Señor Ortega, limpei o seu apartamento e ajudei a arrumar Anchuria

Limpem um apartamento, estejam no epicentro de uma revolução política. Quatro horas dão para isso tudo e mais.

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Sunset vai, arrisca. Há em quem começa a jogar um videojogo a expectativa de ver e sentir o que outros planearam para as suas sessões; há em quem o termina sentimentos predominantes, sejam eles quais forem. Quando os créditos dominam boa parte do monitor, fica a clara sensação que a Tale of Tales, produtora belga liderada pela vontade do casal Auriea Harvey e Michaël Samyn, quis que o jogador se sentisse parte integrante de algo maior que ele e que o levasse consigo por aí.

É uma obra relativamente curta — terminá-la demorou aproximadamente quatro horas; porém, suscita facilmente o muito que há a escrever sobre si, a começar pela protagonista. Vestimos a pele de Angela Burnes, uma empregada de limpeza que se mudou de Baltimore para San Bavón, capital de Anchuria, um país fictício na América do Sul. É uma escolha de profissão para protagonista tanto estranha quanto importante para o desenrolar da história.

Angela está incumbida da simples e importante tarefa de limpar a casa de Gabriel Ortega entre as 17h e as 18h. Não demora muito a que o jogador perceba que o mundano e o rotineiro das personagens e das profissões não têm perna longa. Poucos minutos depois do arranque, já a escrita de Sunset dá o ar da sua graça, uma graça que o acabará por distinguir e solidificar, tornando-o assim memorável.

Pode apenas limpar a casa de outrem, mas Burnes é peremptória a mostrar o seu descontentamento: passou cinco anos na Universidade de Harrison a viver de gorjetas e do pouco que a sua tia foi poupando. Pergunta para quê tanto esforço, se foi para “ter um papel que diz” que é “engenheira e acabar a limpar a casa de um homem”. Mais tarde, acrescenta: “Sou apenas outro par de mãos.” Ou seja, basta estar atento para perceber que os produtores congeminaram algo mais — que têm algo mais na manga.

Apesar de nunca termos uma visão clara do corpo que conduzimos digitalmente, é possível ver a sua figura e o seu rosto no reflexo de várias matérias no apartamento, o suficiente para que o visual auxilie a questão racial levantada pouco depois: “Mantém-me acordada à noite, a pensar se isto é algum tipo de destino. Viajei metade do mundo para acabar como empregada de limpeza? Podia ter feito isso em casa. A maior parte das pessoas em Baltimore não consegue imaginar uma mulher negra como algo diferente. Saí dos EUA para escapar dessa perspectiva, da estupidez e do ódio. E aqui estou eu, aprisionada num país que caminha para a ruína, a limpar a casa deste homem.”

E o homem a que se refere no último parágrafo, o señor Gabriel Ortega, também não é personagem menos complexa. Vive para a arte, colecciona-a: peças incontáveis pela casa, livros empilhados em torres — quantos? Os suficientes para que Angela comente que “são mais que mobília, como se estivesse a construir as paredes de um bunker com palavras preciosas”. Coleccionador entusiasta, Ortega tem uma vida também marcada pela política, por uma política que alimenta um país em que transparece um sufoco social, uma angústia e um querer mudar de cenário, de intervenientes que têm nas suas mãos o poder. E esse cenário abrasivo tem um rosto — ou pelo menos, um nome: El General Miraflores, eleito Presidente por imposição militar.

Portanto, temos alguém responsável pela limpeza de uma penthouse com vontade de ajudar a limpar um país, alguém com papel activo na política. Falta apenas mencionar David, um rebelde activo que é irmão de Angela. Provavelmente, é fácil reparar que o grande sustento da narrativa não é tanto os afazeres domésticos mas a iminência de ver um país a cair, a ser libertado. Obviamente, fazemos parte disso; fazemos parte integrante disso e é por isso que Sunset será recordado.

Nunca descemos à cidade nem estamos no meio da acção, mas daqui, deste luxuoso apartamento, vemos os jatos militares, ouvimos tiros e explosões, helicópteros, ao fundo fumo preto, talvez mais: como se estivéssemos numa ilha a flutuar algumas dezenas de metros acima do turbilhão que agita as ruas e sentíssemos o chão a abanar, Anchuria a ebulir e algo a mudar, provavelmente para sempre.

Nunca nos aproximamos de activamente batalhar, mas passivamente vamos lendo o que a protagonista vai narrando, dia após dia, quando sobe no elevador para limpar a casa de Ortega. Ficámos a saber o que se passa com o proprietário, com o seu irmão, com a cidade. Avanços e recuos, investidas e retiradas, perguntas escritas que Angela faz na inocência de desejar muito a queda do governo e não saber muito bem como isso acontece: ganhámos ou não ganhámos? O que está a acontecer?

Tudo vai evoluindo à laia de uma escrita pensada e inspirada, ritmada, e que distribui importância por todos os vértices narrativos já mencionados. Escrever sobre um videojogo que depende tanto da história é um processo delicado e, não estragando o desabrochar dos acontecimentos a alguém, é impossível não mencionar que um dos píncaros do argumento se dá quando Angela fala directamente ao seu irmão, com o jogador a testemunhar. Não se iludam, ele não está perto, mas Angela fala como se estivesse a falar-lhe ao ouvido: “David, onde estás?”, pergunta, lembrando-se de certos momentos da infância, como andar de bicicleta até um bairro diferente “porque a carrinha dos gelados não passava pela nossa casa”, ou o dia em que percebeu que ele era mais alto que ela.

Há uma demonstração de personalidades que o jogo vai mostrando e que vamos conhecendo ao explorar o apartamento, sem dúvida outra personagem. Angela limpa e arruma e faz tudo o que lhe é pedido — apesar de o jogador poder não fazer nada e terminar o jogo muito mais rapidamente, embora com muito menos pormenores angariados pela memória. Todavia, o dono desarruma durante a sua estadia e nossa ausência, deixando pistas do que aconteceu. É fácil ver que isso aconteceria na vida real e é também uma maneira dinâmica de fazer a narrativa avançar munindo o jogador de conhecimento, embrenhando-o na trama enquanto espera o desfecho.

Aliás, é graças a esta linha de pensamento usada pela produtora que o apartamento quase que respira, ou seja, o seu recheio e a maneira como é disposto é permeável aos acontecimentos, com Ortega a acumular cada vez mais arte, o que em termos práticos e drásticos significa que o lar vai ficando pejado de caixotes, de caos e confusão, incluindo momentos em que chegámos para passar faxina e vemos uma casa invadida, destruída pela vontade de quem lá esteve.

Portanto, a premissa é interessante e original, a escrita é refinada e trabalha com precisão a curiosidade do jogador, e o final, ainda que não esteja à altura dos melhores momentos do jogo, não é uma desilusão completa. Mas como se comporta a sua jogabilidade? Se não optarem por ignorar a maneira como o jogo foi pensado, terão que realizar todas as tarefas, ou pelo menos uma boa parte, influenciando assim a relação de Angela com Ortega: afinal, convém não esquecer que estamos ali para lhe limpar o apartamento.

Polir a prata, lavar pratos, limpar o chão, o bar, o escritório e as janelas, também os cinzeiros. Arrumar quadros, pintar uma parede, preparar o jantar e gravar uma mixtape, regar plantas, limpar confetes, tapar a piscina — enfim, a lista é longa, muito mais longa que estes exemplos. No início de cada dia temos num papel o que temos para fazer, e temos que explorar o apartamento — que ao fim de uma hora conhecemos como a nossa própria casa — e encontrar o que precisa de ser feito, algo que em termos de jogabilidade normalmente está restrito a uma ou duas teclas.

Além disso, ocasionalmente, os objectivos não são os mais claros e, em alguns casos, como pôr a mesa, a precisão exigida ao ponteiro do rato é demasiada. O cansaço das tarefas é indissociável da forma como se desfruta de Sunset: se apenas as realizarem e passarem para o dia seguinte, o ritmo da jogabilidade perde ímpeto, cai durante o meio do jogo, pois o entusiasmo de ver o que vai acontecer choca com a habituação. Caso explorem o apartamento à procura de pormenores escondidos e maneiras que foram pensadas como alternativas de extrair tudo do jogo, essa sensação não se faz sentir ou, pelo menos, demoram mais tempo a chegar a esse estádio.

E sobre o apartamento, é grande e espaçoso, decorado respeitando a época em que o jogo decorre — início da década de 1970 — com uma atenção ao pormenor que faz lembrar o que foi conseguido por Mad Men. O grafismo é, indubitavelmente, o lado técnico em que o jogo se anuncia mais. Quartos, pátios, piscina interior, varanda, escritório: tudo o que dois andares de riqueza suportam. É carismático, é de época, é uma janela para outro tempo e uma vontade de o habitar — não naquela época de tumulto, mas uma vontade. O título do jogo explica e invoca a hora em que o habitámos e são nesses finais de tarde que as cores quentes brilham, dão ambiente e distinguem.

Nunca nos perdemos, até porque algumas divisões estão fechadas quando os objectivos de limpeza não passam por lá, e não é — nem quer ser — um jogo que se apresenta em mundo aberto, apenas um mundo confinado a uma habitação, mas uma casa maior. A sonoplastia também merece ser mencionada, especialmente pelo trabalho de vocalização da protagonista, crédito entregue totalmente à performance de Tina Marie Murray, e à banda sonora: aproximem-se de um gira-discos e ouçam Luiz Prieto enquanto se sentam numa poltrona.

Uma revolução que passa pela vontade e influência de uma empregada de limpeza, um trio de personagens que importam e são desenvolvidas com relevância. Angela é memorável, quem a auxilia também, apesar de num tom menor. A jogabilidade é ligeira e apresentada em pouca dose para aqueles que gostam de sentir a congratulação dos dedos decidirem cada acção de uma história. Terminado Sunset, penso que Anchuria viverá agora melhor por um movimento que não fui eu que coloquei em marcha com as teclas, mas sim de que fiz parte. 

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