Um mistério resolvido com as pontas dos dedos

Original e refrescante, Her Story tem trunfos suficientes para cativar o jogador até o seu final.

Her Story

Antes de ficarmos a saber que “o tempo é uma superfície plana”, outra das frases mais reproduzidas pelos fãs de True Detective ficou cunhada no final do primeiro episódio da primeira temporada: “Então comecem a fazer as perguntas certas,” retorquiu Rust a quem o entrevistava, deixando quem via com vontade de continuar a fazê-lo. Pizzolatto acabaria por escrever uma primeira temporada memorável, ao que se aliou a cinematografia de Fukunaga. O espectador, por entre palpites e adivinhações semanais, acabaria por obter quase todas as respostas àquelas perguntas “certas”.

Her Story é um videojogo que vive muito dessa filosofia, mas, em vez de termos que perguntar assertivamente, somos incutidos com a tarefa de fazer as pesquisas certas. O personagem não vai de porta em porta indagar soluções, aliás, nunca o vemos e só sai do seu lugar no final da investigação para dar lugar aos créditos; não tem sirene no tejadilho do carro nem interpreta o polícia mau/polícia bom; muito menos tem que ver corpos desfigurados à procura de clichés debaixo das unhas. Sentado em frente a um monitor, tudo o que tem à sua disposição é uma base de dados da polícia.

O jogador vai-se apercebendo aos poucos do que tem pela frente depois das luzes da sala se acenderem. Um monitor exibe um sistema operativo datado com alguns ficheiros espalhados pelo ambiente de trabalho, um caixote de reciclagem e uma janela com sessão iniciada na já mencionada base de dados. Termo(s) de pesquisa: MURDER — assim, em maiúsculas e tudo. Do alto do ponto de interrogação que se formou na mente de quem joga entra em acção o instinto de pressionar Enter e ver o que acontece. E o que acontece é o início de uma obsessão que muito provavelmente só será domada dali a algumas horas.

No cerne de Her Story estão uma morte e uma investigação. A base de dados que temos à disposição é composta por diversos vídeos de depoimentos: Hannah Smith está a ser investigada pela morte de Simon, o seu marido. É suspeita, sim, mas a única certeza que há inicialmente é a morte. Depois de pressionar Enter como descrito no parágrafo anterior, o jogador vê aparecer à sua frente quatro depoimentos em vídeo de Hannah — e são mesmo vídeos, recorrendo a uma actriz de carne e osso, Viva Seifert, ou seja, estamos perante um jogo FMV, algo que parecia improvável depois de Night Trap.

Vemos o quarteto de vídeos com os depoimentos. Optando pelo cliché, muitos coçariam o queixo, mas é mais provável que a maioria fique a olhar para o ecrã. E agora? O comportamento do jogador é imprevisível, mas é natural que recorram aos ficheiros de ajuda presentes no ambiente de trabalho virtual, aqui dissimulados dos tão familiares readme.txt. Este tipo de abordagens é perigoso: deixar o jogador entregue a si próprio, à sua dedução, pode resultar em frustração com um estalar de dedos. Contudo, Her Story é apresentado de uma forma intuitiva, o mínimo para que a lógica seja rever os vídeos e introduzir frases que nos tenham chamado à atenção.

A legendagem, ainda que em inglês, ajuda: se Hannah disse isto, deixem-me usar esta frase ou expressão para ver o que a base de dados me devolve. Mais dois ou três vídeos ou zero. Vemos o que há de novo, apagamos linhas de pensamento que não levam a lado algum. Não tarda é preciso um bloco de notas real para apontar as linhas narrativas; não tarda estamos a dançar com a confusão e a adorar cada passo, atirando barro à parede, seguindo processo lógicos; “o jogo há-de explicar tudo isto,” penso; vou tentar inserir na base de dados “kill”, “death”, “confession”, colocando em prática tudo o que as obras de entretenimento com detectives me ensinaram. “Será que ‘gun’ e ‘knife’ resultam? Ou ‘lie’, talvez ´lie’ resulte. As expressões inseridas na base de dados virtual pelo jogador devolvem palavras usadas pela actriz nos seus depoimentos.

Vejo que tem uma tatuagem e procuro-a em inglês, o que resulta em duas, três, quatro palavras ditas em frente à câmara que quero investigar. O jogador está sempre no elástico que encolhe e estica consoante a sua perspicácia. Mais um ou dois desenvolvimentos e o bloco de notas físico é necessário: onde é que esta narrativa me está a levar? Será que estou a falhar algum pormenor? São vídeos virtuais e ninguém ganhará algo por resolver um caso fictício, mas há uma obsessão latente por pormenores impregnada na mente dos jogadores que estão a viver o papel que já viram tantas vezes interpretado.

Há uma pergunta transversal o toda esta folia digital: será que Hannah matou o seu marido? Her Story resulta muito bem porque nunca deixa o jogador atento num beco sem saída. É verdade que ocasionalmente me faltou a ideia de como avançar na investigação; contudo, é uma narrativa tão rica em pormenores que não é difícil recuar e seguir por outro caminho lógico, ou outro caminho, ou outro caminho. A arquitectura do jogo foi pensada para que não haja apenas uma, duas ou três linhas de pensamento válidas: o jogador está entregue a si próprio e é pela sua cabeça que verá os créditos.

Sam Barlow, criador e argumentista da obra que já tinha chamado a atenção com Silent Hill: Shattered Memories, certificou-se de que não estamos perante um simulador de Access ou SQL ao espicaçar constantemente a curiosidade de quem joga, especialmente numa revelação passados 30 ou 40 minutos que coloca tudo em questão. Como não há uma linha definida, a descoberta está dependente do ritmo e da lógica de cada um. A verdade é que adiciona várias camadas à trama e levanta especulação sobre Hannah e outras personagens que entretanto fomos encontrando pelos nomes deixados nos depoimentos.

Quem pensa que, apesar dos vídeos diversificarem o tom do jogo, estamos perante uma tarefa monótona, convém salientar que todos os que jogarem Her Story têm que ter acesso à Internet, pois o jogo não está disponível em formato físico, e todos os que têm acesso à Internet usam um motor de busca diariamente num acto irreflectido. Quando usam o Google para procurar algo e o resultado não é o que precisam, corrigem as palavras introduzidas, ajustam a linha de raciocínio, experimentam. Pois bem, procurar quem matou Simon não é muito menos intuitivo que isso, que o quotidiano de tantos.

E ainda que satisfatório, o final termina com uma vírgula e não com um ponto final, levando-me a debater ainda hoje, dezenas de horas depois de o ter terminado, a perguntar-me sobre tudo o que levou a este desfecho e, mais concretamente, a ficar encantado pela profundidade dos personagens, incluindo quem o jogo revela estar a fazer estas pesquisas na base de dados. As teorias acumulam-se, tanto quanto o apertar do escrutínio a tudo o que Barlow escreveu. É bom, incita o debate, a exploração dos pontos de vista, ainda que tal não fosse preciso para que Her Story fosse lembrado.

Claro que não é perfeito, claro que os jogadores que não falam inglês não terão hipótese e mesmo os versados terão que recorrer a muito do que aprenderam noutras obras de entretenimento, também é claro que o termo procurado é sensível, por exemplo a distinção entre “cry” e “crying” — porém, a sua apresentação é refrescante e não é preciso tecer comparações como as do primeiro parágrafo para que o argumento se sustente por mérito próprio.

Nem todos os jogos são para todos os jogadores e tenho a perfeita noção de que quem vive para a acção imediata não encontra grande reflexo aqui, mas quem gosta de um desafio mental, quem passou horas e dias a decifrar aventuras gráficas ou exercícios de lógica, dificilmente fechará a sessão na base dados antes de o ecrã ficar negro.

No meu caso, nem mesmo quando isso aconteceu a satisfação chegou. É possível terminar Her Story sem ver os vídeos todos, porém, no ambiente de trabalho do jogo existe uma ferramenta chamada “DB Checker” e que permite ver a que porção da base de dados acedemos. Cada marca representa um vídeo, ou seja, é possível acompanhar o que nos falta. Quem chega ao final do jogo desbloqueia duas linhas de comando que ajudam à conclusão total do jogo — tal como o símbolo amarelo que indica os vídeos resultantes de cada procura que ainda não visualizámos, ou seja, a aceder a 100% da base de dados não deixando nenhum depoimento por ver: foi depois disso que a hora de fechar o jogo chegou.

São pormenores, com Her Story são sempre pormenores, mas é sua colagem que nos revela o quadro geral, é a sua sequência que desbloqueia mentalmente tudo o que levou ao final que muitos já viram antes de continuarem a dedicar minutos ao jogo até terem tudo desbloqueado.

De salientar ainda que o jogo não decorre em 2015, 2013 ou 2000: Her Story parece orgulhar-se de decorrer durante três dias na primeira metade da década dos anos 1990, ou seja, o sistema operativo é datado, o ecrã do monitor é de outrora, o grão da imagem nos vídeos é nostálgico, tal como é o bater das teclas mecanicamente ou aquele som característico quando se acedia ao disco rígido do computador, quase tão carismático como o carregamento de um jogo no Spectrum.

Cada depoimento de Hannah tem a data e a hora, algo que se revela extremamente importante para agrupar a dispor todas as peças visuais segundo uma ordem cronológica. Não vemos isto e aquilo necessariamente pela ordem com que foi gravado, o que exige uma enorme ginástica mental e recorrentemente o uso de um bloco de notas, tal como os detectives com que crescemos usaram nos seus desempenhos para o nosso entretenimento.

Seria injusto terminar este texto sem mencionar o cerne do jogo: o personagem que presta depoimentos, ou melhor, a actriz que lhe empresta corpo e voz: Viva Seifert. Sem estragar a surpresa a quem eventualmente ainda vai dedicar algumas horas ao jogo, Seifert consegue atingir quase sempre o que lhe é pedido, ou seja, representar as várias fases da investigação, os vários humores dos vários depoimentos, incluindo uma alusão à sua carreira musical com uma música entremeada com acusações, justificações e revelações.

Se houver uma continuação desta linha narrativa, independentemente do argumento enveredado, não será castigo nenhum se Seifert voltar ao ecrã distorcido e granulado que quem cresceu com as cassetes VHS tão bem conhece. Mesmo quando está a falar sobre a princesa Diana ou outras referências da época, ou quando entorna a sua bebida pelas calças abaixo, a prestação de Seifert tem as variações necessárias para serem justificadas pela mente de Barlow.

Her Story será recordado pela maneira como arriscou num género que o tempo tinha afastado da ribalta. A confusão é sempre derrotada pela dedução lógica dos minutos investidos na sua trama, recuperando o queixo caído e prosseguindo sacudindo os ombros sem nunca afastar os olhos e a vontade do grande prémio: perceber o que aconteceu a Simon. É um mistério que não exclui ninguém que o compre e que deixará poucos fora da discussão e da dissecação de tudo o que foi abordado. Simon morreu, isso é assumido nos primeiros minutos do jogo; porém, é no processo que leva a essa conclusão que o jogo brilha, dando uma corda a todos que estiverem dispostos a agarrá-la.

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