Google Books: a ideia boa que nasceu torta

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O sonho da Google tem coisas muito positivas. O benefício seria extraordinário e teria como resultado dar nova vida a velhos livros Dirk Anschätz/Corbis/vmi

Um acordo entre a Google e editores e autores americanos relativo à digitalização de livros foi recusado por um juiz federal de Manhattan. O professor Robert Darnton sugere agora que nos EUA se siga o exemplo da Europeana.

Vamos começar do princípio. Em 2004, a Google começou a digitalizar livros de bibliotecas e disponibilizou na Internet, para quem as quisesse ler, obras que estavam em domínio público. Desde aí já digitalizou 12 milhões de livros. Na obra The Case for Books: Past, Present and Future (com tradução na editora brasileira Companhia das Letras, A Questão dos Livros: Passado, Presente e Futuro), o director da Biblioteca da Universidade de Harvard desde 2007, Robert Darnton, explica muito bem o que se passou. "Agora, por exemplo, qualquer pessoa em qualquer lugar pode ler e baixar uma cópia digital da primeira edição de Middlemarch, de 1871, que pertence ao acervo da Biblioteca Bodleiana, da Universidade de Oxford. Todos lucraram, inclusive a Google, que obteve receita de discretos anúncios ligados ao serviço", escreve ele.

Ao mesmo tempo, a empresa norte-americana digitalizou também obras protegidas por direitos de autor e dessas os cibernautas só podiam ler excertos. E, em 2005, um grupo de autores e editores moveu uma acção contra a empresa Google, alegando violação de direitos de autor. "A 28 de Outubro de 2008, após negociações demoradas e secretas, os litigantes anunciaram ter chegado a um acordo, que está sujeito à aprovação de um Tribunal Distrital dos Estados Unidos", escrevia no seu livro, publicado em 2009, Robert Darnton, que esteve envolvido durante anos na negociação com a Google por causa do projecto de digitalização do acervo da sua biblioteca.

Na página do Google Books (a pesquisa de livros do Google), estão explicados os termos deste acordo com a Authors Guild, a Associação Americana de Editores, e vários autores e editoras. Se o acordo vingasse, os utilizadores da pesquisa de livros do Google passariam a ter acesso a "livros protegidos por direitos de autor" e ainda no mercado (e os autores e editoras poderiam activar modelos de "pré-visualização" e de "aquisição" dos seus títulos); "a livros protegidos por direitos de autor mas esgotados" (a outra única forma de os obter seria ir à procura numa biblioteca ou num alfarrabista e os autores e editores poderiam assim ganhar dinheiro com livros que pensavam estar fora do mercado, dizem) e ainda teríamos acesso a "livros não protegidos por direitos de autor".

Até que, na semana passada, a 22 de Março, o juiz nova-iorquino Denny Chin rejeitou a proposta de acordo entre a Google e os editores e autores por considerar que "simplesmente ia longe de mais", ao permitir que fossem publicados livros sem a devida autorização destes últimos. E como, na sua opinião, "a digitalização de livros e a criação de uma biblioteca universal digital beneficiaria muitas pessoas", o juiz propôs que as partes envolvidas chegassem a acordo no sentido de encontrarem um sistema onde os detentores dos direitos possam optar por ser incluídos, em vez de isso acontecer sem que sejam consultados.

Entretanto, a Google reagiu. Hilary Ware, da Google, disse à ZDNet que a decisão os surpreendeu e que iriam estudar detalhadamente a decisão do juiz para ver qual o melhor caminho a seguir. "Como muitos, pensamos que este acordo permitiria abrir o acesso a milhões de obras que hoje é difícil encontrar nos Estados Unidos. Seja qual for a decisão final, continuaremos a trabalhar duramente para que cada vez mais obras no mundo possam ser descobertas na Internet graças ao Google Books."

Por sua vez, o escritor Scott Turow, presidente da associação de autores norte-americanos, lamentou a decisão do juiz, acrescentando que "esta Alexandria dos livros esgotados parece perdida por agora".

Uma sessão em que as várias partes são livres de recorrer desta decisão está marcada para 25 de Abril, em Nova Iorque. Até lá, o assunto tem sido debatido em artigos de opinião - na imprensa e em blogues - e será, certamente, um dos temas discutidos na próxima Feira do Livro de Londres, de 11 a 13 do mês corrente, onde estão planeadas conferências dedicadas ao futuro digital.

Na edição desta semana, a revista Publishers Weekly escreve: "Quando foi apresentado em 2008, o acordo para a digitalização de livros do Google foi aclamado pelos seus criadores como histórico. Agora, passou à história."

Robert Darnton, por sua vez, publicou a 23 de Março um artigo de opinião no jornal The New York Times, a que chamou Uma biblioteca digital melhor que a da Google e no qual considera a decisão do juiz Chin "uma vitória, na medida em que impede um grupo de monopolizar o acesso à nossa herança cultural comum". Mas acrescenta: não se deve abandonar o sonho da Google de fazer com que todos os livros do mundo possam estar acessíveis a todos.

Seis boas razões

O académico está optimista e defende a ideia da construção de uma biblioteca pública digital, que forneça cópias digitais gratuitas aos leitores. "Sim, existem muitos problemas - legais, financeiros, tecnológicos, políticos - no caminho. Todos podem ser resolvidos", escreve.

Nesse artigo de opinião, Darnton explica que o que o juiz Chin considerou polémico no acordo foi a parte em que "a Google venderia o acesso à sua base de dados digital, dividindo os lucros com os queixosos que se tornariam seus sócios. A empresa ficaria com 37 por cento; os autores receberiam 63 por cento. Esta solução mudaria as leis de direito de autor individualmente, e daria à Google uma protecção legal que não era dada aos seus concorrentes". Também refere que o acordo em relação aos chamados "livros órfãos" - aqueles de que não se sabe quem detém os direitos de autor - dava à Google o direito exclusivo de os digitalizar e de os vender e considerou isto perigoso por poder constituir "um monopólio sobre obras não reclamadas pelos autores".

Darnton escreveu ainda um outro artigo, que será publicado integralmente na versão impressa da New York Review of Books, a 28 de Abril, mas de que já pode ser lido um excerto online. Chamou-lhe Six Reasons Google Books Failed, seis razões que explicam por que é que o acordo falhou, no qual argumenta que a decisão do juiz deve ser olhada como um mapa de decisões erradas - que se fizeram no passado - e servir como convite para se escolher um caminho melhor no futuro.

Uma das razões evocadas por Darnton é que a Google, ao acumular informações sobre o comportamento dos leitores, pode estar a infringir a sua privacidade. "A Google pode saber quem são os seus leitores, saber exactamente o que estão a ler e quando o fazem. O acordo integrava algumas alíneas para evitar este perigo, mas o juiz Chin recomendou outras e pediu que o acordo fosse revisto."

No final do seu artigo, Robert Darnton volta a afirmar que o sonho da Google tem coisas muito positivas. Milhões de pessoas poderiam ter acesso a milhões de livros e, "se o preço for razoável, o benefício seria extraordinário e teria como resultado dar nova vida a velhos livros", que raramente são consultados nas prateleiras das bibliotecas remotas onde se encontram. E torna a lançar a ideia da Digital Public Library of America, a tal biblioteca pública digital com livros em vários formatos que ficaria disponível online, livre de encargos para todos em qualquer parte do mundo.

Darnton lembrou que a Noruega e a Holanda têm feito tentativas consistentes para criar bibliotecas nacionais digitais, embora seja verdade que o volume de livros existentes na língua destes países não seja o mesmo do dos Estados Unidos. "Para termos uma ideia do que poderia ser feito nos Estados Unidos, era bom estudar-se o que tem sido feito na Europa com a livraria digital que engloba vários países e que se chama Europeana", escreve Darnton. "A sua estrutura básica está bem desenvolvida", diz. "Em vez de ter optado por acumular as suas próprias colecções, a Europeana funciona como um agregador" de bibliotecas nacionais ou particulares (neste momento, são 27 países que a integram, Portugal incluído).

A ideia da Google é boa, mas nasceu torta. Resta-nos agora esperar e não deixar de sonhar com uma biblioteca de Alexandria digital, disponível para todos, a um toque de dedo ou a um clique de um rato no computador. Nesse dia, então, far-se-á História. a

isabel.coutinho@publico.pt

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