Drama Queen

Virginia propõe-se a contar um argumento que leva o jogador por caminhos inesperados, alavancando-se numa investigação para nos mostrar passados pesados.

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Virginia quer a vossa atenção total, não oferecendo um teste à habilidade, mas sim à dedução narrativa. Esta ficção interactiva é uma senda cheia de pormenores – ora forasteiros à lógica, ora capazes de trazer à tona as emoções do grande entretenimento. A Variable State assina uma obra que dividirá opiniões e alumiará teorias à espera de serem debatidas.

Antes de chamar os holofotes aos actores, o contexto do cenário: Verão de 1992, Virgínia, Estados Unidos da América. Zoom narrativo: Kingdom, Virgínia rural. Um rapaz, Lucas Fairfax, desapareceu. Mistério sobre o paradeiro, FBI chamado a intervir. Nós, uma novata do Bureau chamada a cena, preparada para o caso da sua breve vida na investigação, crachá ainda a brilhar retirado do bolso. Procura-se quem desapareceu instigando quem é suspeito.

Os filmes e as séries ensinaram-nos que há sempre um parceiro ou uma parceira. Podem marcar essa caixa com um visto. Contudo, é preciso ter calma com isso dos clichés. A nossa parceira começa a revelar um passado permeado pela investigação e quando damos conta dos minutos avançados, Virginia assobia um drama muito próprio.

A produtora usa as suas inspirações à vista de todos, afirmando que séries como Twin Peaks e Ficheiros Secretos estiveram na sua génese, declarações que não precisavam de serem escritas para serem sentidas por quem se deixa emaranhar por este mundo. É pelo argumento que esta obra será recordada e são precisas poucas peças para o xadrez psicológico decorrer: nós somos Anne Tarver; a nossa parceira de investigação é Maria Halperin; o jovem desaparecido é Lucas Fairfax.

Onde os criadores Jonathan Burroughs e Terry Kenny brilham é na quantidade de sumo que conseguem desta disposição de trunfos. A inspiração nos filmes e nas séries de televisão nota-se também na forma como Virginia é jogado, com a edição a ser feita com saltos no que estamos a ver e a fazer, dando a sensação de uma continuidade perfurada. É um ritmo que não controlamos e que é colocado ao serviço das perguntas que alimentam a nossa procura de respostas.

Controlamos os desígnios de Anne deslocando-nos pelo cenário, esperando que a retícula assinale algo interessante, pressionamos um botão para consentir ao jogo que estamos prontos. Tal como noutras obras criticadas neste espaço, não há bosses nem mortes por falta de destreza, ou seja, quem não gostou de Firewatch, Gone Home e Dear Esther, certamente não gostará das descomplicações da jogabilidade de Virginia.

Já se sabe que remover os ganchos da jogabilidade é um exercício que requer mestria a dominar as artes do que faz parte do jogo, ou seja, da sua história. Entremeando a vida da protagonista com os seus sonhos, não demora muito a surgir uma névoa muito própria que obriga a parar para assimilar o que aconteceu, lendo nas entrelinhas e, possivelmente, projectando o descorrimento pessoal para a arte da omissão.

Esta densidade é propositada, claro. Terminei Virginia mais do que uma vez e parece ser assim que a obra quer ser experimentada, pois o troféu atribuído ao jogador na versão PlayStation 4 indica-nos que a produtora está à espera que uma travessia fique aquém. E não é preciso muito tempo para ver os créditos rolarem – onde é mencionado que Thirty Flights of Loving também foi uma inspiração – porque demoram apenas duas horas para vermos o pote conclusivo no final deste arco narrativo.

A vitória da obra está na subversão do cerne da trama. Há momentos que à primeira vista parecem desenquadrados e sem nexo – sim, búfalo, estou a escrever sobre ti –, contudo é compreensivelmente a filosofia do duplo significado, da metáfora. E mesmo sem estes subterfúgios, a produtora consegue um feito na forma como conta a história: não há vocalização nem diálogos. E, no entanto, a mensagem evolui de um sussurro para um final garrafal, propenso à discussão.

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Não se escusando a tocar em temas adultos – vislumbre do sexual, droga, religião –, o videojogo conta com a maturidade e a experiência do jogador noutras obras do género, independentemente do formato. Com o evoluir de Anne, tal como ela, somos confrontados com as réplicas das suas acções. Ela deteriora-se a partir da consciência, um grilhão para quem joga.

Tudo isto decorre em cenários com carisma, mas que ocasionalmente falham em não oferecer mais pormenor. Na cerimónia de aceitação do nosso cargo no FBI, o auditório encanta pelo estilo. Quando estamos no meio do campo, além de trazer novamente à memória Firewatch, há um grito de cores contrastantes que marcam. Contudo, enquanto deambulamos pelo interior de alguns edifícios – o restaurante e a casa da protagonista mantêm a qualidade, as instalações do FBI não –, pedia-se um olho mais atento ao detalhe. Não estorva nem repele, mas é pena esta montanha-russa para a retina. De salientar ainda que a versão PlayStation 4 sofre de quebras ocasionais na framerate.

Virginia é uma experiência cinemática em que o estilo não descura a substância. É difícil contar uma narrativa impactante em que os avanços não contam com a voz nem o diálogo. E ainda assim, funciona. É necessário perdoar-lhe alguns artifícios que não são atados no final, mas entre o que raspamos ao osso dramático e e esses excessos, está um argumento original. Juntem-lhe uma banda sonora nos momentos certos e têm uma experiência que marca, goste-se ou deteste-se, marca como um sonho febril.

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