O preto e o branco de uma noite velada

Fica com quem joga a apresentação e as personagens de White Night. A frustração é melhor quanto mais depressa esquecida.

White Night

Percorrer o escuro é negociar a bondade. Todos esperamos que seja manso connosco, que não esconda um mau desfecho ao desconhecido. Cansamos a esperança por aí, tantas vezes loucos à procura de asseguração. Vários videojogos conhecem esta fórmula de cor, usando-a com rédea solta para atemorizar quem os controla. Dando e sobretudo retirando o controlo da situação, manipulando-a a seu bel-prazer.

White Night é uma das mais recentes obras a entrar nesse lote. Estamos em Boston do ano 1938. O início da aventura pertence à noite “sem estrelas nem sono” quando pensámos que atropelámos alguém. O carro desgovernado pelo susto do seu condutor acaba por se despistar contra uma árvore e nós com ele. Atónitos, procuramos a chave para entrarmos na mansão mais próxima, não sabendo ainda que ficaríamos aí presos durante a maior parte do tormento seguinte. Atónitos, entramos na casa e saímos do quotidiano durante as próximas sete horas.

Não encontrámos o corpo nem o sangue de quem atropelámos. É um mundo diferente aqui, onde o personagem se vai habituando à luta por ajuda, onde o jogador repara em tudo à procura de pistas e de soluções. Ainda é muito cedo para as encontrar, pelo que terá que continuar a sua exploração do desconhecido, ambientando-se com a sua morada temporária. White Night é exímio em saciar parte da imaginação do jogador e a alimentar a restante com a curiosidade de uma criança chegada ao novo.

A progressão acabará por revelar que a mansão não é muito grande; porém, o avançar de divisão em divisão transmite uma sensação de progressão. Paredes forradas com livros, quadros expostos como se estivessem numa galeria; a sala, a cozinha, a biblioteca e, posteriormente, o inevitável sótão e a passagem pela cave. Estamos convocados a passar a pente fino o mais recôndito do cenário, pois boa parte da informação está aí encerrada. Notas de várias personagens: Selena, William, Henry, Margaret; fotografias que ajudam a evocar aquela época; várias notícias publicadas pelo jornal Boston Daily News.

Os puzzles não requerem muito pensamento nem dedução: o último é o mais complicado; contudo, basta prestar atenção à lógica. Sente-se que há uma progressão da dificuldade que tenta acompanhar a aprendizagem por que passa quem joga: apanhar toros para acender uma lareira, apontar um candeeiro a retratos — Irina, Maria e Virginia — e usar um punhal para lhe perfurar os olhos, alinhar miniaturas de planetas e usar a sombra projectada para replicar um símbolo — pequenos testes à atenção do jogador, ínfimas vitórias da nossa massa cinzenta.

A maioria dos enigmas não quebra o ritmo do jogo e são possíveis pelo excelso joguete feito com a luz e a sombra, o que está escondido na penumbra. A maneira como White Night o consegue é inteligente e deixa o jogador interessado à procura de novos pormenores enquanto se delicia com o quadro geral: o jogo do Osome Studio apresenta-se em duas cores, o preto e o branco. Mas mais que um tour de force artístico, a conjugação das sombras cria um ambiente distinto, facilmente transformando-se na sua assinatura.

Não é a primeira vez que um jogo faz isto; basta recordar MadWorld, exclusivo Wii publicado pela Platinum Games, produtora reconhecida pela série Bayonetta e por The Wonderful 101, por exemplo. Contudo, White Night catalisa esta afirmação para apresentar um título noir, um ambiente de década pretérita também consagrado pelo protagonista. Olhem para ele: gabardina longa, chapéu de abas, colete e gravata. Sim, olhem para ele, actual em tempos idos, decantado pelo tom de quem ajudou a puxar a trama de Casablanca ou Citizen Kane.

Depois dos créditos finais tomarem conta do ecrã, a personagem que não esquecerei é Selena: o grande mistério do jogo e grande parte da sua resolução. Cara pálida, batom enegrecido condizente com os brincos e o colar. Mais que a sua aparência quase angelical, fica a sua presença intrínseca na narrativa, a maneira como se vai afirmando de forma irredutível. Pede ajuda e questiona o amor, canta, revela-se. Quando o final do jogo chega, sabemos que esta história não se escreve sem mencionar o seu nome. O cair da cortina é recompensador mas enigmático, com traços que já tinha equacionado no pensamento sem ter certezas, regressando ao ponto de partida mais esclarecido — ao carro do alegado atropelamento, à sua bagageira de machado em riste.

Como em qualquer jogo, vamos reparando nas mecânicas da sua jogabilidade, arame que ajuda a segurar o resto. White Night é um jogo de terror e é na sua instalação que se notam as suas principais falências. Existem fantasmas, espectros que nos vão aterrorizando o caminho e evitando que a progressão seja feita em ritmo próprio. Apresentados sem forma definida, sentimos a tensão da sua presença, o susto do seu encontro. Tudo adequado ao género em que o jogo se insere, menos o retrocesso a que inevitavelmente obriga.

Para perceber a frustração têm que saber que o progresso só é gravado quando encontram uma poltrona e nela retemperarem forças; têm também que saber que um toque destas criaturas esfumadas resulta no final da vossa vida, ou seja, não têm hipótese de recuperar. Cinco, dez minutos perdidos e multiplicados por duas, cinco, dez vezes, algumas das quais de forma injusta sem maneio de reacção. Existem muitas maneiras de penalizar o jogador pela sua incompetência — esta não é uma delas.

Outra mecânica menos conseguida é a maneira como combatemos a escuridão. Foram espalhadas pelo cenário várias caixas com fósforos. Para progredirmos temos que ir acendendo fósforo a fósforo, alumiando um pequeno círculo à nossa frente enquanto a chama vai consumindo o breve toco de madeira: uma ilha segura no meio de um oceano da cor que vêem de olhos fechados; um momentâneo porto-seguro que transmite essa segurança mas que está sempre dependente de um exercício que acaba por ser mais cansativo que entusiasmante, mais rotineiro que motivador.

O jogador não pode ajustar a câmara. A produtora consegue oferecer planos inspirados, alguns inclinados, outros com perspectivas elevadas. Todavia, ocasionalmente esta impossibilidade interfere com a jogabilidade, especialmente quando estamos a tentar fugir às criaturas e o jogo insiste na sua visão do que está a acontecer: na urgência do escape e da tensão em encontrar uma porta ou frecha, somos presenteados com um panorama muito mais artístico que prático.

Quando está longe desta atrapalhação, White Night proporciona alguns momentos memoráveis. Serei acompanhado durante alguns tempos pelo momento em que chovia e o personagem recolheu um disco com Clair de lune de Debussy, recordando-me imediatamente o início do poema “tocata” de Cesariny:

“quando tu tocas Debussy
chove extraordinariamente”

A escrita de Sébastien Renard é competente na maioria do jogo, ainda que ocasionalmente cometa alguns excessos. Também é verdade que brilha noutros momentos, enquadrando perfeitamente determinada cena do jogo: “outrora uma refeição, agora uma oferta às moscas”. E vemos as moscas no cenário, pequenos pontos negros sem definição a dançar como se estivessem a ouvir uma música só deles.

O preto e o branco marcam White Night e marcarão a memória com que ficam dele. É o seu ponto mais forte, mas convém não esquecer o restante departamento técnico. A sonoplastia em que se inserem as pancadas secas quando encontrámos uma ameaça, os tons estridentes do violino e o embalo do piano; as vozes de Philip Anthony-Rodriguez e Frøydis Arntzen Dale, aquele inequívoco eriçar da pele que provocam.

Sabe bem voltar ao início do jogo com a informação adquirida no seu final. Nem tudo é o que parece, poucos são de confiança. Descrevê-lo como um jogo noir de terror é um pouco redutor; fica melhor mencionado como uma aventura de emoções sombrias à solta que poderia ter alcançado mais se não fossem algumas decisões indutoras de frustração. O fósforo quebra o monocromático com uma amostra de dourado, a luz do candelabro mostra esporadicamente a sua aura carmim — o regresso momentâneo e fugaz à cor é bom, mas nunca estará à altura de encontrar o branco numa estadia domada pela claustrofobia do negro, a dor de não saber tudo o que esconde.

Mais críticas em VideoGamer Portugal

 

Sugerir correcção
Comentar