Primeiro os diamantes, agora o ecoturismo

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A paisagem, com características geológicas muito marcadas, é uma sucessão interminável de morros, cachoeiras, grutas, poços ou quedas de água

A procura de diamantes desenvolveu a Chapada Diamantina, mas também a exauriu. A criação de um parque natural e a ajuda de uma telenovela reviraram-lhe o destino. De uma geração para a outra, o pai deixou o garimpo, o filho quis o ecoturismo. Há uma velha história para conhecer e uma nova para contar. Amílcar Correia (textos) e Adriano Miranda (fotos)

as mãos de Coriolano são como o fundo do Paraguaçu. O cascalho do leito deste e de outros rios da Chapada Diamantina deslizou pelas suas mãos até estas ficarem tão gastas e raspadas como a sua bateia mais gasta e mais raspada. Coriolano Rocha de Oliveira viveu o seu ofício de garimpeiro desde os 12 anos e durante 65 viveu de garimpo em garimpo. Há sete que este homem de 84 anos insiste em recordar, no seu improvisado garimpo caseiro, o que foram os diamantes para várias gerações de homens do Nordeste brasileiro entre meados do século XIX e o princípio do século XX.

Na Rua dos Negros, em Lençóis, a principal cidade desta região do Estado da Bahia, no Nordeste do Brasil, Coriolano reconstituiu uma "toca".

A "toca" - uma réplica daquela que habitava no tempo em que garimpava - é uma tosca habitação de um só compartimento, com catre e espaço para acender o lume, revestida a barro e coberta por folhas de palmeira. Lá dentro, estão todos os velhos e enferrujados utensílios do dia-a-dia da autêntica tarefa de Sísifo que era e é a procura de diamantes. O que este antigo garimpeiro faz em casa é a demonstração viva de um passado que ocupou e desgastou demasiados homens que escavaram a Chapada com a esperança de enriquecer ou, na maioria dos casos, de enganar a fome e alimentar a família.

Num picual, um cilindro oco de raiz de imbé, como sempre fez, Coriolano guardou três diamantes de diferentes espécies, com os quais reproduzia, até há pouco tempo, até ser proibido pelo médico, a arte de os misturar num tanque com o cascalho do fundo de um rio, de os recolher com uma bateia e de os recuperar de novo. "Já me chamaram doido, mas encontro sempre [os diamantes]. Haja coluna." E agora, aos 84 anos, há que o reconhecer, há cada vez menos.

Alfrânio Peixoto, erudito de Lençóis, romancista, ensaísta, político, médico e, entre outras coisas, autor de Viagens na Minha Terra, livro de deambulações por Portugal, escreveu vários livros e compilou as Trovas Brasileiras - Populares: popularizadas. Numa estante da sua casa-museu, entre o centro da cidade e a casa do garimpeiro, é possível escolher e dedicar uma das trovas populares às mãos - e à coluna - de Coriolano. "Esperteza e Bom Senso: As idades neste mundo/têm os quinhões desiguais/moço pode, mas não sabe/velho quer, não pode mais".

Pode-se dizer que Coriolano foi esperto e sensato, não se pode dizer que Coriolano tenha enriquecido, "porque o patrão ficava com o dinheiro todo". Mas o velho garimpeiro teve um percurso diferente de quase todos os outros. Daqueles que, em momentos de embriaguez diamantífera, gastavam o que tinham e o que ainda não tinham em mais álcool e em mais raparigas. Ou que o despendiam em filantrópicos actos de religiosidade, como o caso do mãos-largas que erigiu a Igreja de São Sebastião em Igatu, diante do local onde descobrira o valioso diamante e que, claro, regressou ao garimpo mal se esgotou o dinheiro da venda. Mas pode-se dizer dele o que João Ubaldo Ribeiro dizia do seu Tertuliano: "Não vivera uma vida gloriosa porque não era seu destino."

Coriolano, que voltou a casa, definitivamente, quando a água começou a escoar, muito por culpa dos efeitos de assoreamento do garimpo e dos períodos de seca, é a memória viva do garimpo; um garimpeiro modelar, a crer na sua própria definição: "Aprendi a arte com meu pai e ainda hoje visto a minha roupa branca de garimpeiro, com pano de Valença. Recebo muitas escolas para explicar como se fazia o garimpo e tenho este livro aqui com os nomes de quem me visita. Não gastei o dinheiro em bebida e em mulheres", insiste, "e construí esta casa onde vivo com meus filhos".

Coriolano teve sete filhos e "todos se formaram no Magistério, mas só dois executam a profissão [de professores] ". Alguns chegaram a fazer garimpo com o pai e um deles era mesmo um talismã. Nas três vezes em que acompanhou Coriolano, Sílvio desencantou diamantes. Os outros garimpeiros pediam ao pai que o levasse sempre e sempre, mas Sílvio Rocha de Oliveira quis outra vida. A sua vida, de portas abertas, sentado a uma secretária, é dupla: tem uma agência que vende serviços de ecoturismo - "menos passagem aérea" - e um punhado de computadores para acesso à Internet - "a mais rápida da Chapada".

A Ecotur ocupa o rés-do-chão de um edifício, de portas esguias e altas, de um verde esmaecido, na Praça de Horácio de Matos, o centro de gravidade de Lençóis, cujo edifico mais alto, de três pisos, foi em tempos o consulado francês. Estávamos na primeira metade do século XIX e a economia da região crescia com os diamantes de Lençóis, Iraquara, Andaraí, Mucugê, Igatu e Ibicoara. "Meu pai", diz Sílvio, com um sorriso branco, "tem três páginas no Google e foi o actor principal deste documentário [Jardim de Plástico, de Delmar Araújo]". De uma geração para a outra, o pai deixou o garimpo e o filho dedicou-se ao ecoturismo.

Dois factos contribuíram para a transição, explica Sílvio, de 42 anos. "Primeiro, o impulso maior foi a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina em 1985 e, depois, a novela Pedra sobre Pedra, de 1992". A novela com Renata Sorrah e Lima Duarte, da Rede Globo, teve 178 capítulos e um papel importante na divulgação das riquezas naturais da Chapada Diamantina.

Com uma agricultura paupérrima, numa região ainda mal refeita do capítulo final da exploração diamantífera, o turismo surgiu como salvação natural para quem descobriu um novo filão que, embora não garantisse riqueza, era sinónimo de mais e melhor subsistência. "As pessoas ganham mais agora que na agricultura", observa, "e os jovens querem profissionalizar-se: toda a gente tem um único meio económico no turismo".

Lá fora, à medida que o sol vai rodando, pessoas e animais vão seguindo o ciclo da sombra e, de quando em vez, um carro ou uma das muitas motorizadas sobem o empedrado, num bamboleio de pneus sem pressa. Nesta praça de homenagem ao antigo coronel de Lençóis, semelhante a uma versão nordestina de Paraty, só o Banco do Brasil conseguiu destruir a harmonia herdada, como uma peça de Lego no local e na proporção errada.

Hoje, Coriolano reinventou-se e até faz sorvetes de umbu para o restaurante da filha, o Bode.

Chamam ao Paraguaçu "a caixa de água da Bahia". Será que um dia o próprio rio será tão seco quanto as mãos do antigo garimpeiro?

Hopetown ou São Paulo?

Lençóis, a 417 quilómetros de Salvador, a capital do estado, é a porta de entrada na Chapada Diamantina - um parque com uma área de mais de 70 mil quilómetros quadrados. É aconselhável montar a partir desta cidade património nacional qualquer roteiro pelos inúmeros caminhos deste parque natural, um dos maiores do país. A cidade não tem mais de 10 mil habitantes, mas possui uma impressionante concentração de hotéis de qualidade, bons restaurantes e alguns bares de bom gosto.

É nesta cidade que se encontram os serviços e ofertas de guias para trekkings no Morro do Pai Inácio, visitas aos poços Encantado e Azul, às grutas da Lapa Doce e da Pratinha ou às inevitáveis cachoeiras, a mais célebre das quais é a da Fumaça e a mais recôndita a do Buracão, para lá desse fim do mundo que é Ibicoara (ver texto nas páginas seguintes). Entre Lençóis e Ibicoara existem outras cidades que viveram da procura de diamantes e que agora vivem do ecoturismo, o que não é um engodo político e populista, e que se tornou em algo valioso e incriticável para quem aqui vive. Para o secretário do Turismo do Governo estadual da Bahia, o ecoturismo foi um "avanço civilizatório", por ter "conduzido a administração municipal a considerar a preservação da natureza como um modelo de negócio". O negócio de que Domingos Leonel fala consiste em "preservar a natureza e os valores culturais".

As pequenas localidades como Andaraí, Mucugê ou Capão, com as suas reminiscências africanas, adormecem após o almoço, porque o sol assim as obriga, e sentam-se, à noite, em cadeiras de plástico à porta de casa. São cidades com poucos milhares de habitantes, algum comércio local, apenas o suficiente, um posto de correio, às vezes um banco, o que não é garantia de que se possa fazer algo rápido e de que uma caixa multibanco funcione, e uma praça à volta da qual tudo gira. O tempo escorre lentamente. As cidades vão curando as cicatrizes, longas mazelas de um longo intervalo entre os tempos do garimpo e os tempos mais aceitáveis de hoje, numa economia empurrada pela Petrobás para o estatuto de sexta economia mundial.

As primeiras jazidas de diamantes na Chapada foram descobertas na década de 40 do século XIX, o ecoturismo é uma certeza deste século. A gula chamou sertanejos e famílias do Recôncavo baiano; das cidades sobranceiras à Baía de Todos os Santos. Nessa altura, Igatu, a 114 quilómetros de Lençóis e a 800 de altitude, tinha cerca de 9 mil habitantes, hoje tem 400. A rápida ascensão e queda do negócio dos diamantes na Chapada Diamantina, bem como em outros pontos do Brasil, tiveram uma explicação tão prosaica quanto acidental. Porque foi por mero acidente que uma criança encontrou um diamante, em 1866, numa fazenda nas margens do rio Orange, em Hopetown, na colónia britânica do Cabo, na África do Sul, 22 anos depois de ter sido encontrado o primeiro diamante em Mucugê. Há nomes que são um presságio. A rápida descoberta do valor daquela pedra, e a descoberta de muitas outras em outros locais do gigante da África austral, chamou aventureiros de todos os cantos e desviou o investimento no garimpo do Nordeste brasileiro. Os jornais do Cabo chamavam-lhe "diamonds fever", lembra Martin Meredith em Diamonds, Gold and War - The Making of South África.

"Com a decadência do garimpo, na década de 1960, os habitantes foram emigrando para São Paulo; vendiam portas e telhas em cidades vizinhas, que se estavam desenvolvendo", conta Marcos Zacariades. "Os que ficaram, para matar fome e miséria, comiam roedores e répteis." Marcos deixou Salvador há oito anos e veio habitar este cenário de "filme medieval", como lhe chamou o jornal Folha de São Paulo, com as suas "ruínas e casas de pedra entremeadas por casas de alvenaria", porque "estava tudo por fazer" e, acima de tudo, o que é uma espécie de máxima, "porque temos de acreditar no inusitado".

Inusitado é a palavra correcta para descrever o trabalho, o empenho e as intenções de Marcos em Igatu: reanimou um centro cultural, criou uma galeria de arte e um espaço de exposição de velhos utensílios do garimpo e quer construir um museu dedicado a esta actividade e à preservação da sua memória, com uma forte componente virtual e multimédia, cuja referência estética e arquitectónica são as obras de Eduardo Souto Moura.

Marcos sabe que é impossível recuperar o passado tal como ele era, como se fosse realizável viver num livro de Herberto Sales, um escritor de Andaraí com uma vasta bibliografia, alguma da qual dedicada ao garimpo, como num dos seus livros mais conhecidos: O Cascalho. Mas também sabe que o local onde habita se chamou em tempos Bairro Luís dos Santos e que é um cemitério de ruínas de antigas casas de garimpeiros, circundado por mata atlântica quase intocável, numa mistura umbilical com as pedras dispostas aleatoriamente pela paisagem como se fossem pedras-pomes, que lhe valeu a classificação de património nacional. A criação, aqui, de um parque municipal é só um começo.

A Machu Picchu baiana

Igatu é, de resto, uma cidade inusitada. Chamam-lhe a Machu Picchu baiana, o que será sempre uma hipérbole se comparada com a verdadeira, mas não deixa de ser acertada se a compararmos com a sede do município a que pertence, Andaraí. Mas quem conhecer Humberto Leite e a sua gruna, um garimpo subterrâneo, cujo nome se deve ao facto de não ser uma abertura natural e de ter sido aberta por humanos, conhecerá o verdadeiro inusitado.

Humberto Lopes, mais conhecido por Badega, "um objecto grande", está sentado num tronco tombado, protegendo-se do sol da hora de almoço. Ele é um dos três membros de uma associação que se entregou à tarefa de reconstruir a memória deste antigo garimpo de diamantes, escavado numa rocha, da qual se soltou água suficiente para fazer um poço substancial à entrada. A associação Gruna Brejo/Verruga conseguiu recuperar 80 nomes dos 250 garimpeiros que constituíram "a última turma" a trabalhar ali, na década de 1950. E destes 80, 45 ressuscitaram no interior da gruna.

Basta seguir Humberto por um corredor lateral ao poço, mergulhar os pés na água e na areia e percorrer o labirinto caprichoso e estreito. À medida que vai deixando milimetricamente espalhadas as velas que mal nos iluminam os passos e o tecto, Humberto conduz-nos por várias alas até chegarmos à câmara principal; a das esculturas de barro deitadas sobre tabuleiros.

Cada uma das 45 esculturas - todas do mesmo tamanho - tem um nome e uma intenção: a de reproduzir com fidelidade a expressão facial de um determinado garimpeiro. Humberto, o Badega, sabe pormenores sobre todos eles, inclusive sobre João Gringo, um moço que sabia o suficiente de motores para se transferir do Rio de Janeiro para a então próspera Igatu, onde ficou a cuidar do funcionamento e manutenção das bombas hidráulicas. Numa terra onde as pessoas são conhecidas pelos apelidos de família, Gringo ainda diz alguma coisa em Igatu e Andaraí.

Se é verdade o que Dalmon Galgut escreveu num dos seus livros de viagem, que "aquilo de que não nos lembramos nunca aconteceu", então é forçoso reconhecer que a evocação destes homens faz com que eles nunca mais desapareçam desta gruna. Porque o que faz Humberto, no interior destes corredores húmidos, é acender a memória de cada um deles, partilhar o seu ritual com os poucos visitantes que sabem da sua existência. Longe dos roteiros turísticas, visitar a gruna de Igatu é participar numa viagem com o seu quê de místico na minúscula Machu Picchu nordestina.

Basta procurar o Badega. Ele lá estará, sentado num tronco, de chapéu na cabeça e um pacote de velas no bolso. As mãos do Badega são escuras como o fundo da gruna.

A Fugas viajou a convite do Turismo da Bahia

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