A complicada relação do Google com a Europa

A empresa americana está há quase cinco anos sob investigação da Comissão Europeia. E também tem no currículo disputas com a justiça, com as autoridades de protecção de dados e com os jornais.

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Justin Sullivan/Getty Images/AFP

Não há dúvida de que as pessoas na Europa gostam do Google. O motor de busca – o primeiro da miríade de produtos que a empresa criou – é o preferido de mais de 90% dos utilizadores, um valor significativamente acima da quota de mercado que o Google tem nos EUA. Tal como no resto do mundo, o Android, desenvolvido pela empresa e distribuído gratuitamente a fabricantes de electrónica, é o sistema da maioria dos telemóveis inteligentes. Também o Gmail, o YouTube e os Mapas têm deixado pouca margem para a concorrência.

Ao longo dos últimos 17 anos, a lista de serviços do Google multiplicou-se: de sistemas de tradução automática (que permitem ler de forma aceitável páginas em dezenas de línguas diferentes) até carros que andam sozinhos (já funcionais, mas ainda longe de chegarem ao mercado). Nem todos foram bem-sucedidos. A rede social Google+, por exemplo, nem sequer se aproxima da dimensão e da relevância do Facebook, apesar dos esforços do Google para disfarçar a distância.

À medida que cresceu, a multinacional originou na Europa, muito mais do que nos EUA, queixas e preocupações. Por um lado, surgiram questões de regulação de mercado. Por outro, as autoridades debruçaram-se sobre a forma como a empresa guarda e trata o imenso manancial de informação pessoal que recolhe. Nestes aspectos, as relações do Google com as instituições na Europa, e com empresas concorrentes, não têm sido pacíficas.

São várias as empresas que se queixaram ao regulador europeu de que o Google usa a sua posição dominante para práticas anti-concorrenciais. Uma das vozes mais ouvidas é, ironicamente, a da Microsoft, que já foi alvo de investigações regulatórias dos dois lados do Atlântico e que protagonizou algumas das mais pesadas sanções aplicadas pela Comissão Europeia, o regulador máximo dentro da União.

Entre outras coisas, a Microsoft foi acusada de usar a quase ubiquidade do sistema Windows para favorecer a adopção de outros programas seus (como o browser Internet Explorer). Com programas pré-instalados, os utilizadores tinham menos incentivos para procurar alternativas. Esta é precisamente a mesma técnica que tem vindo a ser usada pelo Google no Android: a maioria destes telemóveis é vendida já com muitas aplicações do Google.

Também os órgãos de comunicação europeus se juntaram para acusar o Google de lucrar com os conteúdos que vai buscar aos sites de informação. Tentaram, em conjunto e nos respectivos países, pressionar a empresa a pagar por esta utilização. Em alguns casos, a multinacional americana acabou por fazer cedências. A maior vitória foi em França, um país que se tem mostrado preocupado com a “americanização da Internet”. Num acordo de alto nível assinado com o Presidente François Hollande, o Google criou um fundo de 60 milhões de euros para ajudar a imprensa a fazer a transição para os suportes digitais.

Já na Alemanha e em Espanha, o resultado foi um embaraçoso revés para os jornais. O caso espanhol foi o mais radical. Uma nova lei obrigava o Google a pagar pelos excertos mostrados no agregador Google News. A empresa optou por fechar o serviço, dando origem a protestos por parte da imprensa, que acabou, sem sucesso, a tentar impedir o encerramento.

Por fim, a privacidade. As autoridades de protecção de dados dos países da UE têm travado um longo braço de ferro com o Google. A questão agudizou-se há três anos, quando a empresa decidiu reunir os dados recolhidos em cada um dos seus serviços e usá-los para oferecer uma experiência mais personalizada – e publicidade ainda mais direccionada.

No ano passado, foi a vez de a justiça intervir. O Tribunal de Justiça da União Europeia tomou uma decisão que garantiu o chamado “direito ao esquecimento”. Uma pessoa no bloco de 28 países passou a poder pedir ao Google que, nos resultados pesquisas pelo seu nome, sejam retirados links para algumas páginas (por exemplo, referências a dívidas antigas ou a situações embaraçosas). O Google analisa cada pedido e pode recusá-los (o que não impede o queixoso de recorrer a um tribunal).

Nos últimos dias, surgiram sinais de que está prestes a começar mais um capítulo das aventuras do Google pela Europa. O New York Times e o Wall Street Journal (ambos citando fontes anónimas) noticiaram que a Comissão Europeia poderá estar prestes a formalizar queixas contra a empresa, abrindo assim a porta a eventuais multas. A acontecer (a Comissão não comentou), será o princípio de uma nova fase num processo regulatório que se arrasta há quase cinco anos.

Foi em Novembro de 2010 que a Comissão Europeia abriu formalmente uma investigação às práticas de negócio do Google. A decisão seguiu-se a queixas apresentadas por várias empresas, que argumentaram que o motor de busca tinha tornado menos visíveis os respectivos sites, passando a favorecer os serviços do próprio Google, com os quais elas competiam.

Estas empresas juntaram-se num grupo de lóbi chamado FairSearch. Entre os membros, estão a Microsoft e a Nokia, bem como os sites de viagens TripAdvisor e Expedia, para os quais as pesquisas especializadas (ou "verticais", na gíria do meio) fornecidas pelo Google são concorrência.

Estas queixas (e outras semelhantes) colidem com a própria natureza da evolução do motor de busca. Nos primeiros anos, o Google funcionava sobretudo como um índice de páginas na Internet, mostrando resultados de pesquisa com base na presença das palavras pesquisadas. Hoje, tenta adivinhar a intenção de quem faz uma busca e apresentar informação já “digerida”. É por isto que uma pesquisa por “pizza Lisboa” apresenta uma lista de pizarias na cidade e respectivas classificações feitas por comensais. Já uma pesquisa por “tempo” seguida do nome de uma cidade dá imediatamente a previsão meteorológica, sem necessidade de qualquer clique num site. Este modo de funcionamento pode ser um problema para sites que cujo negócio seja agregar críticas de restaurantes ou apresentar informação meteorológica.

Em Maio de 2012, o então comissário europeu para a concorrência, Joaquín Almunia, convocou uma conferência de imprensa para dizer que tinha encontrado quatro motivos de preocupação nas práticas do Google. Duas das preocupações estavam relacionadas com a publicidade, a grande fonte de receitas da empresa: o Google impedia, por via contratual, alguns dos sites que queriam ter os seus anúncios de aceitar publicidade de outras empresas; também impedia os anunciantes que usavam a plataforma de gestão de anúncios do Google de transferir informação para plataformas rivais. Os outros dois problemas estavam na pesquisa: o uso não autorizado de material de terceiros (como excertos de texto e imagens) e o destaque favorável dado pelo motor de busca aos próprios serviços da empresa. Num processo espinhoso, Almunia tentou a via da conciliação.

Em 2013, o comissário apresentou para consulta ao mercado uma série de modificações que o Google se propusera fazer. Por exemplo: assinalar de forma mais visível quando um resultado era um serviço próprio; apresentar obrigatoriamente serviços rivais em lugar visível; e criar um sistema de leilão para que os sites de pesquisas especializadas pudessem licitar espaços de destaque. A empresa também acabaria com as restrições nos contratos de publicidade. Almunia mostrou-se várias vezes convencido de que estas concessões seriam suficientes para que a empresa e a Comissão chegassem a um acordo, evitando o caminho do litígio. Mas acabaria por mudar de ideias.

As modificações propostas, que seriam aplicadas na zona económica europeia, foram mal recebidas pelos concorrentes. “Os remédios propostos pelo Google não alteram em substância o facto de que o Google pode apresentar os seus resultados de pesquisa de uma forma que distorce a escolha dos utilizadores”, escreveu então o FairSearch. A reacção (que não impedia o regulador de chegar a acordo com a empresa) não foi uma surpresa. Meses antes, o FairSearch tinha apresentado uma outra queixa na Comissão, desta feita sobre a hegemonia do sistema Android e a questão das aplicações pré-instaladas. A meta de Almunia de encontrar uma solução de que satisfizesse todas as partes acabou gorada. Numa reviravolta inesperada, o comissário optou por não fazer um acordo e a pasta foi herdada pela actual comissária para a concorrência, Margrethe Vestager.

O Google não é a única multinacional americana na mira da regulação europeia, numa altura em que a União se mostra preocupada com a liderança das empresas de tecnologia americanas e em que este sector foi assumido como uma área estratégica para a criação de emprego. Para além de multas multimilionárias aplicadas a companhias como a Microsoft e a Intel, a Comissão começou há meses a averiguar eventuais benefícios fiscais da Apple na Irlanda e, segundo uma notícia desta semana do britânico Financial Times, está também preocupada com as práticas da Apple no sector da música.

Já do lado do Parlamento Europeu, o Google também levantou preocupações. Em Novembro do ano passado, os deputados aprovaram uma proposta de resolução, sem carácter vinculativo, na qual apelam à Comissão para prevenir “qualquer abuso na promoção de serviços interligados por parte dos operadores de motores de busca”. Defendem que a solução pode mesmo passar por “separar os motores de busca de outros serviços comerciais”. Na prática, isto significaria um (muito improvável) desmantelamento da empresa na Europa.

O Parlamento não foi ao ponto de nomear o Google, mas os deputados (que aprovaram o texto com 384 votos favoráveis, 174 votos contra e 56 abstenções) não deixaram dúvidas sobre o alvo para que apontavam. A empresa não reagiu publicamente.

Naquele mesmo mês, a comissária Margrethe Verstager tinha lembrado que as competências da comissão não abarcavam muitas das preocupações europeias com o Google e avisara que, sobre os assuntos em que podia actuar, as investigações eram complexas e decorreriam sem pressas.

“As nossas investigações sobre o Google estão entre as mais discutidas nos media. A grande quantidade de dados controlados pelo Google levanta uma série de desafios sociais. A privacidade é uma das preocupações mais prementes. A pluralidade dos media é outra. Nem todos estes desafios são económicos por natureza e nem todos estão relacionados com a concorrência”, escreveu Verstager. “Os assuntos em causa nas nossas investigações são multifacetados e complexos. Por isso, precisarei de algum tempo para decidir os próximos passos”, concluiu. Mais de quatro meses depois, ainda nada foi anunciado.

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