Investigação em montra noir

Escrevendo cartas a várias obras e géneros que o influenciaram, Blues and Bullets tem uma estreia a pensar no resto da temporada.

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Com o episódio de estreia de Blues and Bullets, a produtora espanhola A Crowd of Monsters parece escrever várias cartas abertas a obras e géneros que a influenciaram. Quando terminadas as duas horas de “The End of Peace”, instala-se a sensação de se ter jogado uma depuração trespassada pelo noir e tentada por uma narrativa que abre algumas feridas que promete ir sarando nos restantes quatro episódios.

Santa Esperanza, cidade ficcional que nos é mostrada em 1955. Somos Eliot Ness, ex-polícia que agora assiste a lei e a grei servindo fatias de tarte e cafés no estereotipado diner americano que dá nome ao jogo. O passado irrompe pela porta e toda aquela fachada cai por terra quando há uma investigação que impreterivelmente terá que passar pelas mãos de Ness. Eis os fantasmas que pensava compartimentados: o álcool, a violência e o seu arqui-inimigo de longa data, Al Capone.

Depois de ser libertado, o patrão da máfia precisa da sua ajuda quando um ente querido desaparece: rapto por alguém contratado por um dos seus homens. Podemos optar por não o ajudar, mas o jogo tem um destino a cumprir e acaba por dar à volta ao texto volvidos alguns segundos. Falhada a hipótese do não redondo, podemos escolher o destino de Capone quando a investigação terminar, como doar toda a sua fortuna ou entregar-se à polícia.

Capone, segundo o próprio, procurou ajuda à porta de um ex-polícia porque há vinte anos comprou todos os amigos de Ness, matou os que não podiam ser comprados. O protagonista terá ficado tão obcecado com Capone que destruiu o seu próprio casamento – leia-se: a sua mulher deixou-o. Quando teve uma arma apontada à sua obsessão, não o matou. Em traços gerais, Eliot é o único homem honesto que Capone conhece.

Não é um argumento de excelência, mas vai animando as hostes, pois convém não esquecer que o episódio começa e termina com duas cenas paralelas ao seu cerne, mostrando uma das várias crianças desaparecidas numa masmorra, estremecendo a medo do castigo várias vezes mencionado, com o jogador a perceber com o avançar do tempo atrás do que a sua investigação corre, a urgência de quem desapareceu da face de Santa Esperanza enquanto todos os envolvidos procuram a definição de assassino em série.

Quick Time Events, há escassas cenas em que são trocados tiros com os inimigos, apontando e disparando como se estivéssemos na feira popular defronte de recortes em cartão, com Blues and Bullets a não exigir uma pontaria exímia nem outras preocupações; há também escolhas múltiplas, mas que raramente atingem o jogador com a dúvida, a divisão da vontade por incerteza, pela importância de todas as escolhas colocadas no ecrã.

Se são fãs da Telltale, da fórmula dos seus títulos, a produtora de Blues and Bullets andou a jogar o mesmo que vocês, apresentando, tal como tantas obras no passado recente, um tributo às mecânicas que provaram a sua eficácia em séries como The Walking Dead, The Wolf Among Us, Tales from Borderlands, entre outras. Nota-se a tentativa de abrir o leque de processos inseridos neste episódio de estreia, porém, nem todos ficarão na memória, uma vez que a inclusão é de curta duração e a implementação não excede a marcação de presença.

E quando somos chamados a controlar a locomoção de Eliot, somos também convidados a lutar com processos lentos, mesmo nas secções em que podemos aligeirar o passo do protagonista. É estendida uma passadeira vermelha à falta de precisão, ao rombo e à sensação de que tem dois sacos de areia presos aos membros inferiores. Em alguns casos, a câmara também não ajuda, demorando a centrar o importante, oferecendo panorâmicas descuidadas.

Salientasse ainda um trecho jogável em que conduzimos uma investigação de proximidade, começando no desfecho e tentando juntar as peças até encontrarmos a causa. É uma cena graficamente violenta, envolvendo olhos arrancados à colher, dentes removidos e cravados nas palmas das mãos. De tom gratuito, sim, mas ir pesquisando a habitação e descobrindo pormenores com que é pintado o quadro daquela cena horrifica revigora, apesar de não chamar a massa cinzenta para o caso.

As inspirações, os tributos já indiciados não se ficam pela jogabilidade. O mais memorável de Blues and Bullets é a sua aparência, ou melhor, a estética do seu visual. Pertença ao noir já retratado em títulos como The Saboteur, L.A. Noire, Murdered: Soul Suspect. É uma afirmação de estilo apresentar a ação em tons de cinzento, um cromático eficaz que reforça a ideia da década de cinquenta, tal como o guarda-roupa das personagens principais, não faltando o colete, a gravata e a gabardine a Eliot.

Esta filosofia visual vive também do contraste, ou seja, as peças gráficas contêm vários apontamentos em encarnado, como a gravata do solucionador de serviço, as carpetes, o carro que está parado na garagem de uma das peças da investigação, os enfeites de rua, as folhas das árvores, as indicações dos itens com que podemos interagir e investigar, enfim, detalhes que rompem os cenários e tornam o impacto visual eficaz, mas que não chegam para mascarar uma modelagem facial que se revela aquém nos planos mais apertados.

Passando por um jardim que faz lembrar um Kill Bill cinzento e uma ilha flutuante que tem o nome de Grand Hindenburg Hotel, alguns cenários têm um design que se impõe além do já mencionado esquema de cores, algo que parece ter sido uma prioridade para a casa espanhola, como justifica a inclusão de um momento em que temos que ir jogando por entre palavras que vão aparecendo à nossa frente e que compõe o próprio cenário.

A estreia de Blues and Bullets é ancorada pelo seu visual e há um corso narrativo que promete fazer as vidas de Eliot Ness e de Al Capone correrem atrás do mistério, tendo ainda várias hipóteses de o desenlaçar até ao final da primeira temporada. Contudo, falta substância ao arranque que, sem ser uma desilusão pegada, joga mais na antevisão do que está para chegar, parecendo esquecer-se que quem joga tem que ficar inequivocamente investido e curioso para não arrumar a obra num canto da sua cabeça.

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