vende-o a 19 euros o quilo, quase só a particulares.

Aos 75 anos, olha com doçura para o seu olival belíssimo que, até ver, está a passar incólume à crise da chuva e ao problema da geada que tantas dores de cabeça deram este Inverno aos produtores de citrinos do Algarve.

Tudo o que os olhos avistam parece ter sido estudado ao pormenor. Por que é que há porcos pretos a passear entre as oliveiras, por exemplo? "Caem azeitonas no chão, se caem é porque estão doentes e não queremos ter azeitonas doentes no solo... os porcos fazem a limpeza do olival."

Com clientes em todo o mundo (há tempos foi noticiado que entre eles estão a rainha da Suécia e Carla Bruni, mas Detlev não gosta nada de falar disso, acha deselegante), diz que está quase a ganhar a sua aposta: provar que um negócio destes é rentável. E menos arriscado do que o das laranjas. "Se não chove, se não há rega, os citrinos morrem. A oliveira não."

As árvores envergonhadas

Para a generalidade dos agricultores que a 2 encontrou pelo país, parece evidente que o clima "está a mudar". Quando definem políticas, o Governo e a União Europeia também partem desse pressuposto: o Sul da Europa, nomeadamente Portugal, vai viver períodos de seca meteorológica mais frequentes.

Na comunidade científica, contudo, está longe de haver consenso em relação a estas previsões. Os governos sabem-no, explica Francisco Gomes da Silva, assessor para a Agricultura da ministra Assunção Cristas. Mas nos seus planos optam pela "prevenção".

É precisamente por estar tão entranhado este discurso da seca - nos campos, como nos gabinetes - que alguns projectos parecem, à primeira vista, quase um contra-senso. Por exemplo: no Sul da Serra da Gardunha, onde não há nenhuma grande barragem, e onde, no Verão, as temperaturas ultrapassam os 40 graus, por que razão cada vez mais agricultores arriscam investir em projectos agrícolas que... precisam de rega?

Foi o que fez Joaquim Baptista, 50 anos, há vários anos. Tem um pomar, em Castelo Novo, de 100 hectares, com a serra à vista, que depende basicamente das charcas (reservatórios escavados na terra, a céu aberto) que abriu pela propriedade.

Mostra uma delas, com uns cem metros de comprimento por 40 de largura, que era suposto estar quase cheia nesta altura. Mas está longe disso. "Só devíamos começar a usar esta água para regar em finais de Abril. Ora este ano estamos há mais de um mês a usar a água das charcas, porque não choveu." E sem chuva as cotas não são repostas.

Noutra exploração, a poucos quilómetros, repete-se a história. Francisco Chasqueira, 50 anos, está a lançar, com a filha, um novo pomar no Louriçal do Campo - dezenas de milhares de euros, com apoios comunitários. Acabou de plantar as árvores a 15 de Fevereiro, contava ter o sistema de rega instalado em Junho. E tudo correria bem, diz, se São Pedro não lhe tivesse trocado as voltas.

Como não choveu, e para garantir que as árvores não morrem à nascença, teve de regá-las manualmente, já que o sistema de rega automática não está pronto - são precisas três pessoas, um tractor e mil euros de cada vez que dá de beber às arvores. A gigantesca charca que construiu, essa, "pode não chegar até Setembro". A terra barrenta, acinzentada à volta, abriu-se. As fendas fazem lembrar as fotografias que ilustram os manuais escolares de Geografia quando explicam o que é a seca. Mas aqui a seca vive-se ao vivo.

Para já, qual é o impacto disto? As cerejeiras de Joaquim Baptista estão bonitas, completamente vestidas de flores brancas. Mas ele não arrisca prognósticos. Sabe que tem cortado no número de regas ("A cereja agradece água todos os dias, para estar mesmo bem. Mas agora a gente não lhe dá o que ela quer porque andamos aqui todos encolhidos.") Sabe também que esta dieta pode ter impacto quando chegar a hora de colher o fruto e que a produção pode cair. O mesmo com os pêssegos. "As árvores estão envergonhadas. Estão a rebentar, mas não estão bem."

Sente, contudo, que, dadas as circunstâncias, tem feito tudo certo. Foi a Espanha, comprou as variedades que lhe pareciam mais adequadas ao clima. Escolheu sistemas de rega eficientes - "Dantes fazia-se a rega por alagamento. Agora não. É toda conduzida por uma tubagem que faz uma microaspersão..." Cada pequena árvore tem direito a um gotejador que deixa cair 2,2 litros por hora em pequenas gotas.

É certo que dá razão a quem diz, como a geógrafa Maria José Roxo, que persistem casos gritantes de culturas agrícolas desadequadas aos recursos hídricos existentes - "o milho, o girassol e os milhares de hectares de olival superintensivo e intensivo e de vinha irrigados, plantados no Alentejo, com particular incidência no Baixo Alentejo, são bons exemplos da sobreexploração dos recursos, numa região onde os totais anuais de precipitação se encontram entre os 600 e os 500 mm".

Mas Joaquim Baptista não acha que tenha ignorado demasiado as condições que a região oferece - não costuma haver Invernos assim, mesmo a seca de 2005 foi menos grave, diz. "Temos aqui enormes potencialidades para a fruta. Temos solos planos, calor no Verão, frio no Inverno - a cerejeira precisa de 700 horas de frio por ano, abaixo dos sete graus -, pouca geada." O que falta? "Um bom sistema de regadio que o Estado devia trazer para cá."

É precisamente o que defende José Mesquita Milheiro, presidente da Associação Distrital dos Agricultores de Castelo Branco, no Fundão, ele próprio em risco de perder o que semeou em terreno de sequeiro. "A Cova da Beira tem fama de grande produtor de fruta", diz o engenheiro. "Mas há muita fruta a surgir no Sul da Gardunha, com agricultores que têm 80, 100 hectares de pomar e que andam ali à bulha com a água - puxam-na daqui para ali e dali para aqui, andam à voltas com a charca e a charquinha", numa espécie de jogo que este ano subiu de grau de dificuldade.

"Abrir aquelas charcas é um grande investimento que fazem, mais a energia que gastam para retirar a água com bombas." E, com as secas, tudo se complica. Por tudo isto, a associação quer "pôr em cima da mesa" um estudo, que seja feito em parceria com universidades, que convença o Governo que um forte investimento em regadio, a sul da Gardunha, com fundos comunitários, é a melhor solução. Bastava aproveitar a água das ribeiras que correm na serra - em vez de "deixá-la correr até ao mar", diz. "Sem regadio, como está o clima, o país transforma-se num deserto."

Mas é eficiente levar pomares e hortas para zonas onde naturalmente nada disso pegaria? "Se produzíssemos só o que a natureza nos permite, já tínhamos desaparecido", responde Francisco Gomes da Silva.

"O regadio é cada vez mais importante como forma de nos adaptarmos às alterações climáticas", continua o assessor de Assunção Cristas. "Temos de criar condições de armazenamento de água. No âmbito da revisão da Política Agrícola Comum há, da parte portuguesa, uma afirmação clara de que queremos desenvolver o regadio. Um regadio eficiente."

E como se garante a eficiência? Desde logo, com uma correcta política de tarifários. Não há melhor "bússola" para "dar a indicação certa aos empresários para que façam as melhores escolhas" do que o preço da água.

O contador que fez "nascer" água

O preço da água é, de facto, encarado por muitos como uma arma de regulação do consumo não só na agricultura (onde se concentram as maiores ineficiências no uso de água, segundo o Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água, que está a ser revisto) mas também na indústria e no abastecimento urbano. O presidente da Câmara Municipal de Mértola, Jorge Rosa, e Rui Caseiro, o vice-presidente do município de Bragança, estão em regiões muito diferentes do país, mas partilham a experiência de terem visto os consumos baixar depois de assumirem os custos políticos de actualizar as tarifas. Caseiro arrisca mesmo dizer que "o contador é a melhor nascente". Já se vai perceber o que quer dizer com isto.

Até há poucos anos, ninguém pagava água nas aldeias de Bragança. E os mais de 160 furos que abasteciam várias delas esgotavam-se com alguma frequência. O espectáculo repetia-se ciclicamente: camiões-cisterna a levar água aos depósitos das povoações. "Lembro-me de chegar a estar 15 dias sem água", diz Helena Branco, 40 anos, dona do minimercado e presidente da junta de Grijó de Parada, uma típica aldeia de casas de xisto onde não haverá mais de 50 habitantes.

Nesse tempo, o abastecimento era frequentemente interrompido algumas horas por dia. "E quando o sr. Seca, tesoureiro da junta, ia abrir o depósito, toda a gente sabia, porque atravessava a aldeia com uma motoreta que fazia barulho. "Olha lá vai o Seca abrir a água." E pronto, a aldeia toda ia a correr abrir as torneiras, para encher garrafões, não fosse a água faltar mais tarde", conta Helena.

Não resultava muito bem. Como todos abriam as torneiras, os da parte de cima da aldeia não chegavam a ter água "e era sempre uma guerra entre os de cima e os de baixo". Quanto aos garrafões, acabavam muitas vezes por ser despejados sem serem usados. Eram tempos de muito desperdício: "Torneiras abertas, água da rede para regar as hortas, tudo."

A partir do momento em que os contadores foram colocados nas aldeias e a água passou a ser paga, a missão do sr. Seca tornou-se obsoleta. "A pessoas começaram a controlar o contador e a reduzir os consumos", diz Rui Caseiro, e os furos começaram a aguentar-se mais - enfim, este ano voltaram a falhar, mas este ano não é exemplo.

No Norte do país, só no mês de Março, caíram 12 mm de chuva, contra os 70 habituais. Até o abastecimento da cidade de Bragança sofreu - com a câmara a ter de recorrer à captação de água em locais que só costumam ser usados em Junho, Julho.

Grijó como Moredo, outra aldeia de Bragança quase deserta, rodeada de castanheiros e onde uma bucólica fonte de pedra debita água ininterruptamente - irónico, dada a situação -, foram duas das que já precisaram da água das cisternas dos bombeiros, porque as torneiras ameaçavam secar. Álvaro Ramos, que há 82 anos é habitante de Moredo, já não se lembra de quando tinha sido a última vez que tal tinha acontecido.

Os apelos à população de Bragança para que poupe água sucedem-se. E Caseiro garante que não é só quando há seca - o município tem "problemas estruturais de armazenamento de água", que só deverão ser resolvidos quando for construída a nova Barragem das Veiguinhas. A câmara dá o exemplo. "Colocámos redutores de caudal nos equipamentos públicos, substituímos as plantas dos espaços verdes por arbustos que precisam ser menos regados..."

Numa breve visita ao mercado municipal da cidade, pergunte-se a alguns vendedores o que fazem, nas suas casas, para poupar água. A florista deixou de lavar o carro com a mangueira. A vendedora de mel deixou secar a relva do jardim e garante que lá em casa ninguém toma banho de imersão... a mensagem parece passar.

Perante a perspectiva de continuar a chover pouco, o município está a preparar um plano de emergência, que poderá até envolver o Exército, para garantir água às populações. Mas não só. Caseiro admite que uma das propostas desse plano poderá passar por mexer nos tarifários de novo.

A questão do preço da água também tem sido várias vezes debatida em Mértola. Desde que tomou posse, o presidente da câmara, Jorge Rosa, já mexeu no tarifário duas vezes, o que acabou por ser aceite por uma população "que sente na pele" os efeitos de cada ano em que chove pouco. "Tínhamos perdas na rede da ordem dos 60% - havia rupturas e muita água que simplesmente não era contada. Cada monte tinha cinco ou seis fontanários aos quais as pessoas ligavam as mangueiras e regavam as hortas, davam de beber aos animais. Ninguém pagava nada."

As sucessivas secas fizeram toda a gente pensar. Nos últimos anos, houve obras nas condutas e as rupturas foram reduzidas. A taxa de desperdício ronda os 5% nas redes novas. Apostou-se em "campanhas de sensibilização itinerantes, casa a casa, monte a monte". Instalaram-se contadores em todos os edifícios públicos, de balneários a casas mortuárias. "Vou-lhe dar um exemplo do que aconteceu: há uma freguesia que gastava mil m3 por mês, em regas de jardins. Agora gasta 250 m3."

O postal típico: a fila para a fonte

Os problemas de abastecimento de água à população de Mértola são antigos. Metade do concelho bebe água vinda da albufeira do Enxoé. A outra metade é abastecida por mais de cem furos artesianos, que têm pouca capacidade e precisam mesmo de chuva para se irem repondo.

Este sistema tem, evidentemente, impactos ambientais negativos: "Estamos a usar lençóis que devíamos manter", diz Jorge Rosa. E sai caro: "A água é de má qualidade e é preciso ter um sistema de desinfecção em cada localidade, o que é muito oneroso." Há soluções à vista: a ligação do Enxoé ao Alqueva está pronta para ser activada, por exemplo. Mas a verdade é que, historicamente, a população das aldeias de Mértola parece ter mais confiança nos seus próprios furos, ou nas fontes, do que na água da rede, que se deteriora em tempos de seca.

Perto da aldeia de Moreanes, na encosta de um monte florido, as filas de carros são comuns, dizem-nos. Na tarde em que a 2 percorre a estrada, José, 69 anos, e a sua mulher, de 72, fazem o que sempre fizeram: estacionam o carro com o porta-bagagens apinhado de garrafões de plástico vazios e esperam mais de uma hora pela sua vez. Quando os encontramos, enchem garrafão atrás de garrafão, algo embaraçados, porque a fonte está em terras privadas. Usam esta água para beber e cozinhar porque a da rede, dizem, "cheira a mofo".

"As pessoas acham que a água que vem na torneira é má. Mas o que lhes cheira mal é a desinfecção. E o sabor que sentem é a cloro", garante Jorge Rosa, sublinhado que todos os parâmetros de qualidade são cumpridos. "Já a água das fontes antigas e dos poços está, muitas vezes, contaminadíssima com pesticidas, animais mortos, tudo. E não é de todo controlada."

Mas na fila para a fonte ninguém tem dúvidas. "Sempre ouvi que esta água faz bem ao estômago."

sem água ao lado da barragem

Mais a norte, não muito longe de Alqueva, na aldeia que deu o nome à barragem, o cenário dos garrafões repete-se, como explicam Joaquim Caeiro, José Mendes e mais dois amigos, todos na casa dos 70, 80 anos, sentados à mesa de um café no largo da igreja. "Vamos todos à Amieira, a 14 km, a uma fonte muito boa que lá há. Antigamente ia-se de burro, agora, quem pode vai de carro."

Que quem vive à beira do maior reservatório de água de Portugal não beba a água que lhe corre na torneira parece anedota, mas não é - "A nossa água vem do Alvito e vem cheia daquele cheiro a desinfectante. As pessoas nunca se habituaram."

O facto é apenas mais um que ajudará a explicar por que razão a barragem que há décadas enche as páginas dos jornais é tão pouco acarinhada na aldeia de Alqueva. A empolgada voz off do vídeo promocional que passa no centro de atendimento ao visitante de Alqueva, num edifício junto ao paredão da barragem, bem enaltece esta "água que chegou" e fez surgir "culturas que outrora o chão negava", "prados imensos, sustento para o gado, fruta dourada". Mas, na povoação, Joaquim, José e os amigos encolhem os ombros.

Os que cultivam preferem usar a água de furos, que não pagam, à da barragem. Quanto aos turistas, que supostamente iam ajudar a desenvolver a economia local, pouco passam por aqui. O esvaziamento da aldeia não foi travado - "As três escolas que aqui havia está tudo fechado." Não surgiram postos de trabalho. As casas encareceram. Enfim, nem a água da torneira lhes sabe bem...

No Algarve, em Odelouca (concelho de Silves), voltamos a encontrar mais uma povoação que dá o nome a outro grande projecto hídrico, mas que não bebe água da rede. Neste caso, porque a ligação nunca foi feita.

Carlos Alves, um agricultor de 79 anos que não se conforma com o laranjal queimado pela geada negra ("tudo queimado, tudo queimado", repete enquanto corta laranjas, uma atrás da outra, para mostrar aos jornalistas), tem um poço nas traseiras da casa onde vive e um furo à frente do portão. E é dessa água que bebe. "Aqui ninguém tem água da rede, há uns dez anos que nos prometem, mas nada. Quem não tem furos pede emprestado. Ou vêm os bombeiros..."

A barragem de Odelouca, que Carlos Alves, apesar de viver ali tão perto, ainda não viu, foi construída com a promessa de que o Algarve ganharia capacidade para ser sustentável no abastecimento de água pública mesmo em períodos de seca. As obras chegaram a ser suspensas, depois de uma queixa da Liga Para a Protecção da Natureza (LPN), que alertava para os impactos ambientais negativos. Esta ONG sustentava ainda que o que se pretendia, no fundo, era libertar água para os campos de golfe - o tipo de projecto turístico de que se fala sempre que se discute desperdício de água no país.

João Paulo Monteiro, professor da Universidade do Algarve, faz questão de contestar o que defendem muitos ambientalistas: "Os campos de golfe não têm um impacto muito significativo. E usam técnicas de rega que se a agricultura incorporasse andava para a frente 20 anos."

Mas voltando a Odelouca: o projecto acabou mesmo por ser concluído. E, em Fevereiro deste ano, Artur Ribeiro, administrador da Águas do Algarve, garantia que, mesmo que não chovesse nos próximos três anos, a água nas torneiras não faltaria porque, depois da seca de 2005, a empresa tinha feito o "trabalho de casa". O projecto Odelouca, precisamente, fez parte do "trabalho de casa".

As melhorias no abastecimento público da região não passaram, contudo, pela terra que dá o nome ao projecto. Pelo menos para já. E tudo porque a tubagem que levará água da rede até à povoação - àquela e a outras - tem de atravessar oito pontes, que pertencem à Estradas de Portugal, que ainda não autorizou a obra.

"Neste momento (depois de inúmeros acertos e contrariedades, que incluíram a falência da empresa que primeiramente teve a seu cargo o desenho do projecto), o processo está prestes a ser concluído", garante a assessora de imprensa do município, Sandra Moreira.

Odelouca continuará à espera. As caixas onde os contadores deverão ser instalados já lá estão, à porta das casas.

A seara que escapou à seca

Regresso à agricultura. Quem chega ao campo de triticale (um cereal híbrido que resulta do cruzamento do trigo com centeio) de Francisco Palma, 42 anos, não consegue disfarçar a surpresa. A planta dá-lhe pela cintura.

Estamos a 5 de Abril, no concelho de Beja. E ninguém diria que, tal como em tantos outros locais, onde as searas mal descolaram do chão, também aqui choveu pouco. "Tu tens é uma boca da EDIA [Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva] escondida aí, a regar isso, e não dizes nada!!!" - grita um vizinho de Francisco, da janela do jipe, depois de abrandar e de se surpreender com o tamanho do cereal.

O agricultor sorri. Não há rega nesta seara. E a água do Alqueva ainda não chegou aqui. O que aconteceu então?

Francisco faz sementeira directa, o que significa que não mobiliza o solo - "Se metesse aqui uma alfaia secava-o todo, assim mantenho a humidade de um ano para o outro." Para além disso, semeou um pouco mais cedo do que habitual, em Outubro. "E como em Novembro choveu bastante a semente germinou bem" e a falta de chuva que se seguiu fez menos mossa. Nestas coisas, diz, não basta saber. "A sorte conta."

Importante é também escolher as variedades de plantas que mais se adequam (há diferentes tipos de triticale, uns mais resistentes à seca, outros menos, por exemplo). E apostar numa rotação de culturas equilibrada, que ajude a manter o solo com boa qualidade - esta mesma terra tinha no ano passado ervilhas, "que ajudam a fixar azoto" São técnicas que se usam em diferentes partes do mundo, garante. "E se resultam nuns locais, por que não noutros? Temos de nos modernizar. E o sequeiro acaba por ser mais sustentável."

Francisco Palma está longe de corresponder ao perfil típico do agricultor português. As estatísticas dizem que cerca de metade dos que estão activos têm mais de 65 anos e que só 10% têm mais do que o 2.º ciclo do ensino básico. Já Francisco tem um curso superior e iniciou um doutoramento. Há uns anos, o pai, também agricultor, deu-lhe carta branca para fazer o que entendesse. E ele, que tinha acabado de fazer um curso de gestão agrícola em Inglaterra, aceitou o desafio.

Hoje cultiva triticale, girassol, tremocilha, trigo mole, tremoço doce ("Sabia que os tremoços que comemos quando bebemos imperiais vêm quase todos da Austrália?"). E tem ideias muito claras sobre gestão racional da água, questão central na agricultura. "A seca é um fenómeno tão recorrente que Portugal já devia ter mecanismos diferentes para reagir... ela está no ADN do nosso clima e temos de saber viver e conviver com ela."

O que é que falta? Por exemplo, um plano para a agricultura "que nos diga no que é que devemos apostar". À falta dele, o que se tem visto no Alentejo é "olivais a nascer como cogumelos" e gente a querer imitar o que faz o vizinho: "Há subsídios? Vamos lá todos fazer o mesmo!"

Até nas zonas onde o regadio de Alqueva já chegou pouco mais se tem visto do que "um aumento brutal de olival e vinha", diz Maria José Roxo. Partiu-se do pressuposto de que a água resolve tudo, quando, para haver desenvolvimento, é preciso "agricultores com formação, bons solos, culturas adequadas, acompanhamento tecnológico, conhecimento dos mercados".

Rita Alcazar, bióloga da LPN, aponta ainda o dedo ao que lhe faz lembrar as explorações mineiras que sugam o que há para sugar até não restar nada: "Cada oliveira num olival superintensivo consome 80 litros de água por dia - o dobro do que gasta uma pessoa que seja muito gastadora. É insustentável. Mas são estes olivais que têm vindo a substituir muitas searas de sequeiro, e que estão a esgotar os solos, com as doses maciças de químicos que lhes colocam."

Consensos, nesta matéria, há poucos. Uma coisa é certa: "A água é a molécula mais estável que existe. Ela evapora-se, mas há-de voltar a cair em forma de chuva" algures noutro sítio, lembra Gomes da Silva. Por isso, quando se fala de "uso eficiente da água", isso significa que "queremos mantê-la, dentro do possível, na região onde ela é escassa". Medidas para que isso aconteça há muitas. E deviam ser debatidas por toda a população, defende Maria José Roxo. "Devia ser feita uma campanha nacional de sensibilização para o uso eficiente da água. No passado, o seu uso era muito mais racional e há todo um conhecimento (imaterial) que se está a perder. Instalou-se uma atitude de consumismo, o que é grave."

A vinha que bebe do Côa

10 de Abril, 11 da manhã, mudança radical de paisagem. E uma estratégia diferente para lidar com a seca. Sónia Teixeira trabalha para a conhecida casa Ramos Pinto e tem a função de conduzir os turistas à Quinta da Ervamoira, em Vila Nova de Foz Côa. Acha que o cenário - 450 mil pés de videira plantados ao alto numa das zonas mais áridas do Douro Superior - merece uma banda sonora especial. Por isso, no seu jipe, ouve-se As Quatro Estações, de Vivaldi.

Chuva este ano? Pouca, garante. E, apesar das nuvens cinzentas que cobrem a vinha, os dados fornecidos pela estação meteorológica de Ervamoira são claros: entre Novembro e Março, registou-se uma precipitação acumulada de 110 mm, contra 259 mm no ano passado.

Em Ervamoira contudo, pelo menos por agora, não há sinal de que a seca tenha afectado as vinhas. Por uma razão: são regadas.

A rega de vinha no Douro, a primeira região vinícola demarcada e regulamentada do mundo, só é permitida em condições excepcionais, em situações extremas de défice hídrico, reconhecidas pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto.

João Nicolau de Almeida, administrador e enólogo da Ramos Pinto, defende que, com um clima cada vez "menos regular", ela é essencial. "Ainda há a ideia de que a rega é para fazer aumentar a quantidade. Mas não. Fizemos vários estudos e concluímos que o vinho é melhor se há rega."

Um sistema gota a gota, que se alimenta a partir do Rio Côa, assegura que as vinhas recebem a quantidade de água exacta que necessitam em cada momento. Para além disso, outros cuidados são tidos. "A escolha dos porta-enxertos, a poda, o tratamento das terras, tudo isso interfere na quantidade de água que a planta retém."

Máximo de Almeida, 78 anos, um pequeno vitivinicultor (3 hectares) da zona do Côa não tem uma opinião definitiva sobre um assunto definitivamente polémico, sobretudo numa região onde a água não abunda. Certo é que as suas vinhas, não regadas, estão atrasadas um mês. "E toda a gente está a dizer que vai haver menos vinho por causa da falta de água."

Ou seja, será mesmo a rega a solução?

A dança das aves e das vacas

No Alentejo, na Zona de Protecção Especial para as Aves (ZPE) do Campo Branco, a guerra contra a seca também se trava com os olhos postos nas aves.

Rita Alcazar faz parte da equipa da LPN, em Castro Verde, que está a tentar que não se repita o que aconteceu em 2005. Na altura, houve menos água disponível - "a abetarda, por exemplo, bebe água, ao contrário de outras aves", diz -, menos alimento e "os pastos estavam tão debilitados que não havia condições para elas fazerem os ninhos". Resultado: em 2006, nasceram menos crias e a taxa de mortalidade jovem subiu. O que é dramático quando se sabe, por exemplo, que em Castro Verde vivem 1300 abetardas (uma das maiores aves voadoras do mundo) que representam 80% da população do país.

Desde então, bebedouros foram espalhados em vários locais nesta paisagem despida de árvores, casa de algumas espécies ameaçadas. E "faz-se o espalhamento de sementes à mão", porque há menos alimento naturalmente disponível. Estando numa ZPE, os agricultores recebem compensações pelas medidas que põem em prática - por exemplo, o cultivo de determinadas áreas de leguminosas, especificamente para as aves se alimentarem.

Todos parecem trabalhar com gosto nisto. José da Luz, 67 anos, criador de vacas, é um deles. À medida que vai mostrando a propriedade onde tem 180 animais, mostra também os refúgios das aves. "Vêm muitos turistas", conta com orgulho. "Ficam horas a olhar."

O entusiasmo esvai-se quando chega o momento de repetir um ritual que a seca impôs - já não para cuidar das abetardas, mas das suas vacas. Um funcionário enche uma carrinha de caixa aberta com "tacos de farinha", que José da Luz compra aos sacos de 500 quilos. E dirigem-se para uma zona de pastoreio.

Mal avistam a carrinha, as vacas, algumas com 600 kg, começam a correr em direcção a ela com uma agilidade tal que parecem não ter mais de 60. Vêm aos ziguezagues, como se dançassem. José da Luz conduz devagarinho a viatura pelo campo, o funcionário vai atirando ração. E as vacas disputam com violência cada pedaço. "Esta operação é uma coisa que costumamos fazer até meados de Janeiro. Em Abril é impensável. O pasto devia chegar."

As vacas do Campo Branco, como as ovelhas da Serra da Estrela, também andam com fome. Já as abetardas parecem bem. Março e Abril são meses de paradas nupciais e elas estão bastante concentradas nisso.

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