Transporte urbano vai a caminho de veículos sem condutor humano

José Manuel Viegas anuncia que o Fórum do Transporte Internacional na OCDE, do qual é secretário-geral, está a estudar a base de novas regras para o transporte urbano, e que isso ajudará também a Comissão Europeia.

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José Manuel Viegas: “Os resultados dos nossos projectos serão publicados” em breve Nuno Ferreira Santos

Os políticos são responsáveis por cumprir a lei, mas também querem acolher a inovação, diz o especialista português em mobilidade e que coordenou, como professor do Instituto Superior Técnico, a área dos sistemas de transporte no programa MIT-Portugal.

O mercado tem várias aplicações tecnológicas para o tipo de serviço que a Uber presta, embora nenhuma causa a contestação que esta causa. Que razões encontra para isso?
A Uber definiu o seu modelo de negócio com propostas de valor muito interessantes quer para os passageiros quer para os condutores, atacando directamente áreas de maior insatisfação com os serviços tradicionais de táxis, e explorando de forma inteligente em cada mercado as falhas da regulamentação, geralmente elaborada há várias décadas.

Como no seu modelo o investimento nos carros é feito pelos parceiros (em muitos casos os próprios condutores), os valores elevados de financiamento inicial pelos investidores de risco foram canalizados para o desenvolvimento do software, para o "armamento jurídico", ou seja, para o estudo dos regulamentos (na busca de lacunas ou ambiguidades que permitissem justificar o enquadramento legal da sua operação), e para o marketing. E assim foi ganhando notoriedade e presença em mais mercados - muitas vezes sabendo que a legalidade da sua operação era discutível, mas assumindo que a visibilidade acrescida por via dessa contestação valia mais que o custo com a litigância. Com este estilo agressivo de entrada, a sua cotação no mercado financeiro foi crescendo e esses fundos adicionais foram sendo utilizados para expandir as operações para novos mercados e aumentar a notoriedade.

A contestação é o resultado da qualidade da proposta de valor - que lhe angaria elevados níveis de satisfação dos passageiros e de adesão de condutores - e do atrevimento jurídico. Nenhuma empresa associou estes dois elementos de forma tão radical, e por isso nenhuma outra é tão falada e contestada.

Como secretário-geral do Fórum do Transporte Internacional na OCDE, lida com governantes que, por sua vez, lidam nos seus países com este caso. Que preocupações comuns lhe demonstram, em privado e em público, e que lições tiram?
Naturalmente os responsáveis políticos sentem a responsabilidade de fazer cumprir as leis e regulamentos em vigor, mas também a necessidade de responder favoravelmente às inovações que merecem o favor do público. De forma geral reconhecem que a Uber fornece serviços de qualidade a que os cidadãos respondem favoravelmente, e que a regulamentação em vigor, para que o interesse público - no sentido da colectividade - possa ser adequadamente servido, é antiga e precisa de revisão. Os estilos variam consoante os países, havendo casos em que se proibiu a operação da Uber enquanto se vai pensar nessa revisão, e outros em que se procurou encontrar desde já uma forma de viabilizar a sua operação, sem prejuízo de trabalhar para essa adaptação regulamentar.

Que reflexão tem feito o Fórum e que papel cabe aos organismos internacionais, de regulação ou cooperação, como a Comissão Europeia e o Fórum Internacional dos Transportes?
Temos no Fórum, e herdámos da instituição que lhe deu origem em 2006, a Conferência Europeia dos Ministros de Transportes, uma forte tradição de reflexão e análise sobre as várias modalidades de transportes urbanos, entre elas naturalmente o transporte a pedido. Actualmente trabalhamos nesta temática, numa etapa inicial que consiste em avaliar quais os objectivos de políticas públicas que justificam a existência de regulamentação para este tipo de serviços, e quais os instrumentos mais adequados para atingir esses objectivos.

Constatamos que, partindo de objectivos idênticos, os vários países ao longo do último século foram utilizando instrumentos de certa forma semelhantes e combinando-os em desenhos regulamentares com um grau de variedade considerável. E em todos os casos, esses desenhos regulamentares vigoraram durante décadas e conduziram a grandes dificuldades para a sua revisão. As novas tecnologias de informação e comunicação permitem alargar o conjunto dos instrumentos disponíveis para atingir aqueles objectivos, conduzindo em alguns casos a ganhos notáveis de eficácia (melhor resultado) e ou de eficiência (menores custos).

A partir daí iremos elaborar linhas orientadoras fundamentais para o novo desenho regulamentar genérico, deixando a cada país a escolha fina dos instrumentos e sua parametrização. Em qualquer caso, é reconhecida a necessidade de medidas específicas para um eventual período de transição, por forma a acautelar os legítimos interesses de quem investiu dentro do anterior quadro regulamentar.

A Comissão Europeia pode ir mais longe, na medida em que tem a capacidade de propor legislação à escala de União. Acreditamos que os resultados dos nossos projectos, que serão publicados dentro de poucos meses, não deixarão de influenciar os trabalhos da Comissão.

A Uber tem sido acusada de agir ilegalmente e de fazer concorrência desleal aos táxis, em vários países, com manifestações que se vão sucedendo. Apesar disso, continua a valorizar-se no mercado e é uma das startups mais valiosas. Porquê?
Em larga medida porque a forte adesão e satisfação dos clientes que tem tido em todos os mercados leva os investidores a pensar que o período de contestação é transitório e que acabará por ocorrer a já referida adaptação regulamentar que conduzirá à plena legalização das suas actividades. A elevadíssima capitalização de que desfruta tem-lhe além disso permitido ensaiar expansões da sua actividade para novos tipos de transporte (pequenas mercadorias, partilha do veículo entre clientes independentes) que correspondem a novos aumentos de receita esperada.

Que futuro prevê para empresas como esta e que efeito terão na sociedade?
As formas de organização da mobilidade urbana vão sofrer nos próximos 10 a 20 anos mudanças muito fortes associadas a vários novos factores de ruptura, dos quais possivelmente o mais significativo seja o dos veículos de condução autónoma (sem condutor humano). A Uber já anunciou que se está a preparar com grande intensidade para essa mudança, querendo aliás ser um dos pioneiros. Mas é fácil reconhecer que essa mudança fundamental na provisão do serviço de mobilidade terá efeitos profundos que vão muito para além da redução dos custos e dos acidentes, podendo vir a gerar modificações ainda imprevisíveis na maneira como organizamos a vida em sociedade e o nosso dia-a-dia.

É provável que nessa onda de mudança a Uber se venha a mostrar demasiado agarrada aos conceitos e paradigmas em que baseou a sua afirmação, e que outra startup venha a surgir com novas propostas de valor que se venham a mostrar mais atraentes que as da Uber.

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