Em breve jogo a denúncia

Freshman Year é curto, é grátis. É, sobretudo, uma chamada de atenção para a violência sexual.

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Freshman Year merece a nossa atenção. Obra que demora apenas alguns minutos e pode ser jogada gratuitamente aqui, o videojogo é um meio para fazer passar a mensagem chamando a atenção para a violência sexual. O aviso é claro: “Por favor, estejam cientes que este jogo ilustra cenários que podem ser perturbadores para quem tiver experienciado abuso.”

O retrato do tema sério é feito de forma séria. Não existe magia nem puzzles, dragões ou heróis de espada à cinta; não existe nada a não ser os personagens, os cenários e a sonoplastia, ferramentas cruciais para contar esta história. Freshman Year foi criado por Nina Freeman, a personagem principal é homónima e veste vida corriqueira até tudo ser derrubado nuns minutos.

Está sentada na sua cama com o portátil no colo. Vive num dormitório com Jenna, a sua melhor amiga. Enquanto revê os resquícios da última festa a que foi, recebe uma mensagem a combinar uma saída à noite, um convite para uma reunião no bar. Vai. O jogador pode escolher a resposta: ou se esqueceu e convida Jenna para ir com ela, ou está a ser preguiçosa durante um bocado mas encontrá-la-á no Crawley’s, bar onde decorrerá o resto da trama.

A escolha da resposta indicia o procedimento básico do jogo. Ao longo da sua escassa estadia, Freshman Year vai dando a opção das respostas ao jogador. Não têm um peso fracturante nem influenciam determinantemente a narrativa, servem apenas para o incluir ligeiramente nos seus processos.

Podemos escolher que roupa a personagem veste: seja uma saia nova, justa e curta; seja jeans com um top, “tudo perto porque agora só usa preto, é algo sobre Nova Iorque”. Colocamos maquilhagem em frente a um espelho de que Nina se lembra bem — afinal, foi neste local que vomitou pelo menos uma hora à custa de demasiados Long Island Iced Teas e de ser “difícil saber quando bebeu demasiado”.

São pormenores algo insignificantes que, contudo, ajudam a criar a viga mestra de uma personalidade que estamos a conhecer. Jenna sai de cena para ir arranjar marijuana. Demora-se a chegar; demasiado tempo, o suficiente para falarmos com o porteiro, alto e amigável, porque “é bom ter alguém com quem falar”.

Bebe e tenta conjugar algo parecido com o verbo dançar. A música alta e Jenna que não chega. Verificamos o telemóvel, o seu ecrã vazio de respostas aos nossos questionários digitais. Uma, duas, várias vezes num pasodoble de mãos que imagino começar a rivalizar com a dança, num exercício quase autónomo. Jenna não disse nada. Os amigos bêbados, Nina tonta à conta daquela sua dificuldade de saber quando bebeu demasiado.

Continuam a ser pormenores insignificantes mas replicados tantas vezes em tantas noites de saídas por lá, por aqui, por aí. Contudo, ainda que o jogo nunca nos deixe controlar os personagens, ainda que o jogador vá apenas decidindo uma de várias escolhas, são ritmos que vão ficando, que por algum motivo agarram a nossa atenção quase premonitória de um desfecho que pode demolir uma vida.

— Será que Jenna está lá fora a fumar?

Subimos até à saída, cambaleantes e mais bêbados do que pensávamos estar, passamos por Clark, o porteiro que já confessou ter reparado em nós o tempo suficiente para ter ficado com a impressão que nos divertíamos na pista de dança. Não está ninguém conhecido à porta do bar. Está frio.

O porteiro lança-se sobre Nina, tenta beijá-la, as mãos pelo peito, as mãos agarram as mãos; o pescoço também, tudo à força e sem aviso prévio. Nina sente a “as costas coladas à parede”. Respira aceleradamente. Mesmo no momento mais importante do jogo, mesmo que seja uma situação que agarra o jogador desprevenido, Freshman Year nunca é vulgar nem explícito; nunca se rebaixa para ser comentado e recomendado, bastando-lhe para isso contar esta história.

É uma sensação corrupta e estamos a jogar uma obra digital, um videojogo que se prontifica a relatar uma situação. O que remexe é a ideia, o pensamento que isto acontece na vida real, nesta que trazemos connosco todos os dias. O mínimo é ficarmos preocupados pela nossa espécie, ou melhor, por uma parte da nossa espécie que queremos acreditar ser mínima, ínfima, demasiada.

E fiquei a pensar no que seria a vida de Nina depois destes minutos. À pergunta “Como é que se recupera?”, infelizmente sabemos que a reposta deverá ser “nunca”. Nina estuda, à sua frente a vida que estava a tentar alicerçar, moldar a um futuro melhor, o melhor que conseguisse. Alguns passos, outros tantos movimentos e fica tudo hipotecado.

Freshman Year é eficaz. Sabemos ainda que Clark fez o mesmo a Liz, contudo Liz não se esquivou e acabaram a ter relações sexuais na casa de banho. Para ele parece ser um exercício, uma prática comum, como se fosse um direito invadir o corpo de outra pela vontade.

Nina prostrada junto a um espelho. Quer apenas ir para casa; não quer cruzar-se com Clark novamente, não quer levar Jenna para casa. A mesma Jenna que desapareceu e que “acabou de chegar”. Nina olha para o espelho e vê pessoas sem rosto a conviver, pessoas que provavelmente nunca saberão o que lhe acabou de acontecer. Nina de cabelo rosa.

À escrita junta-se a arte de Laura Knetzger e o áudio de Stephen Lawrence Clark. O som é desconcertante, nem tanto pelo embalo musical mas sobretudo pela batida contínua que torna aquele momento ainda mais desconcertante. Um ritmo energético e repetido, como se tentasse dar voz à pressa de chegar aonde não se está; a pressa de sair dali o mais rapidamente possível.

O jogo pode chegar de longe mas o tema está entre nós. Aqui, no PÚBLICO, foi recentemente notícia que a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima “pretendeu intensificar os esforços de prevenção da violência sexual junto da população universitária de Coimbra” e que para tal “lançou uma versão inglesa do microsite destinada aos estudantes do ensino superior.” 

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