Há uma mulher em Portugal que leva a cerveja muito a sério

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Jorge Miguel Gonçalves/NFactos

Beatriz Carvalho, a única beer sommelier portuguesa, guia-nos no mundo da mais universal das bebidas alcoólicas. Se acha que beber cerveja é só escolher entre duas marcas e pressão ou garrafa, esta é uma jornada surpreendente.

Para Beatriz Carvalho não existe essa coisa de passar ao de leve pelos assuntos. Principalmente quando está em causa a grande paixão profissional da sua vida, a cerveja. E é por isso que o artigo de Miguel Esteves Cardoso na Fugas de 23 de Junho está sobre a mesa nas instalações da Unicer em Leça do Balio: apesar do sentido elogio do colunista à cerveja fresquinha que acompanha os salgados tremoços (e vice-versa), a mestre cervejeira ficou desconfortável. "Um alimento salgado não harmoniza com a cerveja. Quando li este artigo, fui estudar o tremoço. É um alimento saciante, não convida a repetir. E a cerveja tem de ser mais do que apenas um acompanhamento."

E isto é só uma amostra de como esta mulher, 49 anos, licenciada em Engenharia Química pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa e única mulher mestre cervejeira em Portugal, encara o tema da cerveja. Nada é despiciendo, nada pode ser deixado ao acaso, o pormenor é o segredo do sucesso. Bom, para sermos mais exactos, a atenção ao pormenor é o segredo do sucesso. E, para chegarmos a esse pormenor, é preciso trabalhar. "A inspiração é importante, mas é preciso esforço, esforço, esforço. Em Portugal, as pessoas querem respostas e soluções imediatas... Mas não é assim."

Este discurso até pode parecer contraproducente vindo de alguém cuja vida é dedicada a criar. No caso, novas cervejas. Mas uma pequena viagem pelo processo produtivo da cerveja mostra bem que há muito mais em jogo do que a mera iluminação do génio de laboratório. "É um trabalho de equipa", nunca se cansa de repetir Beatriz Carvalho, para quem não há "tarefas menores": "Quando é preciso arrumar um armazém, também estou lá para isso. Não se vira a cara a nada."

Não é só por esta disponibilidade que Beatriz é uma ave rara. Na verdade, o simples facto de ser mestre cervejeira já a coloca num universo restrito, num mundo tradicionalmente dominado pelos homens. E quando decidiu fazer um curso de beer sommelier (o especialista que, à semelhança do que acontece com os vinhos, está habilitado a sugerir harmonizações com comida, elaborar cartas, aconselhar os consumidores) então reforçou ainda mais o seu estatuto. Em termos genéricos, pode definir-se que um mestre cervejeiro trabalha na área da produção e um beer sommelier se centra na perspectiva do consumo.

Beatriz Carvalho domina ambas as competências. E não são muitas as mulheres, mesmo a nível mundial, que lhe façam companhia. "Quando fiz o curso [de sommelier], éramos três mulheres em 14 formandos", explica, para logo a seguir definir melhor este universo: "Para além dessas, só deve haver mais umas duas ou três."

Mas para que serve um profissional competente e habilitado se a sua área de trabalho é quase inexistente? Que falta faz uma pessoa que nos pode ajudar a escolher a cerveja mais adequada para acompanhar cada prato se raramente encontramos mais do que duas ou três opções da bebida? "É uma questão de saber o que vem primeiro. Na verdade, terão de crescer juntos: o hábito de ter uma carta de cervejas e a existência de um especialista que possa auxiliar os consumidores."

Aliás, há aqui um pequeno lapso de Beatriz Carvalho. Ela já antes tinha frisado que não gosta de falar em "consumidores" de cerveja. Prefere "apreciadores". E isto define bem a sua relação com o universo da cerveja. "Os consumidores têm alma, a cerveja também tem de ter alma." Esta "consumidora moderada" às refeições fala com espírito de missão: "É preciso dar à cerveja a dignidade que ela merece!"

Inspiração e transpiração

Tendo como cenário a fábrica da Unicer em Leça do Balio e como guia a mestre cervejeira e beer sommelier, eis uma bela ocasião para viajar pelo mundo da cerveja. Para Beatriz Carvalho, isto é uma segunda casa. Enfim, talvez terceira, se considerarmos apenas o factor cronológico. "Quando vim para cá, em 1987, para um estágio, nem sabia onde era Leça do Balio, nem conhecia o Porto... Mesmo depois de conhecer a fábrica e a cidade, nunca pensei que fosse definitivo. A família e os amigos, tudo tinha ficado em Lisboa..."

Mas então o cenário mudou. "Saí do Técnico com a cabeça cheia de fórmulas e certezas, mas depois veio o contacto com a prática, os processos, as pessoas. Fiquei fascinada." E atirou-se de cabeça, como sempre faz em tudo o que se envolve. "Levei banhos de cerveja e mosto, carreguei grades... faz tudo parte!" Dois anos depois, entrou para os quadros da empresa, onde se mantém, também - diz ela - graças à "elasticidade" dos que a rodeiam. "Sou atípica na forma de estar, às vezes algo irreverente. Por vezes a intuição leva-me a fazer coisas um bocadinho fora dos caminhos normais..."

Saímos da sala para a zona do laboratório. Ali (e a Unicer dispõe de tecnologia de ponta a nível mundial), faz-se o trabalho C.S.I. que muitos de nós só conhecemos das séries de televisão. "Agora já não faço análises", confessa Beatriz. "Tenho a sorte de pedir a colegas, que as fazem!"

Em frente para a instalação-piloto, onde várias cubas de 500 litros permitem desenvolver novos produtos. O trajecto normal é a ideia, sob a forma de um perfil de consumidor, vir da área do marketing, para depois os investigadores modelarem uma cerveja que se enquadre. O trabalho pode ser apaixonante, mas duro. E, tantas vezes, ingrato. "No caso da Abadia, testámos 50 fórmulas até chegarmos ao produto final", recorda a mestre cervejeira da Unicer. É preciso esperar duas a três semanas pela fermentação de uma determinada fórmula. E depois repetir tudo, se os resultados não forem os esperados.

É nestas fases que a inspiração, o factor humano, pode fazer a diferença. Mas não há "ideia, por mais arrojada que seja", que funcione sozinha. "Às vezes as intuições estão certas, outras vezes dão errado..." Por isso, a base de trabalho tem de ser outra. Mas qual? "Há todo um repositório de conhecimentos, experiências, que já temos. Inovar exige abertura para fora, para o mundo. Não respondemos bem à necessidade de inovar se estivermos fechados numa sala."

Foi assim que Beatriz se sentiu no Técnico, enquanto estudante. "A licenciatura ocupava a minha vida. Aqui, no trabalho, é diferente. É preciso estarmos atentos ao mundo, os apreciadores, os vendedores, as tendências. Tudo nos serve de inspiração." Beatriz reforça que se trata de um trabalho de equipa, mas também revela que há alturas em que tem necessidade de ficar sozinha, "concentrada a 300%".

Poderia ser uma tentação levar trabalho para casa, mas ela não se pode dar a esse luxo. Em casa estão os três filhos, de 9, 13 e 15 anos. E a necessidade, verdadeiramente emocional, de fazer exercício físico. Ela levanta-se todos os dias às seis da manhã para os seus 40 minutos de ginásio. "É um momento super-importante. E, vistas bem as coisas, este hábito acaba por me livrar de outros, como ficar a ver televisão à noite..."

Cerveja e comida

Adiante, para a mini-fábrica, onde a capacidade das cubas sobe para os 2000 litros. Aqui ganham forma as cervejas especiais, mas também se realizam testes intermédios de novos produtos. Quando se misturam organismos vivos, como as leveduras, num caldo de nutrientes (os cereais, a água) muita coisa pode acontecer. "A levedura transmite para o produto se está em sofrimento, sob stress. Só há um bom produto se a levedura estiver feliz e contente. Já tive ocasiões de passar meses até perceber o que ela quer." Ignora os sorrisos quase trocistas. "Pode crer, aquele serzinho dá muita luta!"

Entramos na sala de provas, onde ainda se encontram dezenas de copos, meio cheios com líquidos de várias cores e densidades (e também alguns com água). "Aqui o factor humano é incontornável. Podemos ter um processo perfeito e uma fórmula certa e mesmo assim surgirem sabores e aromas indesejáveis. É preciso provar, cheirar", reforça Beatriz.

Foi nesta área do processo de produção que ela sentiu a necessidade de procurar uma linguagem que lhe permitisse comunicar melhor. "Ttirar o curso de sommelier ajudou-me imenso." Os cursos realizavam-se na Alemanha ou no Brasil. Beatriz queria mergulhar na cultura onde se "respira cerveja". Ou seja, na Alemanha. Mas não falava alemão. E então surgiu um curso em italiano.

Italiano? Sim, para ela é uma língua materna. Literalmente. Filha de pai português e mãe italiana, nasceu perto de Génova. "Falei sempre em português com o meu pai, mas quando aprendi a falar era o italiano. E tenho muitas recordações, cheiros, sabores de Itália." Após duas semanas de curso, perto de Munique, Beatriz saiu com o título de beer sommelier e uma reforçada capacidade para "explicar a cerveja de uma forma clara, efectiva e organizada".

E isso é exactamente o quê? Por esta altura já deixámos para trás os grandes moinhos de cereal e a linha de enchimento. Regressámos à sala onde a conversa começou. Beatriz Carvalho vai buscar o copo de sommelier de cerveja. Isso e uma tabela de harmonizações. Para quem percorreu este artigo à espera de sugestões práticas, chegou o momento.

O ritual de avaliação de uma cerveja segue passos precisos, coincidentes com os nossos sentidos. Primeiro olha-se: reconhece-se a cor, o brilho, a densidade, a libertação de gás, a espuma. A seguir cheira-se. E depois prova-se: avaliamos o efeito do gás na boca, o sabor, o corpo, a sensação final. Sim, há muito mais numa cerveja do que o velho estereótipo de estar fresca e viva...

Assim que a comida nos chegue à mesa, há algumas regras básicas a ter em conta. Beatriz Carvalho mostra uma tabela, onde se cruzam os sabores dos alimentos (ácido, salgado, doce, amargo) com os das cervejas (ácidas, doces, amargas, encorpadas). É um exercício linear, mas cada um pode criar a sua tabela. O que o bom senso diz é que as cervejas leves combinam com pratos leves e as mais encorpadas com pratos mais complexos. Uma pilsener pode ser bebida como entrada, mas também acompanha saladas, peixes, carne guisada, pratos não muito intensos. Para peixe, recomenda-se uma weiss ou as blanches. As aves vão bem com as escuras e bocks - e as mais intensas destas recomendam-se para alinharem ao lado dos pratos de caça e carnes vermelhas. Até os doces podem combinar bem com uma cerveja escura.

Uma coisa é certa. Pode beber-se cerveja com muitos objectivos. "E até sem objectivo, apenas porque sabe bem e é fresca", acrescenta Beatriz Carvalho. Mas sempre com uma certeza: "A cerveja aparece muitas vezes associada a excessos e não é justo. Na verdade, é uma bebida pura. É feita com processos naturais, sem conservantes, tem menos calorias do que o vinho e um grau de álcool moderado."

Se está preocupado com a linha neste Verão, exactamente a altura em que mais a mão escorrega para o copo, talvez seja de prestar atenção ao que come com a cerveja. Porque é aí que reside a bomba calórica. Há estudos que apontam um litro para os homens e meio litro para as mulheres como um consumo diário moderado. Ou, como salienta Beatriz Carvalho: "Uma cerveja é bom, duas é melhor; quatro é demais."

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