Samantha e o seu Evereste de aveia

Pungente, curto e gratuito, The Average Everyday Adventures of Samantha Browne expõe o anseio social por uma lupa própria.

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É sobre o que devagar vai incapacitando mais do que doendo, é sobre a ansiedade ou fobia social o aludido em The Average Everyday Adventures of Samantha Browne. Sentem-se as angústias da protagonista, sente-se sem filtro o banal de uma acção a mutar-se em balança sem fiel, a chegada da escuridão se não tivermos cuidado com o que vamos escolhendo.

Samantha, estudante que vive no dormitório de uma faculdade, está há horas à espera que todos adormeçam, que todos removam a sua presença ao caminho para ir ao refeitório comum alimentar-se, num dos raros momentos de abandono. Esta protagonista que, quando não está só no quarto, está nas aulas, na biblioteca, ou escondida num qualquer canto a beber café; bem, esta protagonista, diz-nos também o jogo de Andrea Ayres, não tem nada de particularmente interessante.

Em vez de se dispersar e dar cobertura, por exemplo, aos seus anos universitários, Adventures of Samantha Browne dedica-se a ilustrar um fragmento temporal, um rasgão que nos permite ver uma parcela de uma noite, o momento exacto em que tenta ir do seu quarto ao micro-ondas e regressar. O que muitos estudantes fazem monotonamente sem questionar, é apresentado como um Evereste pessoal, que jogador e protagonista tentam conquistar, espetar uma bandeira no cume, todos orgulhosos, heróis e heroínas de medos endereçados às suas personalidades.

The Average Everyday Adventures of Samantha Browne Trailer from Andrea Ayres on Vimeo.

De longevidade inferior a uma hora, a obra é dominada pelas decisões que temos de tomar enquanto vestimos a pele de Samantha. Logo após a introdução, enquanto a protagonista conversa com outra pessoa num chat online, chega o primeiro desarme: “Por que é que te importas se está alguém na cozinha?”, perguntam-lhe. De uma questão aparentemente inocente e banal nasce o refrão do jogo: afinal, por que te importas com quem está além da porta do teu quarto?

E desde então podemos ir moldando a sua personalidade dizendo a verdade ou inventando uma mentira na hora – “não quero acordar ninguém”. Outras escolhas se seguirão, desde escolher a variedade das papas a tentar falar com quem se cruza no seu caminho ou vestir-se de ilha, passando pela quantidade de aveia a preparar, o que reforça a obsessão com o que pensam dela – três porções e tem vergonha que alguém a veja comer tanto de uma única vez; duas porções “porque tem fome, mas não é uma vaca”.

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Seja uma opção de tom relevante ou algo que parece solução de um fútil exercício voyeur, praticamente tudo é contabilizado para o desfecho que nos calhará. Existem vários finais e incontáveis situações que se ajustam, como entornar a caneca com a aveia, queimar as mãos, uma panóplia de ajustes narrativos que evocam uma sentença apenas após terminar Adventures of Samantha Browne várias vezes.

Foi precisamente o que fiz, testemunhando tudo o que o jogo pode oferecer, o que impele o destaque de duas situações: deslocar-me com sucesso ao refeitório, num passo de culinária patrocinado por uma cafeteira eléctrica, elaborar as papas de aveia, mas ser impedido de voltar ao meu quarto, o que é acutilante na transmissão da dependência forçada da ajuda das outras pessoas. O outro, obviamente, é conquistar o final propriamente dito, ou seja, conseguir que Samantha saia do quarto, não participar em nenhum desastre social durante o percurso, regressar a onde sai. Isto ganha estatuto de destaque pela forma como a protagonista cumprimenta o quarto e diz ter sentido a sua falta. É desarmante e a constatação inequívoca do esforço hercúleo por que passou.

A mensagem final é “nem foi assim tão mau”, mas enaltece a preferência de ter ficado, de nunca ter saído para o hostil em primeiro lugar: há esperança a passar, sim, mas há também o latente desconforto e sofrimento que tantas e tantas vezes é surdo e mudo. Sente-se o extrapolar da situação alumiado por uma luz muito sóbria, pois é fácil ver aqui um exemplo do que será o resto da vida de Samantha aquém e além do videojogo, o pensar e repensar tudo e todos, como a opção de esconder-se num canto enquanto espera ao som da confecção do menu em caneca, ou quando reluta a pedir ajuda quando não sabe.

Todos os processos da jogabilidade resumem-se a pressionar a caixa de diálogo e a escolher uma de várias hipóteses-oportunidades, mas não é um jogo que precise de mais oxigénio jogável que o fornecido. Onde Adventures of Samantha Browne podia ser uma experiência além é na sua longevidade. Mesmo que não fosse gratuito, esta edificação de personalidade beneficiaria com mais projecção, mesmo que não se arrastasse por incontáveis situações idênticas, virando a lente para a sua montra, mas expandindo-a.

Quem gostar desta jovem estudante, particularmente por identificar os seus medos nos dela, vendo o seu rosto neste espelho digital, é possível e provável que sinta uma saída precoce da sua vida, jogando uma súmula e ficando desarmado de mão estendida. Exígua mas não apressada, é uma chamada a que se responderia durante mais algum tempo de bom grado.

O charme de Adventures of Samantha Browne é uma ironia. A protagonista do temível é representada num mundo colorido, preenchido com uma luz que a Primavera cobiçaria. A caneca, a tal caneca tem a estampa de um simpático gato; o quarto de Samantha é adornado com estrelas que brilham, peluches de cores berrantes, os lençóis são rosa sorridente, tal como fronha da almofada. É o festival da cor assinado por Reimena Yee. A banda sonora pronta pela mão de Adrianna Krikl está onde precisa de estar, não se impondo ao que é de outros domínios, não servindo como um exemplo de currículo à força.

Não há dinheiro investido dado a arrependimentos, pois como já foi mencionado Adventures of Samantha Browne é disponibilizado no Itch, no Steam e nas plataformas iOS gratuitamente. Haverá alguém que arrependa o tempo dedicado, mas joguem-no de peito aberto e encontrarão uma ilustração de um problema que merece atenção, nem que seja para saberem que nem todos têm apenas medo de encontrar um carro quando atravessam a rua.

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