Ir ao Nebraska vestir-nos de família

Three Fourths Home, reflexo de uma relação familiar americana onde o jogador talvez encontre uma ruga da sua.

Escutamos o nosso mundo ao telefone pela ausência do físico. Amamos e zangamo-nos pela noite adentro. Sabemos como tem passado a morte, tanta de pessoas definidas como uma poça de lama na memória; estremecemos quando tem um dos rostos calcorreados pelo nosso olhar quotidiano até ontem ser último. Ansiamos o toque da comunicação quando esperamos notícias, confirmações: aceleramos as palavras à procura. Adiamos vezes tudo o resto, como se tivéssemos a língua estacada pelo desprendimento do medo.

O telefonema é estar sem estar. Usamos a mesma máquina para trocar banalidades e conversas que mudam a vida, ajustam-na ao murmúrio da nova realidade. O entretenimento parece estar ciente desta relação, bastando ver Locke, filme onde Tom Hardy provou a quem eventualmente ainda tinha que provar que não era apenas Bane. Tão dependente de uma cacofonia telefónica está Three Fourths Home, videojogo da [bracket]games cuja Extended Edition acaba de ser publicada no Steam.

Kelly, uma jovem de 24 anos não está bem na sua pele. A protagonista saiu de casa na aventura da conjugação na primeira pessoa, contudo nem tudo correu como esperado e está de regresso ao seu regaço familiar em Nebraska. O corpo está de volta mas o pensamento ainda vagueia à espera de se encontrar. Uma manhã bem de manhã, decide conduzir por aí, provavelmente para se perseguir a si própria, encontrar o âmago da sua existência, o propósito da vida na sua vida, na dos outros.

Levou consigo um telefone que vibra quando vai a caminho de casa depois de tentar ordenar os pensamentos. Atende para nunca mais desligar. É Norah, a mãe, porta para uma família com todos os problemas quantos podem ser comprimidos numa hora de jogo. Diz-me que agora regressada a casa tenho que avisar quando estou de saída, que não é como quando estava habituada a viver sozinha. Não é. O jogador viaja por Kelly uma jornada pela família: a dela, possível representação da nossa: mais rente ao osso consoante as palavras e atos que tivermos pendentes.

Ao telefone - sempre ao telefone - vamos falando com os restantes membros do núcleo: David, o pai; Ben, o irmão. Three Fourths Home é uma obra de relações, da sua edificação e demolição. Mas é também um jogo de expectativas, sobretudo as da família connosco, mas também as nossas, o inverso. Estamos todos num patamar diferente do esperado, essa é a tenebrosa constatação que alimenta a narrativa do jogo, que a assume e destaca de tudo o resto, seguramente pela qual será recordada.

O tema familiar é complicado, especialmente se a vontade for emergir do outro lado da história sem chapinar nas poças de frases e ideias que já choveram. Felizmente, é precisamente isso que consegue Zach Sanford com a sua escrita a evitar quase todos os clichés, o que resulta numa experiência apelativa, quanto mais não seja para ver onde e como acaba. Antes, quem está atento testemunhará o desenvolver destes personagens, do seu crescimento junto e pelo jogador, domando-lhe a atenção, questionando-o.

Esta família sangrou dinheiro, tem um filho, o irmão mais novo da protagonista, com problemas, um pai que sofreu um acidente e é perseguido pela dor de uma perna que já não está lá. Os nossos estudos falharam, tal como o nosso emprego pretérito e a entrevista para um futuro, a nossa relação com o namorado ou namorada fracassou. Acompanhem este ritmo frenético de dissabores: o pai bebe para atenuar a dor, não tem como pagar os comprimidos. Também não há dinheiro para levar Ben a um novo médico. A mãe vive o tormento diário de regressar a uma loja pela rotina de regressar.

Palavra a palavra, diálogo a diálogo vamos sabendo tudo isto, mas vamos, sobretudo, edificando na nossa mente a relação com esta família, auferindo a profundidade dada a cada personagem. Ben, por exemplo dos seus problemas: a fixação que tem nas notícias, a maneira como é franco sem ter a mínima noção do que é socialmente aceitável, a maneira como decora um conto que escreveu durante a sua fase dedicada à escrita depois de perder o interesse na guitarra. Uma, duas, cinco, dez páginas ditadas ao telefone sem recorrer ao rascunho original. A sua obsessão pelas discussões dos pais, mesmo quando estão apenas a conversar. Lembra-se de pormenores e de procedimentos impensáveis, a escrita dos diálogos vai abrindo-o, mostrando-nos o seu interior, como se finalmente tivéssemos acesso às suas sinapses, à peculiar maneira como trabalham a sua personalidade, tolhendo-a pela psique.

Ao jogador é dada a oportunidade de responder com uma de várias opções para alimentar o corrupio narrativo. Não é novidade nos videojogos, mas escavaca a persona de quem queremos ser no jogo. Por exemplo, quando questionados sobre a nossa saída matinal, podemos afirmar que não vimos o pai ou que ele estava no jardim. O procedimento é simples, a resposta nem tanto. É a diferença entre ignorar alguém que nos é importante e sair sem dizer uma palavra propositadamente, ou sair em silêncio pela ausência do encontro.

As boas histórias não conhecem o meio: livros, filmes, teatro, conversas de café. Esta é uma boa história contada através de um meio não mencionado: os videojogos. Contudo, não é um videojogo com uma jogabilidade tradicional: a história é contada pelo diálogo na parte inferior do ecrã, com a parte superior reservada ao carro de Kelly, à maneira como rasga a paisagem entre campos infindáveis de milho, como vemos a escola em que ela cresceu e que cresceu na sua ausência, a estação elétrica, enfim, resquícios do quotidiano antes de ir para regressar.

O controlo do jogo é reduzido: podemos acelerar e travar o automóvel, acender e desligar as luzes, tocar a buzina e pouco mais: nada condiciona o desenrolar da trama. O carro acelera a mando de uma tecla e se deixarem de a pressionar tudo abranda, até o decorrer da trama. Segundo o cânone tradicional há pouco com que interagir, algo que desiludirá os jogadores cingidos aos videojogos mais tradicionais; algo que não deverá surpreender quem experimentou Proteus, Dear Esther, até Gone Home, entre outros.

Terminei o jogo várias vezes, cada uma escolhendo as diferentes hipóteses disponíveis. Apesar de não ter alterado o final, foi uma apresentação diferente desta filha regressada a um porto que queria seguro, oscilando a percepção que quem ama tinha dela, tal como o seu comportamento expresso nas variantes do texto exibido no ecrã: ora mais autoritário, ora mais compreensivo. Esteve longe de casa meses sem ligar - esta é a reinserção no seio que aprendeu às suas custas a viver sem: esta é a redenção.

Guardei até aqui um dos trunfos que condiciona tudo: Kelly conduz no meio de um dilúvio. Com o passar do tempo, uma tempestade má transforma-se numa pior: as sirenes avisam a proximidade de tornados e ecoam num ritmo hipnótico. Ben diz para conduzirmos mais depressa, “mas não muito depressa, porque ter um acidente é mau. Não tão mau como um tornado, mas ainda assim muito mau”. Pergunta entretanto se pode ficar com o quarto da irmã se ela morrer, obriga o pai a colocar um dólar no pote por cada palavrão, eventualmente terá dinheiro para comprar um videojogo à laia de expressões proibidas.

Aliás, a tempestade é a quinta personagem. É impossível contar esta história sem a mencionar, tal é o seu papel. Há arrependimento por todo o lado, mesmo que nunca seja explicitamente escrito. Ninguém está orgulhoso do papel que teve naquela família, na maneira como a tratou. O jogador vai crescendo com tudo isso e quando está a cinco milhas de casa, a chamada cai por entre o barulho, desmorona-se e dá lugar ao som mecânico e desesperante de uma ligação sem receptor: Mãe?

Uma das novidades desta Extended Edition é a possibilidade de jogarmos o epílogo. A obra principal demora aproximadamente uma hora a ser concluída, este trecho talvez vinte minutos. Tudo acontece antes da nossa chegada a casa, antes da nossa viagem de carro. Kelly está numa paragem à espera de autocarro em Minnesota e tem duas opções: ligar à mãe ou esperar pelo próximo transporte. A segunda opção termina ali a experiência, porém se escolherem a primeira são guiados por uma antevisão da peça principal.

Também ao telefone, podemos mentir ou ser sinceros sobre a situação de Kelly. O seu relacionamento amoroso, o seu emprego e o seu semestre escolar, as aulas de fotografia. Aqui só falamos com a mãe que diz estar disposta a ajudar, a ouvir. As minhas escolhas levaram-me a uma de opões de premeio: ou dizia que tudo estava a desmoronar-se, ou que que a solidão dominava os dias. O epílogo é curto é desabrido, talvez por isso a escrita não chegue a brilhar como no resto, todavia é importante ser jogado, pois está aqui a raiz do regresso a casa que desabrochará numa flor radioativa, ladeada pelos espinhos atravessados na garganta de quem joga.

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