“Gostaria de convencer as pessoas a escolherem a exposição pública”

O polémico Jeff Jarvis, um dos grandes gurus americanos da Internet, tem defendido aguerridamente as vantagens de tornar público aquilo que muitos têm pudor em revelar. No futuro próximo, "abandonaremos esta noção que temos do nosso negócio como conteúdo para uma noção que anda à volta da ideia de conexões", prevê. Segunda entrevista da série sobre a Internet.

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Jeff Jarvis diz que só um louco preveria o futuro da Internet Daniel Rocha

É um dos defensores da ideia de tornar público aquilo que muitos consideram que deve ser privado. Aliás, quando teve cancro na próstata, Jeff Jarvis, guru americano da Internet, escreveu sobre isso e percebeu os benefícios que trouxe à sua vida - e à de outros.

Chega a dizer que, em algumas situações, reservar para a esfera privada alguma informação é “egoísmo” ou “irresponsabilidade”. Autor de O Que Faria o Google? (Gestão Plus, 2010), Jarvis é director do Tow-Knight Center for Entrepreneurial Journalism na CUNY (City University of New York), consultor de várias empresas de media. No ano passado, lançou Public Parts:How Sharing in the Digital Age Improves the Way We Work and Live, onde escrutina o que chama “pânico moral” em relação à privacidade. “Viver em público não mostra apenas que temos pouco a esconder; mostra que temos pouco a temer”, escreve. Ou: “Quanto mais pública uma sociedade for, mais segura será.” No fundo, defende, a exposição pública (publicness) é uma “ética de partilha”.

O que é que o surpreendeu mais no avanço da Internet desde que a começou a usar?

Quando comecei a bloggar em 2001, a revelação mais importante foi que estávamos a ter conversas em diferentes sítios e tempos e isso é a verdadeira estrutura da Internet – é sobre pessoas a conversar. Estava no World Trade Center no 11 de Setembro e comecei a bloggar cerca de uma semana depois. Dois bloggers em Los Angeles viram o que fiz, escreveram sobre mim e eu escrevi sobre eles. Isso foi para mim o momento em que percebi que as ligações permitiam uma conversa que não existia antes.

Como é que imagina que esse lado de conversa da Internet irá evoluir?

É impossível prever o futuro, mas fico sempre muito surpreendido com o poder das ligações. Neste momento vejo mais ferramentas de colaboração do que de criação, há uma evolução constante disso. Quem iria adivinhar que o Twitter ia ter um grande papel no mundo? Não há forma de prever estas coisas.

É um defensor da partilha e da exposição pública: como é que podemos beneficiar mais do lado público e de partilha da Internet sem nos tornarmos vulneráveis à vigilância e controlo?

Temos de perceber que há uma nova oportunidade para sermos públicos, algo precioso para proteger. Ouvimos muita preocupação sobre a privacidade. Até 1890 não havia discussão a sério sobre as questões legais de privacidade nos Estados Unidos e aconteceu por causa da invenção da câmara Kodak – as pessoas tinham medo que se pudesse tirar uma fotografia e aparecerem. A sociedade estava a adaptar as suas normas a uma nova tecnologia e a novos comportamentos, resolveu-se. Nós faremos o mesmo com a Internet. A privacidade é muito importante, e é preciso protegê-la, mas não quero que essa seja a única parte da conversa. Por isso escrevi o livro sobre os benefícios de tornar as coisas públicas, quis sublinhar esses benefícios que incluem a capacidade de qualquer pessoa falar em público, de nos juntarmos como público, de nos organizarmos e de agirmos como público – acho que essas são capacidades preciosas e fantásticas que podem ser reguladas de forma cuidada. A ironia é que ouvimos muita coisa sobre o governo proteger a nossa privacidade. Usou a palavra vigilância, uma palavra importante, porque a vigilância pode de facto ser perigosa, os governos podem usar informações sobre nós de uma maneira que mais ninguém pode. Devemos proteger-nos sobretudo dos governos, mais do que contarmos com a protecção dos governos.

No seu livro há alguma ironia sobre a preocupação das pessoas em relação à privacidade. Porque acha que há tanto medo da exposição pública?

Em geral não acho que as pessoas tenham medo. Há algumas pessoas que não têm a certeza, porque é novo, mas há quase mil milhões de pessoas a usar o Facebook! Isso não é porque estão loucas, é porque encontram valor na partilha. Há centenas de milhões no Twitter e no Google Plus, porque esta abertura da partilha é uma coisa importante. Não podemos assumir que somos todos paranóicos com a privacidade.

Mark Zuckenberg (o fundador do Facebook) disse que não há privacidade. Deveríamos estar a tirar partido da forma como as empresas usam os nossos dados?

Em primeiro lugar, alguém disse que Mark Zuckenberg disse isso, mas não é correcto. Ele acredita na privacidade, mas também nos benefícios do ser público, e um deles é que partilhamos mais coisas - por exemplo, a saúde.

Pode exemplificar?

Sim. Imagine-se que há um disparar anormal de incidentes de cancro da mama num certo bairro. Se mantivermos isso secreto, não há forma de encontrar esse padrão e talvez a causa. Se formos abertos em relação a isso, e não há razão para não o sermos, então podemos encontrar um padrão, talvez uma correlação e a causa. Isto é um exemplo do como ser mais aberto nos pode beneficiar. Há vários exemplos de como alguns dados nos beneficiam. Há pessoas que se queixam dos cookies da publicidade – a capacidade de fazer publicidade direccionada é o que vai financiar os media e eliminarmos isso seria altamente prejudicial para a sociedade em relação ao jornalismo, às notícias e aos conteúdos. Há benefícios desta tecnologia e só porque é nova não significa que seja má. Sim, temos de nos preocupar com algumas questões, mas também temos de pesar os benefícios.

Queremos proteger os nossos dados, ao mesmo tempo que exigimos aos governos que sejam mais transparentes e abertos – pense-se na WikiLeaks. Isto é um paradoxo ou estamos a falar de coisas diferentes?

Estamos a falar de coisas diferentes, porque temos de olhar para diferentes escalas de privacidade e de público a um nível individual, empresarial e governamental. A um nível individual ninguém deveria ser forçado a expor-se em público, mas eu gostava de convencer as pessoas a escolherem isso em muitos casos. Nem tudo precisa de ser público – não há benefício para a sociedade em dizer o que comi ao pequeno-almoço, mas se for útil a alguém porque não fazê-lo? A um nível empresarial há demasiado secretismo e acho que as empresas estão a aprender que quanto mais transparentes forem, mais colaboram com os seus clientes e mudam a sua relação com eles. Os governos deveriam ser abertos por definição e secretos apenas por necessidade. Há segredos necessários – crimes sob investigação, a privacidade dos cidadãos, etc. –, mas os governos são as pessoas, deveriam ser abertos por regra. Portanto, isto são três circunstâncias diferentes para julgar a privacidade e o público.

A WikiLeaks mudou alguma coisa?

Sim, mudou as expectativas sobre o desejo de manter segredos. A WikiLeaks evoluiu para a telenovela de Julian Assange [o fundador, envolvido numa acusação de abuso sexual na Suécia e escândalos sobre pedido de asilo], mas abriu um precedente: qualquer pessoa que saiba alguma coisa que ache que o mundo deveria saber tem agora um meio para o revelar. Por isso as empresas e os governos precisam de ganhar consciência de que devem agir de acordo com isso.

Uma das suas propostas é criar uma série de regras éticas para o mundo online – devemos transpor as regras sociais para a Internet ou devemos criar novas?

Parte do problema é achar que a tecnologia, por ser nova, requer novas regras. Deveríamos regular o comportamento, não a tecnologia. O exemplo que dou no livro é a lei da protecção de crianças online, em que temos tanto medo da tecnologia e as protegemos tanto que acabamos por pôr fim não só às más mas também às coisas boas. As crianças são o sector da sociedade que está pior servido no mundo online – não devíamos partir do princípio de que só porque a tecnologia pode ser usada para qualquer coisa toda a utilização deveria ser impedida. Esse é o erro. Como se pode abolir a tecnologia, porque se tem medo dela? Isso não é progresso.

 
Falando de crianças, diz que elas têm de aprender a proteger-se online e que provavelmente nós, adultos, somos os piores professores. Em que tipo de riscos acha que as crianças e os “nativos digitais” estão a incorrer ao publicar tudo…

…não há essa coisa de “nativos digitais”, as crianças não nascem ensinadas, têm de aprender como usar a tecnologia. Em segundo lugar, as crianças e jovens não estão a publicar tudo: seleccionam e editam, estão muito conscientes disso. Danah Boyd [investigadora de media sociais] fez pesquisa sobre isto e descobriu que, uma vez aprendida a lição, os jovens adaptam-se facilmente e controlam o significado daquilo que publicam. Não significa que não façam asneiras, também têm de aprender.

Quais são os grandes desafios de alguém que tem uma relação natural com o mundo online hoje e publica muito, quando estiver a procurar emprego no futuro, por exemplo?

Fez alguma coisa embaraçosa quando era nova? Todos o fizemos. O problema não é termos feito coisas embaraçosas, é tornarmo-nos intolerantes em relação a isso mais tarde. Chamo a isto a “teoria da humilhação mútua assegurada” – eu tenho os meus momentos de humilhação, tu também, não fales dos meus que eu também não falo dos teus. O que espero é que isto crie uma sociedade mais tolerante, em que respeitamos os medos e erros das pessoas.

Devemos editar, apagar o que publicamos nas redes sociais?

Sim, e as crianças fazem-no. Mas quero é celebrar um mundo onde finalmente, por exemplo, as pessoas gay possam viver fora do armário. O problema do armário não era dos gays mas das pessoas que os forçavam a esconder-se – e o tornar público foi muito poderoso para gays e lésbicas para afirmarem o seu direito. Claro que editamos, não dizemos tudo.

Antes do livro impresso, a informação passava de boca em boca, havia pouca noção de autoria. Com todo o trabalho de crowdsourcing e colaboração que as pessoas fazem online, estamos a “regressar” à ideia de autoria colectiva?

Sim, absolutamente, mas isso sempre aconteceu. Eu e você sabemos que, como jornalistas, baseamos o nosso trabalho numa série de fontes - agora é mais fácil e importante mostrar o nosso trabalho e as nossas fontes. Sempre colaborámos, há poucas novas ideias. Mas sim, a tecnologia também nos permite colaborar de mais maneiras, não é só crowdsourcing, é o facto de que, quando quero trabalhar numa ideia, vou ao Twitter ou aos blogues, ponho lá e as pessoas são muito úteis e generosas e sugerem-me mais fontes, corrigem os meus erros, dão-me novas ideias. Estamos sempre a colaborar e agora há mais e melhores maneiras de o fazer - eu celebro isso.

Como é que combina isso com o facto de os jornalistas, comentadores se estarem cada vez mais a tornar marcas, como diz?

Na minha cabeça tudo tem a ver com a questão do peso de se ter crédito pelo que se faz – o benefício que se pode tirar disso. As publicações media inteligentes começam a perceber agora que se estão a tornar colecções de marcas. Ainda ontem à noite um estudante me escreveu e eu disse-lhe: “Vai à procura de uma área, faz um blogue e cobre essa área.” Sei que há pessoas nos media que não contratam uma pessoa, se ela não tiver provado e mostrado o que consegue fazer em público.

Mas isso é pedir que as pessoas trabalhem pro bono

Estou a falar consigo neste momento pro bono. Não me está a pagar para eu falar consigo – devia criticá-la. Esse é o tipo de lógica que encara os media como um produto, em vez de os encarar como uma conversa. Sim, quero que os meus estudantes sejam contratados, lancem empresas com valor e quero ver esse valor ser gerado de maneiras diferentes – através da publicidade, livros, etc. Mas a ideia de que se se é um escritor deve-se ser pago por tudo o que se diz é ridícula – há pessoas que se queixam do Huffington Post, que não paga. Eu escolho escrever no Huffington Post por boas razões: tem uma audiência enorme, quero espalhar e partilhar as minhas ideias e testá-las com uma audiência maior; retiro benefício disso de outras formas: sou entrevistado por si, talvez seja convidado para uma conferência em Madrid ou Lisboa, ou para ser consultor. Há outros modelos económicos. Bem-vindos ao mundo da competição.

Mas a questão é: como é que se sobrevive?

Temos de nos adaptar, não podemos pensar que vamos operar no modelo de negócio do passado. E, na verdade, o modelo de negócio do passado era um em que apenas um pequeno grupo de pessoas controlava a imprensa. Acho que estamos melhor agora. O Facebook e o Google perceberam como operar neste novo mundo. As empresas de media, em geral, não perceberam: e queixarem-se não é um modelo de negócio. Acho que nós, nos media, temos de nos ver mais no negócio das relações do que no dos conteúdos. O conteúdo tem valor, é uma ferramenta – mas, por exemplo, o Facebook usa o conteúdo para gerar sinais sobre pessoas de forma a elas serem melhores alvos de serviços. Não fazemos isso nos media, mas temos de perceber como operar neste novo mundo e não continuar a operar no antigo, porque isso claramente não funcionou nos últimos 15 anos.

Qual é a maior tendência que identifica agora ou a faceta que julga que está a mudar na tecnologia?

Só um louco o preveria. Aquilo a que estamos a assistir é ao desenvolvimento das fronteiras móvel, social e local. A palavra móvel é temporária: estaremos conectados a toda a hora e de várias maneiras, o local não significa o código postal, mas sim o que há à minha volta, neste momento – essa é a razão pela qual a Apple e a Google investem tanto nos telefones, porque são geradores de sinais que lhes permitem conhecer o contexto e servir-nos melhor. Quando se pede uma pizza no Google, não se quer saber a história da pizza, mas onde é a pizzaria mais próxima e talvez saber que pizza é que os amigos e as pessoas que respeitamos gostam. Acho que abandonaremos esta noção que temos do nosso negócio como conteúdo para uma noção que anda à volta da ideia de conexões: conexões de pessoas a pessoas, de pessoas a informação, conexões a pessoas a fazerem acções e transacções, a organizarem. O que fez o Facebook e o que a Internet permite é as pessoas organizarem-se, agirem, ligarem-se.

Na segunda-feira a série sobre a Internet regressa com entrevista a Ethan Zuckerman, fundador da comunidade Global Voices
 

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