Recriar virtualmente os espaços do horror para que a memória não se perca

A recém-criada Future Memory Foundation quer reconstituir virtualmente 100 espaços marcados pelo terror nazi, para que as gerações futuras não esqueçam o passado.

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Filhos de sobreviventes do Holocausto na instalação virtual do Memorial Bergen-Belsen, em 2012 DR

O polaco Felix Flicker, sobrevivente do Holocausto, está sentado num sofá e conta-nos como foi. Descreve aquele dia, em 1944, em que o campo de concentração onde se encontrava, em Majdanek, na Polónia, foi libertado. “O que vivemos lá é indescritível. A memória desse tempo faz-me sentir que não quero voltar lá. Até na memória”.

Felix revive os acontecimentos ao detalhe – os cheiros, os cadáveres, as pilhas de sapatos e ossos, os crematórios. É um dos mais de 50 mil sobreviventes que o realizador Steven Spielberg ouviu e gravou nos últimos 20 anos, num projecto que olha para a memória como um património valioso a deixar as gerações vindouras. É do mesmo princípio que partem dois investigadores que querem agora dar um passo definitivo para levar esta ideia mais longe. E se para além de ouvirmos relatos desses espaços, presos nos testemunhos dos sobreviventes, pudéssemos ir até lá?

“Sei que a memória precisa de lugares”, diz ao El País o investigador e psicólogo Paul Verschure. É director do laboratório SPECS (Synthetic Perceptive, Emotive and Cognitive Systems) que se dedica, desde 2005, ao estudo da percepção e da emoção dos seres humanos - entre elas a memória- na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona.

Paul Verschure e Habbo Knoch, historiador da Universidade de Colónia e antigo director da Fundação de Memoriais da Baixa Saxónia, fundaram recentemente a Future Memory Foundation, uma iniciativa para preservar, apresentar e projectar a história dos crimes do regime Nazi e do Holocausto através dos lugares europeus do terror.

“Estamos a enfrentar o fim da idade das testemunhas”, escrevem no site da Fundação. “No decorrer dos últimos 70 anos, testemunhas e sobreviventes foram fundamentais na reconstituição dos crimes do Holocausto. Passaram às gerações seguintes um passado de terror e foram cruciais na formação de uma memória colectiva. Mas agora essas testemunhas estão a desaparecer.”

Recolhas como as de Spielberg ou de outras fundações são importantes, reconhecem os investigadores, mas não suficientes. É preciso, defendem, relacionar espacialmente os campos de concentração que existiam por toda a Europa com fontes históricas (fotografias, mapas, planos de construção, documentos oficiais, artefactos) e com descrições pessoais (testemunhos e diários). E para isso há que reconstituir a estrutura especial do terror nazi através da realidade virtual.

O primeiro passo foi dado no Memorial Bergen-Belsen em 2012. Pela primeira vez, foi criado um modelo tridimensional de um antigo campo de concentração, que foi totalmente destruído após a sua libertação. Alguns sobreviventes conseguiram identificar nas imagens o local onde viveram. Filhos e netos dos sobreviventes entraram em pequenos contentores transformados em espaços da memória: lá dentro, os relatos ganharam forma. Através de uma apresentação interactiva e imersiva, com recurso a um tablet, foi possível visitar fisicamente o campo e experienciar o espaço, os edifícios. Os detalhes, por exemplo, das vedações. “O espaço como portal para a informação”, defendem os investigadores, incentivando a reflexão e a memória para as futuras gerações.

Para já, a Future Memory Foundation procura financiamento para recriar virtualmete 100 espaços. Cada um terá um custo de aproximadamente 50 mil euros e levará três a quatro meses a estar concluído. A ideia mais ambiciosa é, no entanto, conseguir "criar" virtualmente os 45 mil locais já identificados como estando ao serviço do regime Nazi em toda a Europa, incluindo, para além dos campos de concentração, outros centros de tortura, guetos e quartéis da Gestapo.

Na corrida contra uma memória que se vai apagando, há muito que dificilmente será reconstituído. “De muitos locais temos muito pouca informação”, explicou Verschure ao El País. “Sobibor – um dos seis campos de extermínio que os nazis construíram na Polónia – foi totalmente destruído e só agora é que os arqueólogos polacos e britânicos conseguiram localizar o local onde estavam as câmaras de gás e os crematórios”.

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